"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

O subúrbio já tem hoje luzes de natal


O subúrbio já tem hoje luzes de natal

como se fosse cidade de província ou capital

mas as suas entranhas apodrecem tanto ou mais que antigamente

estranhas à maquilhagem comercial presente

 

O subúrbio despeja força de trabalho nas empresas

e recebe-a gasta, exaurida, esvaziada, pela noite

Só isso se regista nos anais, nos estudos, nas notícias

cidade dormitório, albergue amontoado de fatores de produção

 

mas entre um e outro movimento de massas de gente

há pessoas torturadas pela solidão isolada ou acompanhada

há diversão desesperada, substâncias para apagar a mente

há carnes que buscam alívio para uma existência desolada

há possibilidades canceladas que sonham impossíveis

há conflito que facilmente pode acabar à navalhada

há seres desfigurados, deformados, irreconhecíveis

face ao que foram quando ainda esperavam alvorada

 

No subúrbio, despeja-se a crueldade das vidas amputadas

destinadas a cumprir funções que não lhes dizem nada

decorrendo os seus momentos para finalidades alienadas

impedidas de ser mais e realizar-se na existência projetada

 

O subúrbio deforma o que ainda resta pelo vício

entrega da pressão a seja o que for que ainda alivie

cada noite uma voragem, um abismo, um precipício

e a busca de algo que da destruição ainda desvie

 

Amontoada nos transportes, amontoada nas escolas

amontoada nas manjedouras, amontoada pelos prédios

a gente está tão viciada na sua anulação como pessoas

que a busca mesmo quando poderia outros privilégios

 

e assim se vai amontoar nos bares e discotecas

no inferno dantesco do verão das praias à beira mar

nos centros comerciais, nas festas populares

até no trânsito para ser infeliz noutro lugar

 

Destruídas em toda a possibilidade de existir

há pessoas amordaçadas por trás da massa informe

há desejos, sonhos, anseios que tiveram que preterir

para poder sobreviver, para poder matar a fome

 

Rancor, despeito, inveja, ganância, cupidez

tudo isso se acumula nos estratos sedimentares

sobre que se ergue o subúrbio em toda a sua sordidez

acumulando corrupção em diversos patamares

 

mas, mais fundo, comum a toda a massa do subúrbio

existe um estrato de tragédia, sacrifício e beleza

um estrato uniforme, subterrâneo, insuscetível de distúrbio

um estrato de indelével e incomensurável tristeza

 

Desse estrato, autêntico, tão comum quanto pessoal

provém o sentimento que toda a agitação acalma

quando as pessoas veem as suas próprias luzes de natal

e lhes põe lágrimas nos olhos, sorrisos na alma

 

Mesmo não passando de maquilhagem comercial

mesmo continuando a crescer a podridão

importa que haja atuação paliativa medicinal

que lhes suavize uma existência de aflição

 

Nesta gente simples, acostumada à agrura

tão pouco basta para se inundar de ternura 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. III, terra, pp. 120-121.

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