Se a sombra do passado se apagasse
na redenção do tempo
poderia acaso respirar
e uma vez mais encantar
as formas inorgânicas da matéria
com o sopro de uma estranha vida
oniricamente transcendente
à rotina muda das coisas habituais
mas olho e as coisas estão baças
sem brilho
incapazes de falar
incapazes de se abrirem à penetração do olhar
para lá da referência obtusa
da significação banal
cansadas da familiaridade calada
das coisas já olhadas
mesmo se vistas pela primeira vez
a alma apaga-se
sem voz capaz de a projetar
impotente de vontade além
ou resistência aqui
vogando com os dias sempre iguais
mesmo se as notícias
proclamam a absoluta novidade
de um acontecimento inusitado
as ocorrências mediáticas todas
reduzidas a uma sempre mesma indiferença
grilhões do passado
pesam e prendem no avanço da mente
que se arrasta aos tropeções
sem divisar sentido ou direções
cegueira sem olfato ou audição
reduzida a paladar e tato
toupeira fuçante de terreno alheio
sem fito ou desejo algum
poderá o funeral da poesia
ajudar alguma ressurreição
pela limitação prosaica do discurso?
poderá a opacidade que caiu sobre as coisas todas
ser penetrada pelo aguilhão da argumentação
e pelo bisturi da análise?
poderá reluzir o movimento a vida
pela imagem foto ou cinematográfica?
mesmo frente à orgia gráfica
as almas estão dormentes
nem uma nota é tocada
nas cordas da vontade
a hiperestimulação
não despertou ninguém
antes tornou todos insensíveis
a qualquer beleza ou intensidade
antes tornou todos incapazes
da mais ínfima transcendência
velam-se de novo as palavras
os seres os atos o futuro
e o véu cai pesado
sem que haja força capaz de o levantar
se a sombra do passado se apagasse
ainda persistiria o desgaste
orgânico dos tecidos
e a impossibilidade de reiniciar a vida
por isso morre a poesia
sem que nada nasça
que não a impessoalidade funcional
de um mundo de multiplicadas abstrações
capaz de calar toda e qualquer disfunção
na máquina global da operacionalidade técnica
sem abertura ao outro
sem abertura a nada
sem terra que habitar
nem homem que a habite
eternamente caladas
as vozes das coisas todas
todas as coisas isoladas operáveis
num vazio de espaço sideral
onde sem som nada se poderá dizer
nada se poderá contar
nada se encantará
dejetos inúteis após a operação
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