Se a máscara mascara a máscara
longamente treinada para dissimular
o que se é, o que se faz, como se faz
até parecer natural a camuflagem
poderá acaso denunciar a natureza
sua motivação, objetivos, sua voragem?
Que disparates suscitam inusitadas situações...
Não há limites para a justaposição de máscaras
e uma nova apenas adiciona mais simulações
à artificialidade tão oleada que parece natural
até serem irreconhecíveis as específicas feições
de qualquer coisa que possa passar por um real
Mas estas máscaras destacam o olhar
sublinham as retinas, as íris, as pupilas
até tornar difícil a tecitura do falar
a insinuação do jeito e do trejeito
o treino do sorriso fingir e enganar
como sempre cada ardil foi feito
É difícil ao olhar mentir
sem se articular parte do todo
da composição, da encenação
quando é fragmentado pela máscara
e se destaca solitária a visão
sem enfeites, sem enquadramento, sem decoração
A boca pode mentir ou tergiversar
os gestos podem seduzir e até aliciar
o decote pode insinuar a promessa de delícia
mas a máscara ao realçar o olhar
sobressai brilho, sobressai tensão, sobressai intensidade
até não poder esconder do ódio
do rancor, do despeito, da inveja, a verdade
É necessário um novo treino marcial
um treino de simulação do isolado olhar
para não dissolver a urdidura social
de relações e afetos que preciso é aparentar
para alimentar relações, alianças e negócios
ou cimentar conspirações, sociedades e consórcios
E na verdade o olhar bem pode mentir
sem precisar de quaisquer apoios, adereços
e bem consegue se adaptar à situação
dispensar os suportes devindos habituais
até conseguir replicar o brilho da paixão
ao olhar para as entidades que despreza mais
Nunca se poderá deixar a verdade despontar
por trás da máscara até olhos alcançar
nunca se poderá permitir o amanhecer
da denúncia de motivos intenções e fins
nunca se poderá tolerar o desígnio se esclarecer
antes dos passos atingirem, de alvos, os confins
A espécie foi longamente adestrada na mentira
até selecionar os melhores genes da ocultação
Quem espera sua transcendência só delira
só desespero pode fazer desejar revelação
No final, superar-se-ão todas as fraquezas
e apenas se reforçarão, da mentira, as destrezas
Mas, por agora, por um momento, um instante
um lampejo de verdade poder-se-á entrever
entre o descuido de quem não treinou bastante
para que no olhar nada de real se pudesse ver
– e o desvelado não foi a pura poesia do amor
nem entrega, nem dádiva, nem nada enternecedor
mas também não apenas enviesamento da malícia
nem tão-pouco simples ressentimento embuçado
nem sequer pura apetência de prazer pela perfídia
ou tão só enfastiamento do mais farto, mais cansado
– tudo meros efeitos, meras consequências
a culminar a distorção das suas existências
Para lá das mazelas, dos vícios, das doenças
para lá de apetites de saciação ou de vingança
para lá de depressões, das euforias, das pertenças
para lá da miséria da pobreza ou da abastança
apenas uma força a impelir o animal
sem quaisquer objetivos ou conceção de bem ou mal
Impulsionado para devir e advir
qual o sentido de afirmar o indivíduo
querer conquistar, dominar e persistir
competindo com todo o múltiplo contradito
como se pensar, agir, fazer, continuar a insistir
tivesse sentido no seio do infinito?
E tal força indómita imparável
faísca acima das máscaras um instante
antes de ser disfarçada pelo treino
que impõe à camuflagem ser constante
– mas fica a pairar sobre todo o existente
o transparecido num olhar que foi olhado
até ser ocultado eternamente
pelo véu que até o olhar já disfarçado
cobrirá como se nunca tivesse alguma vez brilhado
definitivamente emudecido de significação
definitivamente apagado
gravilha deitada na estrada antes de receber alcatrão
Sem comentários:
Enviar um comentário