"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

domingo, 22 de novembro de 2020

Se a sombra do passado se apagasse


Se a sombra do passado se apagasse

na redenção do tempo

poderia acaso respirar

e uma vez mais encantar

as formas inorgânicas da matéria

com o sopro de uma estranha vida

oniricamente transcendente

à rotina muda das coisas habituais

 

mas olho e as coisas estão baças

sem brilho

incapazes de falar

incapazes de se abrirem à penetração do olhar

para lá da referência obtusa

da significação banal

cansadas da familiaridade calada

das coisas já olhadas

mesmo se vistas pela primeira vez

 

a alma apaga-se

sem voz capaz de a projetar

impotente de vontade além

ou resistência aqui

vogando com os dias sempre iguais

mesmo se as notícias

proclamam a absoluta novidade

de um acontecimento inusitado

as ocorrências mediáticas todas

reduzidas a uma sempre mesma indiferença

 

grilhões do passado

pesam e prendem no avanço da mente

que se arrasta aos tropeções

sem divisar sentido ou direções

cegueira sem olfato ou audição

reduzida a paladar e tato

toupeira fuçante de terreno alheio

sem fito ou desejo algum

 

poderá o funeral da poesia

ajudar alguma ressurreição

pela limitação prosaica do discurso?

poderá a opacidade que caiu sobre as coisas todas

ser penetrada pelo aguilhão da argumentação

e pelo bisturi da análise?

poderá reluzir o movimento a vida

pela imagem foto ou cinematográfica?

 

mesmo frente à orgia gráfica

as almas estão dormentes

nem uma nota é tocada

nas cordas da vontade

a hiperestimulação

não despertou ninguém

antes tornou todos insensíveis

a qualquer beleza ou intensidade

antes tornou todos incapazes

da mais ínfima transcendência

 

velam-se de novo as palavras

os seres os atos o futuro

e o véu cai pesado

sem que haja força capaz de o levantar

se a sombra do passado se apagasse

ainda persistiria o desgaste

orgânico dos tecidos

e a impossibilidade de reiniciar a vida

  

por isso morre a poesia

sem que nada nasça

que não a impessoalidade funcional

de um mundo de multiplicadas abstrações

capaz de calar toda e qualquer disfunção

na máquina global da operacionalidade técnica

sem abertura ao outro

sem abertura a nada

sem terra que habitar

nem homem que a habite

eternamente caladas

as vozes das coisas todas

todas as coisas isoladas operáveis

num vazio de espaço sideral

onde sem som nada se poderá dizer

nada se poderá contar

nada se encantará

dejetos inúteis após a operação

resíduos tóxicos que ficaram por tratar 



Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IV, petrificação pp. 274-276

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