"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Se a máscara mascara a máscara

 

Se a máscara mascara a máscara

longamente treinada para dissimular

o que se é, o que se faz, como se faz

até parecer natural a camuflagem

poderá acaso denunciar a natureza

sua motivação, objetivos, sua voragem?


Que disparates suscitam inusitadas situações...

Não há limites para a justaposição de máscaras

e uma nova apenas adiciona mais simulações

à artificialidade tão oleada que parece natural

até serem irreconhecíveis as específicas feições

de qualquer coisa que possa passar por um real


Mas estas máscaras destacam o olhar

sublinham as retinas, as íris, as pupilas

até tornar difícil a tecitura do falar

a insinuação do jeito e do trejeito

o treino do sorriso fingir e enganar

como sempre cada ardil foi feito  


É difícil ao olhar mentir

sem se articular parte do todo

da composição, da encenação

quando é fragmentado pela máscara

e se destaca solitária a visão

sem enfeites, sem enquadramento, sem decoração


A boca pode mentir ou tergiversar

os gestos podem seduzir e até aliciar

o decote pode insinuar a promessa de delícia

mas a máscara ao realçar o olhar

sobressai brilho, sobressai tensão, sobressai intensidade

até não poder esconder do ódio

do rancor, do despeito, da inveja, a verdade


É necessário um novo treino marcial

um treino de simulação do isolado olhar

para não dissolver a urdidura social

de relações e afetos que preciso é aparentar

para alimentar relações, alianças e negócios

ou cimentar conspirações, sociedades e consórcios


E na verdade o olhar bem pode mentir

sem precisar de quaisquer apoios, adereços

e bem consegue se adaptar à situação

dispensar os suportes devindos habituais

até conseguir replicar o brilho da paixão

ao olhar para as entidades que despreza mais


Nunca se poderá deixar a verdade despontar

por trás da máscara até olhos alcançar

nunca se poderá permitir o amanhecer

da denúncia de motivos intenções e fins

nunca se poderá tolerar o desígnio se esclarecer

antes dos passos atingirem, de alvos, os confins


A espécie foi longamente adestrada na mentira

até selecionar os melhores genes da ocultação

Quem espera sua transcendência só delira

só desespero pode fazer desejar revelação

No final, superar-se-ão todas as fraquezas

e apenas se reforçarão, da mentira, as destrezas


Mas, por agora, por um momento, um instante

um lampejo de verdade poder-se-á entrever

entre o descuido de quem não treinou bastante

para que no olhar nada de real se pudesse ver

– e o desvelado não foi a pura poesia do amor

nem entrega, nem dádiva, nem nada enternecedor


mas também não apenas enviesamento da malícia

nem tão-pouco simples ressentimento embuçado

nem sequer pura apetência de prazer pela perfídia

ou tão só enfastiamento do mais farto, mais cansado

– tudo meros efeitos, meras consequências

a culminar a distorção das suas existências


Para lá das mazelas, dos vícios, das doenças

para lá de apetites de saciação ou de vingança

para lá de depressões, das euforias, das pertenças

para lá da miséria da pobreza ou da abastança

apenas uma força a impelir o animal

sem quaisquer objetivos ou conceção de bem ou mal


Impulsionado para devir e advir

qual o sentido de afirmar o indivíduo

querer conquistar, dominar e persistir

competindo com todo o múltiplo contradito

como se pensar, agir, fazer, continuar a insistir

tivesse sentido no seio do infinito?


E tal força indómita imparável

faísca acima das máscaras um instante

antes de ser disfarçada pelo treino

que impõe à camuflagem ser constante

– mas fica a pairar sobre todo o existente

o transparecido num olhar que foi olhado

até ser ocultado eternamente

pelo véu que até o olhar já disfarçado

cobrirá como se nunca tivesse alguma vez brilhado

definitivamente emudecido de significação

definitivamente apagado

gravilha deitada na estrada antes de receber alcatrão


© Joaquim Lúcio, 2020

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