"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

domingo, 22 de novembro de 2020

Era uma vez uma rapariga com sonhos tradicionais


Era uma vez uma rapariga com sonhos tradicionais

alimentados talvez pela Disney e por contos infantis

daqueles entretanto banidos até em escolas bem convencionais

por darem a ideia de mulheres passivas e só machos viris

 

Não que se visse a si como princesa ou se sentisse muito feminina

segundo rótulos conservadores que se continuam afinal a consagrar

Andava com roupa dita arrapazada e lésbica era considerada

por outros e pelo círculo feminista em que se conseguiu integrar

 

Morena alva corpo esguio olhar brilhante sorriso encantador

capaz se lhe aprouvesse de seduzir qualquer um que lhe interessasse

teve dificuldade em se integrar em qualquer círculo alternativo

que não implicasse familiaridade com grunhos sempre em busca de abusar

 

Secretamente porém desejava viver paixão com homem ou rapaz

e às suas mãos se entregar como se não existisse no mundo mais ninguém

mas ocultava no seu grupo o anseio tentando abrir-lhe uma porta

afirmando hesitantemente bissexualidade até ver nas outras o desdém

 

Percebeu depois nas redes que o B era muito mal visto na comunidade

considerado manifestação de covardia ou hesitação de assumir a posição

pois um coletivo assim não admite livre abrir-se à possibilidade

considerando forma de ativismo assumir identidade e orientação

 

Percebeu cada novo rótulo como emblema a que cada qual se tinha de subjugar

quando entrava assumidamente no mercado que rotular regula oferta e procura

sendo sob bandeira de libertação uma forma de para sempre se limitar

sob pena de se ver sancionada pela censura imediata da comunal ditadura

 

Por algum tempo aderiu ou conformou-se e até de si própria ocultou os sonhos

envolveu-se com uma rapariga loura essa sim por si notoriamente apaixonada

trocou beijos e abraços e resistiu como lhe foi possível a avançar

por se considerar secretamente para outro tipo de relação guardada

 

A outra sofria com a resistência sofria e sentia-se usada

porque percebia não haver dela a mesma entrega

que ela estava pronta a exceder cada vez mais para a amada

numa paixão quanto mais contida mais cega

 

Cresceu na loura ressentimento cresceu nela o ciúme

ainda sem alvo preciso cresceu a suspeita cresceu o despeito

até tudo se verificar perante seus olhos incendiados lume

espiando-a a coquetear um homem maduro galante sem defeito

 

para lá de ser casado ser mais velho e não ser ela

o charme em pessoa e a outra a oferecer-se de palmas abertas

como se quisesse ser possuída já ali no meio da ruela

como se quisesse urgentemente as suas coxas ter cobertas

 

Perseguiu-a de esquina em esquina de bairro em bairro

até se assegurar que não era hoje não era já ficava para um outro dia

e sempre mais desesperada sempre mais ansiosa e melindrada

e isso mais afastava a outra que cada vez menos a suportava

 

Pior conseguiu saber que o homem estava separado

iniciara processo de divórcio lutava pela tutela de uma filha

claro o cobridor perdera onde o meter e daí estar interessado

em arranjar fêmea fácil de seduzir e de lhe abrir braguilha

 

E viu a sua amada tornar-se um cachorrinho atrás do macho

a buscar corresponder-se aos seus gostos para lhe agradar

a desencantar saias e decotes e tops e vestidos para o aliciar

e estava linda e não conseguia evitar cada vez mais a amar

 

Certo dia soube que iriam a uma grande e sofisticada festa

e conseguiu também nela se infiltrar para não deixar de a seguir

um pouco disfarçada para não ser reconhecida pela amada

e morreu a vê-la deslumbrante num longo vestido para noite requintada

 

Viu-a dançar seduzir embebedar-se como se estivesse a bradar

eu sou tua estou-me a pôr molinha para tu me penetrares

viu-os beijarem-se viu ele pôr as mãos onde as suas nunca puderam chegar

e subirem para os quartos que ficavam nos superiores andares

 

A sua alma chorou, berrou, bramou e morreu mais de uma vez

e no seu peito imaginou a sua amada imaginou lá em cima a nudez:

 

            Brancura dos teus peitos despontados flor para sorver

            deleite o leite que aleita os lábios do larápio ao laréu

            e ele navega-te o ventre os braços as coxas indolente

            devia ser detido devia ser censurado devia ser um réu

 

            Teu desejo é traição teu desejo é sórdido teu desejo é desejo

            como te podes entregar a esse porco que não te ama como eu

            ele não merece o teu regaço o teu amor sequer teu beijo

            quer apenas faturar-te contar mais uma cona que fodeu

 

            Não não suporto ele está a roubar a tua inocência e o meu amor

            quem dera um punhal afiado e a possibilidade de o espetar

            matá-lo-ia cem vezes até desintegrar a memória da sua carne

            até me banhar de seu sangue purificando-me de vingança

 

            Minha morena alva lua astro de prata que me orienta o caminho

            queria proteger-te com infinitos de carícia e de ternura

            queria guardar-te para sempre no nosso sagrado ninho

            queria seguir de mãos dadas e alcançar nos teus braços a ventura

 

            Estou a ver-te a ofereceres-te em poses ordinárias

            com uma expressão depravada desconhecida pela cara

            Estou a ver ele a zurzir-te e a chamar-te indecências várias

            e tu entregas-te à humilhação e toda a tua abertura se escancara

 

            Martela-te carnes fofas ciosas de serem agarradas nos quadris

            e o teu rosto contorce-se de volúpia e de regalo

            ao se entregar despudorada às investidas mais viris

            internamente apertando roçando gozando o falo

 

            e ele enche-te de nhanha até ficar bem satisfeito

            e tu deleitas-te em ficares para sempre conspurcada

            o encantamento do amor quebrado o sonho pueril desfeito

            antes morrer que prosseguir de ti para sempre despojada

 

Chorou pelos passeios pelas ruas pelas estradas

chorou numa só noite infinitas madrugadas

e o pranto não parava quando chegou a alvorada

pungente sempre o poema que no seu choro se expressava

 

Mais tarde sem saber como junto do grupo acabara

e tanto insistiram que tudo o que se passou contou

Todas ficaram vexadas ultrajadas não com ela com a outra

que tão bem as intrujara tão bem as enganou

 

Como pudera entregar-se como égua em cio ao garanhão

como pudera trair de tal forma a namorada

como pudera aliciar sem vergonha a penetração

e ter-se deliciado a ser repugnantemente violada

 

Sim porque para o grupo toda e qualquer penetração

era um estupro uma violência uma agressão sexual

e ela estava alcoolizada uma menor à mercê de violação

havia que fazer queixa crime público sexo não consensual

 

Lá a convenceram a denunciar o caso na polícia

enquanto alastravam pela rede a criminal denúncia

até pela tarde verem a morena na mais completa ignorância

a respirar felicidade em passos ligeiros quase a esvoaçar

 

Dirigiram-lhe apenas palavras da mais formal circunstância

sentindo que o que fora feito não podia ter aceitação

e ela nada notou exclusivamente concentrada na radiância

da euforia de ver o sonho da sua vida alcançar realização

 

Os seus olhos enchiam-se de auroras e sóis e de destino

e eram a única prova de um amor que ela julgava clandestino:

 

                        Eu danço no firmamento

                        canções de amor e de luz

                        navegam doidos no vento

                        meus frágeis úberes nus

 

                        Meu amado só mordisca

                        e desliza pelo ventre

                        lambe lábios e petisca

                        o promontório carente

 

                        O gozo atira-me em voo

                        para outra dimensão

                        onde toda eu me escoo

                        deleite dissolução

 

                        Roço na derme dos mundos

                        abre-se húmida a corola

                        até meus antros meus fundos

                        caminhos onde o recolha

 

                        Universo de delícias

                        recebe-me no regaço

                        trocando entre nós carícias

                        fora de tempo e de espaço

 

                        Adormeço no seu corpo

                        sonhos sem figuração

                        fluidos ao longo do dorso

                        embalo navegação

 

                        Acordo toda dormente

                        enrodilhada no amado

                        nem sei qual é ou qual sente

                        qual corpo e alma qual lado

 

                        Entregar-me-ei ao amado

                        as vezes que ele quiser

                        expurgar-me-ei em pecado

                        pagã sagrada mulher

           

                        Conheci o meu destino

                        ao conhecer meu amado

                        segui-lo será meu signo

                        minha ventura meu fado

 

                        Relembro-me do seu rosto

                        e meu espírito sorri

                        Posso morrer de desgosto

                        porque feliz já vivi

 

Em breve a polícia se acercou dela extraiu-lhe um relato

menor alcoolizada apesar de alegar consentimento

e num instante viu acusado o seu amado de facto

sem perceber de onde vinha a acusação qual o fundamento

 

Com dezassete anos a acusação não deu em nada

mas chegou para a ex do amado se aproveitar da situação

alegando abuso da filha para lhe ganhar tutela

fazendo-o afastar-se da morena recusar continuação

 

Ela desesperou encontrou-o implorou recomeçarem

ao negar-se chamou-o de tudo de covarde de traidor

mas não conseguiu evitar a consequência de acabarem

deixando-a desfeita por ter perdido o seu primeiro amor

 

A depressão continuou por longa duração

sempre triste sempre reservada sempre negação:

 

                        Tinha a vida toda entre as minhas mãos

                        e nem sei como ela esfumou-se no ar

                        Nada fiz e os esforços foram vãos

                        p’ra ter acontecido ou acabar

 

                        Covarde homem a que tudo entreguei

                        penetrar a menina e descoberto

                        fugir ao amor ao prazer à lei

                        e abandonar-me em caixão entreaberto

 

                        Vida escoa-se entre os dedos sob os passos

                        cada instante é igual a outro instante

                        não há esforços só restam os cansaços

                        e a tristeza é no peito uma constante

 

                        Só me resta uma esperança ilusória

                        que possa tudo por aí se alterar

                        se revele a situação provisória

                        e o amado queira ou possa enfim voltar

 

De tanto se arrastar pelos cantos e caminhos

acabou consolada pela loura que nada revelou

que lhe deu conforto beijos abraços e carinhos

até que a morena nela completamente confiou

 

E assim acabaram a beber até a morena soçobrar

não conseguindo a loura resistir a despi-la

para dos mais recônditos recantos desfrutar

fazendo a adormecida surpreendida acordar

 

Ficou em choque primeiro depois enfurecida

de suspeita em suspeita surgiu-lhe a ideia na cabeça

fora a loira a responsável de ter destruído a sua vida

afinal no caso só o instigador faltava como peça

 

Afinal fora ela própria que com a sua vida acabara

ao permitir intimidades várias com tal desprezível ser

que ainda por cima fizera consigo o que ao outro acusara

violá-la adormecida e alcoolizada até mais não poder

 

A insuportabilidade da situação cada vez mais a afligia

a loira tentava aplacá-la mas de forma alguma conseguia

até que abriu a janela para a rua e num ímpeto atirou-se

do 6º andar para assegurar que a sua dor desaparecia

 

Nem conseguiram berrar morena ou loira e o impacto

só atraiu algumas cabeças que nas traseiras nada distinguiram

A loira desceu precipitadamente como um jacto

até chegar ao corpo que lá em cima aquelas cabeças não viram

 

Ajoelhou-se e com o líquido encefálico a sair

nem precisou de qualquer óbito confirmar

Um som gutural entrecortado conseguiu-se ouvir

antes de desatar copiosamente a berrar e a chorar

 

Retirou da sua bolsa presa às calças canivete

seus gestos pareciam mecânicos como marionete:

 

            Que fiz eu meu amor a ti que eras o coração da vida?

            Quanto mal fiz por te querer só para mim

            destruí teu sonho destruí pureza destruí-te querida

            e agora tudo o que poderias ser chegou ao fim

 

            Chegou ao fim a magia e o encantamento do luar

            Chegou ao fim o brilho das folhas à luz do dia

            Chegou ao fim o sentido de ter projetos e se lançar

            no mundo das relações do sofrimento da alegria

  

            Chegou ao fim o movimento do teu peito ao respirar

            Chegou ao fim a voz mais importante que a conversa

            Chegou ao fim a expressão e intensidade do olhar

            Chegou ao fim o desejo a fantasia e a promessa

 

            Paredes gigantescas destes prédios da ralé

            porque não caem sobre nós e nos sepultam já?

            Vale a pena algo ainda se manter de pé

            se minha amada neste corpo neste despojo já não está?

 

            Quem dera agora a toda a volta a derrocada

            jazer no meio das ruínas da cidade inteira

            as ruas não merecem existir se as não percorres

            no decurso do mundo deveria ser esta a hora derradeira

 

            Tivesse nas mãos agora o botão da bomba

            e era agora que a humanidade conheceria o fim

            esta espécie é perversa pérfida deformada romba

            somos filhos de Herodes e netos de Caim

 

            Quero lá saber de tudo o resto se já não te tenho a ti

            só sinto esta rocha dentro do meu peito

            e dói ser possível haver no mundo alguém que ri

            se todo o valor todo o sentido foi desfeito

 

            Quanta pressão é possível sem o peito rebentar

            é o próprio cadáver que do coração tomou lugar

            nem o choro alivia o peso alivia a massa alivia a dor

            as lágrimas não lavam o sangue nem a desventura do amor

 

            É necessário suplícios sacrifícios rituais sangrentos

            há que torturar imensidões de pureza e inocência

            há que purgar o espírito carpir um dilúvio de lamentos

            até ser possível alguém merecer uma existência

  

            Começarei a realizar a punição o sacrifício

            nos meus pulsos faço o mais profundo corte

            a torrente do meu sangue purifica o malefício

            e recebo serena a bênção imerecida da morte

 

            Tributo do meu arrependimento e meu amor

            este sangue pouco paga o crime à minha amada

            seriam precisos rios de sangue para suavizar o horror

            e ainda assim o sacrifício nunca valeria nada

 

            Os meus atos podem ter sido pérfidos

            e os meus desejos podres e corruptos

            mas com esta vida que te entrego juro

            que o meu amor por ti foi absoluto e puro

 

Caiu morta no cadáver numa cruz levemente deformada

sobre o sangue que sobre o corpo havia derramado

e assim se uniu na morte a não correspondida apaixonada

à sua adorada amada como sempre tinha afinal sonhado

 

As duas ali ficaram símbolo do amor eternamente malogrado

símbolo de vida de desejo luta desgosto culpa e castigo

enquanto o galã traindo o amor que lhe fora consagrado

transportará até ao fim dos dias a verdadeira morte consigo 

 

Era uma vez uma rapariga com sonhos tradicionais

e uma outra que pela primeira tinha sentimentos especiais

Encontraram o amor eterno que buscavam numa madrugada

embora de forma insólita trágica e assaz inusitada 



Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. II, abertura, pp. 197-207.

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