"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

A morte vê e espera paciente ao fundo


A morte vê e espera paciente ao fundo,

com ironia velada e calma em seus lábios,

a fuga a si reafirmante de tudo e mundo

até à aceitação plácida ou sim dos sábios

 

Tudo concorre ou se atrai ao lhe fugir,

passionais aléns visando satisfação,

mas persistente a sensação de tudo a rir

como se cada distinto fosse em si mesmo a negação da distinção

aniquilando-se pelo ato próprio de autonomia e afirmação

 

Se a morte é em cada gesto expletiva e vida,

a fuga à vida não deixa entanto de ser morte,

não sendo contudo jamais o que é e visa

– a sedação completa relativa ao final corte

 

O hiato preenchendo-se se alarga

e tudo se deglutido se esvai e escapa

pois a carência reduz a si o ambicionado

e a conquista só domina o dominar,

o lado pela carência determinado,

só domina o lado pobre, o violado,

e não o que se queria quando visado por livre e só por livre amado

 

Ah! quanto a bela saga irasciva da razão

supera a apetição minuciosa dedutiva ao infinitesimal

embora sendo ambas da mesma aspiração

e, aspirando, determinem o mesmo visionado ideal:

o eterno e incondicionado universal!

 

E é verdade que esse escapa à morte

como tudo o que nunca esteve vivo,

embora seja sempre apenas o produto

de cada contexto histórico relativo

 

Se os analíticos tentam escapar pelo atómico,

os metafísicos procuram superar pelo sistémico,

ambos abstraindo-se da vida de modo cómico

e esperando atingir o imortal pelo anémico

 

Pior ainda, o místico procura pela negação

encontrar uma outra superior afirmação,

apenas buscando do lado de trás nada

o vazio que já em si à partida se encontrava

 

Claro que lhe pode chamar uma outra coisa,

há sempre mil formas de decorar a fealdade

e apresentá-la como algo superior e transcendente,

sendo ao menos maior porque insuflada de vaidade

e animada a autoestima pela devoção do crente

 

Vê bem a morte que tudo o que lhe escapa,

tudo o que visa encontrar a si alternativa,

visando transcendê-la ou evitá-la à socapa,

só estraga a vida, fazendo-a menos vivida

 

E se acaso tecnicamente se encontrar

num futuro mais ou menos longínquo

uma forma de literalmente a evitar,

o resultado não poderá deixar de ser o mais iníquo

 

Uma vida sem morte será uma vida sem vida,

sem renovação, seleção ou adaptação,

uma exaustão de tudo só para ser mantida,

incapaz de qualquer geração ou procriação

 

Uma ausência total de existência,

incapacidade de ser projeto, de ser lançado,

como toda a inorgânica persistência,

sem temporalidade, duração de um mero dado

 

Ao escapar à morte só se escapa à vida

e esta bem poderá ser totalmente liquidada

se a avidez sobrepujar qualquer sensatez comedida

e preferir tudo aniquilar para fugir ao nada

 

E a morte redobra o sorriso a perder a compostura

pois se não há vida sem morte, talvez haja morte sem vida

– que busquem vorazes da vida a caricatura

e a morte lá estará para lhes dar a prometida

 

e, se nos longos corredores da persistência,

a insuportabilidade da duração sucessiva

abrir enfim as portas escancaradas da demência,

será ainda a morte a providenciar uma saída

 

misericordiosa e irónica, de modo algum ressentida,

a morte, no fim de tudo, estará sempre ao dispor da vida


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. III, terra, pp. 321-323.

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