Era uma vez uma rapariga com sonhos tradicionais
alimentados talvez pela Disney e por contos
infantis
daqueles entretanto banidos até em escolas bem
convencionais
por darem a ideia de mulheres passivas e só machos
viris
Não que se
visse a si como princesa ou se sentisse muito feminina
segundo
rótulos conservadores que se continuam afinal a consagrar
Andava com roupa dita arrapazada e lésbica era
considerada
por outros e
pelo círculo feminista em que se conseguiu integrar
Morena alva corpo esguio olhar brilhante sorriso
encantador
capaz se lhe aprouvesse de
seduzir qualquer um que lhe interessasse
teve dificuldade em se integrar em qualquer círculo
alternativo
que não implicasse familiaridade com grunhos sempre em busca de abusar
Secretamente
porém desejava viver paixão com homem ou rapaz
e às suas mãos se entregar como se não existisse no mundo mais ninguém
mas ocultava
no seu grupo o anseio tentando abrir-lhe uma porta
afirmando
hesitantemente bissexualidade até ver nas outras o desdém
Percebeu depois nas redes que o B
era muito mal visto na comunidade
considerado
manifestação de covardia ou hesitação de assumir a posição
pois um coletivo assim não admite livre abrir-se à possibilidade
considerando forma de ativismo
assumir identidade e orientação
Percebeu cada novo rótulo como emblema a que cada qual se tinha de
subjugar
quando entrava assumidamente no mercado que rotular regula oferta e
procura
sendo sob
bandeira de libertação uma forma de para sempre se limitar
sob pena de se ver sancionada pela censura imediata da comunal ditadura
Por algum tempo aderiu ou
conformou-se e até de si própria ocultou os sonhos
envolveu-se com uma rapariga
loura essa sim por si notoriamente apaixonada
trocou
beijos e abraços e resistiu como lhe foi possível a avançar
por se
considerar secretamente para outro tipo de relação guardada
A outra sofria com a resistência sofria e sentia-se
usada
porque percebia não haver dela a mesma entrega
que ela estava pronta a exceder cada vez mais para
a amada
numa paixão quanto mais contida mais cega
Cresceu na loura ressentimento cresceu nela o ciúme
ainda sem alvo preciso cresceu a suspeita cresceu o
despeito
até tudo se verificar perante seus olhos
incendiados lume
espiando-a a
coquetear um homem maduro galante sem defeito
para lá de ser casado ser mais velho e não ser ela
o charme em pessoa e a outra a oferecer-se de
palmas abertas
como se quisesse ser possuída já ali no meio da
ruela
como se quisesse urgentemente as suas coxas ter
cobertas
Perseguiu-a de esquina em esquina de bairro em
bairro
até se
assegurar que não era hoje não era já ficava para um outro dia
e sempre mais desesperada sempre mais ansiosa e
melindrada
e isso mais afastava a outra que cada vez menos a
suportava
Pior conseguiu saber que o homem estava separado
iniciara processo de divórcio lutava pela tutela de
uma filha
claro o cobridor perdera onde o meter e daí estar
interessado
em arranjar fêmea fácil de seduzir e de lhe abrir
braguilha
E viu a sua amada tornar-se um cachorrinho atrás do
macho
a buscar corresponder-se aos seus gostos para lhe
agradar
a desencantar saias e decotes e tops e vestidos
para o aliciar
e estava linda e não conseguia evitar cada vez mais
a amar
Certo dia soube que iriam a uma grande e
sofisticada festa
e conseguiu
também nela se infiltrar para não deixar de a seguir
um pouco disfarçada para não ser reconhecida pela
amada
e morreu a
vê-la deslumbrante num longo vestido para noite requintada
Viu-a dançar seduzir embebedar-se como se estivesse
a bradar
eu sou tua estou-me a pôr molinha para tu me
penetrares
viu-os beijarem-se viu ele pôr as mãos onde as suas nunca puderam chegar
e subirem para os quartos que ficavam nos
superiores andares
A sua alma chorou, berrou, bramou e morreu mais de uma
vez
e no seu
peito imaginou a sua amada imaginou lá em cima a nudez:
Brancura
dos teus peitos despontados flor para sorver
deleite
o leite que aleita os lábios do larápio ao laréu
e ele navega-te o ventre os braços as
coxas indolente
devia
ser detido devia ser censurado devia ser um réu
Teu desejo é traição teu desejo é
sórdido teu desejo é desejo
como te podes entregar a esse porco
que não te ama como eu
ele não merece o teu regaço o teu
amor sequer teu beijo
quer
apenas faturar-te contar mais uma cona que fodeu
Não não suporto ele está a roubar a
tua inocência e o meu amor
quem dera um punhal afiado e a
possibilidade de o espetar
matá-lo-ia cem vezes até desintegrar
a memória da sua carne
até me banhar de seu sangue
purificando-me de vingança
Minha morena alva lua astro de prata
que me orienta o caminho
queria
proteger-te com infinitos de carícia e de ternura
queria
guardar-te para sempre no nosso sagrado ninho
queria seguir de mãos dadas e
alcançar nos teus braços a ventura
Estou
a ver-te a ofereceres-te em poses ordinárias
com
uma expressão depravada desconhecida pela cara
Estou a ver ele a zurzir-te e a
chamar-te indecências várias
e tu entregas-te à humilhação e toda
a tua abertura se escancara
Martela-te carnes fofas ciosas de serem agarradas nos quadris
e
o teu rosto contorce-se de volúpia e de regalo
ao
se entregar despudorada às investidas mais viris
internamente
apertando roçando gozando o falo
e
ele enche-te de nhanha até ficar bem satisfeito
e
tu deleitas-te em ficares para sempre conspurcada
o encantamento do amor quebrado o
sonho pueril desfeito
antes
morrer que prosseguir de ti para sempre despojada
Chorou pelos passeios pelas ruas pelas estradas
chorou numa só noite infinitas madrugadas
e o pranto não parava quando chegou a alvorada
pungente sempre o poema que no seu choro se
expressava
Mais tarde sem saber como junto do grupo acabara
e tanto insistiram que tudo o que se passou contou
Todas ficaram vexadas ultrajadas não com ela com a
outra
que tão bem as intrujara tão bem as enganou
Como pudera entregar-se como égua em cio ao
garanhão
como pudera trair de tal forma a namorada
como pudera aliciar sem vergonha a penetração
e ter-se deliciado a ser repugnantemente violada
Sim porque para o grupo toda e qualquer penetração
era um estupro uma violência uma agressão sexual
e ela estava alcoolizada uma menor à mercê de
violação
havia que fazer queixa crime público sexo não consensual
Lá a convenceram a denunciar o caso na polícia
enquanto alastravam pela rede a criminal denúncia
até pela tarde verem a morena na mais completa
ignorância
a respirar felicidade em passos ligeiros quase a
esvoaçar
Dirigiram-lhe apenas palavras da mais formal
circunstância
sentindo que o que fora feito não podia ter
aceitação
e ela nada notou exclusivamente concentrada na
radiância
da euforia de ver o sonho da sua vida alcançar
realização
Os seus olhos enchiam-se de auroras e sóis e de
destino
e eram a única prova de um amor que ela julgava
clandestino:
Eu
danço no firmamento
canções
de amor e de luz
navegam
doidos no vento
meus
frágeis úberes nus
Meu
amado só mordisca
e
desliza pelo ventre
lambe
lábios e petisca
o
promontório carente
O
gozo atira-me em voo
para
outra dimensão
onde
toda eu me escoo
deleite
dissolução
Roço
na derme dos mundos
abre-se
húmida a corola
até
meus antros meus fundos
caminhos
onde o recolha
Universo
de delícias
recebe-me
no regaço
trocando
entre nós carícias
fora
de tempo e de espaço
Adormeço
no seu corpo
sonhos
sem figuração
fluidos
ao longo do dorso
embalo
navegação
Acordo
toda dormente
enrodilhada
no amado
nem
sei qual é ou qual sente
qual
corpo e alma qual lado
Entregar-me-ei
ao amado
as
vezes que ele quiser
expurgar-me-ei
em pecado
pagã
sagrada mulher
Conheci
o meu destino
ao
conhecer meu amado
segui-lo
será meu signo
minha
ventura meu fado
Relembro-me
do seu rosto
e
meu espírito sorri
Posso
morrer de desgosto
porque
feliz já vivi
Em breve a polícia se acercou dela extraiu-lhe um
relato
menor alcoolizada apesar de alegar consentimento
e num instante viu acusado o seu amado de facto
sem perceber de onde vinha a acusação qual o
fundamento
Com dezassete anos a acusação não deu em nada
mas chegou para a ex do amado se aproveitar da
situação
alegando abuso da filha para lhe ganhar tutela
fazendo-o afastar-se da morena recusar continuação
Ela desesperou encontrou-o implorou recomeçarem
ao negar-se chamou-o de tudo de covarde de traidor
mas não conseguiu evitar a consequência de acabarem
deixando-a desfeita por ter perdido o seu primeiro
amor
A depressão continuou por longa duração
sempre triste sempre reservada sempre negação:
Tinha
a vida toda entre as minhas mãos
e
nem sei como ela esfumou-se no ar
Nada
fiz e os esforços foram vãos
p’ra
ter acontecido ou acabar
Covarde
homem a que tudo entreguei
penetrar
a menina e descoberto
fugir
ao amor ao prazer à lei
e
abandonar-me em caixão entreaberto
Vida
escoa-se entre os dedos sob os passos
cada
instante é igual a outro instante
não
há esforços só restam os cansaços
e
a tristeza é no peito uma constante
Só
me resta uma esperança ilusória
que
possa tudo por aí se alterar
se
revele a situação provisória
e
o amado queira ou possa enfim voltar
De tanto se arrastar pelos cantos e caminhos
acabou consolada pela loura que nada revelou
que lhe deu conforto beijos abraços e carinhos
até que a morena nela completamente confiou
E assim acabaram a beber até a morena soçobrar
não conseguindo a loura resistir a despi-la
para dos mais recônditos recantos desfrutar
fazendo a adormecida surpreendida acordar
Ficou em choque primeiro depois enfurecida
de suspeita em suspeita surgiu-lhe a ideia na
cabeça
fora a loira a responsável de ter destruído a sua
vida
afinal no caso só o instigador faltava como peça
Afinal fora ela própria que com a sua vida acabara
ao permitir intimidades várias com tal desprezível
ser
que ainda por cima fizera consigo o que ao outro
acusara
violá-la adormecida e alcoolizada até mais não
poder
A insuportabilidade da situação cada vez mais a
afligia
a loira tentava aplacá-la mas de forma alguma
conseguia
até que abriu a janela para a rua e num ímpeto
atirou-se
do 6º andar para assegurar que a sua dor
desaparecia
Nem conseguiram berrar morena ou loira e o impacto
só atraiu algumas cabeças que nas traseiras nada
distinguiram
A loira desceu precipitadamente como um jacto
até chegar ao corpo que lá em cima aquelas cabeças
não viram
Ajoelhou-se e com o líquido encefálico a sair
nem precisou de qualquer óbito confirmar
Um som gutural entrecortado conseguiu-se ouvir
antes de desatar copiosamente a berrar e a chorar
Retirou da sua bolsa presa às calças canivete
seus gestos pareciam mecânicos como marionete:
Que
fiz eu meu amor a ti que eras o coração da vida?
Quanto
mal fiz por te querer só para mim
destruí
teu sonho destruí pureza destruí-te querida
e
agora tudo o que poderias ser chegou ao fim
Chegou
ao fim a magia e o encantamento do luar
Chegou
ao fim o brilho das folhas à luz do dia
Chegou
ao fim o sentido de ter projetos e se lançar
no
mundo das relações do sofrimento da alegria
Chegou
ao fim o movimento do teu peito ao respirar
Chegou
ao fim a voz mais importante que a conversa
Chegou
ao fim a expressão e intensidade do olhar
Chegou
ao fim o desejo a fantasia e a promessa
Paredes
gigantescas destes prédios da ralé
porque
não caem sobre nós e nos sepultam já?
Vale
a pena algo ainda se manter de pé
se
minha amada neste corpo neste despojo já não está?
Quem
dera agora a toda a volta a derrocada
jazer
no meio das ruínas da cidade inteira
as
ruas não merecem existir se as não percorres
no
decurso do mundo deveria ser esta a hora derradeira
Tivesse
nas mãos agora o botão da bomba
e
era agora que a humanidade conheceria o fim
esta
espécie é perversa pérfida deformada romba
somos
filhos de Herodes e netos de Caim
Quero
lá saber de tudo o resto se já não te tenho a ti
só
sinto esta rocha dentro do meu peito
e
dói ser possível haver no mundo alguém que ri
se
todo o valor todo o sentido foi desfeito
Quanta
pressão é possível sem o peito rebentar
é
o próprio cadáver que do coração tomou lugar
nem
o choro alivia o peso alivia a massa alivia a dor
as lágrimas não lavam o sangue nem a
desventura do amor
É
necessário suplícios sacrifícios rituais sangrentos
há
que torturar imensidões de pureza e inocência
há
que purgar o espírito carpir um dilúvio de lamentos
até
ser possível alguém merecer uma existência
Começarei
a realizar a punição o sacrifício
nos
meus pulsos faço o mais profundo corte
a
torrente do meu sangue purifica o malefício
e
recebo serena a bênção imerecida da morte
Tributo
do meu arrependimento e meu amor
este
sangue pouco paga o crime à minha amada
seriam
precisos rios de sangue para suavizar o horror
e
ainda assim o sacrifício nunca valeria nada
Os
meus atos podem ter sido pérfidos
e
os meus desejos podres e corruptos
mas
com esta vida que te entrego juro
que
o meu amor por ti foi absoluto e puro
Caiu morta no cadáver numa cruz levemente deformada
sobre o sangue que sobre o corpo havia derramado
e assim se uniu na morte a não correspondida
apaixonada
à sua adorada amada como sempre tinha afinal
sonhado
As duas ali ficaram símbolo do amor eternamente
malogrado
símbolo de vida de desejo luta desgosto culpa e
castigo
enquanto o galã traindo o amor que lhe fora
consagrado
transportará até ao fim dos dias a verdadeira morte
consigo
Era uma vez uma rapariga com sonhos tradicionais
e uma outra que pela primeira tinha sentimentos
especiais
Encontraram o amor eterno que buscavam numa
madrugada
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