"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

domingo, 5 de fevereiro de 2023

As redes sociais gritam a solidão

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As redes sociais gritam a solidão
mas não só
também a mutilação sofrida com o passar dos anos
o atropelamento pelo comboio do devir
e nuns as pernas ficaram mancas ou retorcidas
e só dão para rodar numa direção
ou foi atingida a cabeça e a boca deformada
só consegue proferir determinados sons
ou o pescoço anquilosado não se consegue virar
e é penoso estar a rodar constantemente
todo o tronco e cabeça até braços e pernas
e assim o melhor é deixar tudo ficar como já está
E essas entidades ficaram vivas após desastre
embora talvez seja discutível que é a vida
um olho sozinho a abrir e a fechar a pupila
só com pálpebras para ajudar a descansar
um bíceps protuberante após rotura definitiva do tendão
ostensivamente exibindo a masculinidade amputada
um lábio travestido de vagina com botox
perenemente reduzido a simbolização obscena
um dedo incapaz de voltar aos recessos habituais
mas mantendo ainda a sujidade acumulada de transatas investidas
e todos estão vivos, dir-se-iam sencientes
estes pedaços diminutos de seres completos
e continuam a ir para o trabalho e para a casa de banho
são hábitos, é difícil deixá-los só porque já só se é 
olho e bíceps e lábio e dedo
e estão até morte, se forem capazes de a morrer
confinados na sua fragmentação e isolamento de pedaços
e ficaram fixados numa só ideia, num só projeto, numa só obsessão
como um disco de vinil riscado quando tocado pela agulha
uma maquineta que peça partida faz repetir sempre o mesmo movimento
a mesma apresentação vezes sem conta ano após ano a fingir-se aula
a cena de telenovela que repete mil outras de mil outras
o monocórdico discurso político que já nem se sabe se diz algo novo
porque ninguém consegue ouvir outra coisa que não o rotineiro tom 
e todos petrificados nessa única mensagem
sem conseguirem dizer ou sequer pensar qualquer outra coisa
só com a companhia do sentimento de abandono
da absoluta, completa, inconfortável solidão
e é essa solidão que de facto grita desesperada
encravada no único discurso que consegue ter
buscando uma brecha nas paredes da cidade, do asilo, da prisão
ganindo, gemendo, berrando, protestando nas redes sociais
não a mensagem expressa, mas a sua terrível desolação 

E assim um pedaço grita sem fim a sua fé pueril
outro, a indignação por real ou imaginada traição irrelevante
outro, perversões cruéis mascaradas rebeldia
outro, a infinita adoção dita responsável de animais ditos resgatados
outro, redundantes maquilhagens ou exibições ostensivas de frustrada vaidade
outro, o amor muito urbano pela natureza fofinha ou panorâmica
outro, a exibição dos vazios galões de um passado feito de acumular galões
outro, a odiosa repugnância ética pelos ignóbeis carnívoros ditos carniceiros
outro, as espiritualidades que exige normativas em escolas e empresas
outro, o ressentimento de dispensar os outros falando obsessivamente sempre e só deles e para eles
outro, infinitas invetivas contra as medidas sanitárias e as vacinas e o cancelamento fantasioso de direitos, todos sempre fundamentais
outro, a indignação ofendida pelo desrespeito à ética das máscaras, cruzadas, duplas, com viseira, colocadas só assim e tal, tal qual
outro, os idílios nunca realizados de amor, casamento e família
outro, a culinária esmerada com que sonha e a que nunca se pôde dedicar
outro, as exigências liberais no país do público e privado só do Estado parasitários 
outro, as reivindicações esclerosadas de um partido à beira da extinção
outro, o elogio de todos à sua profissão que só afinal os seus colegas subscrevem 
outro, as pinturas geniais que nenhuma galeria aceitou
outro, os poemas de uma vida de malogro e frustração
até mesmo os pares apaixonados gritam o medo da solidão
e os babosos dos seus filhos berram a antecipação do abandono
pois é esse o fundo sobre o qual se ergue a postagem e a dita comunicação
cada qual no seu segmento de subsistência a tentar chegar a alguém
e só conseguindo projetar o seu desespero a gemer, a carpir, a gritar
de forma desavergonhada como não seria capaz noutro lugar

O desespero tornado vício impede-os de sequer sonharem libertar-se da caverna
apenas conseguindo buscar no ecrã a abertura que nunca encontrarão
apesar de todos os malogros transatos, todas as evidências da impossibilidade
neste diálogo de surdos que nunca desiste de berrar sem fim nas redes
Como zombies que, perante o pressentimento de um corpo vivo
se lançam desvairadamente a correr e a agarrar e a morder
também ficam hipnoticamente agarrados ao retângulo luminoso
até o desligarem e, como aqueles, se tornarem passivos e apáticos e vazios 
– mas sozinhos, com as paredes e o chão e as mesas sórdidas que não veem
e a sua natureza de fragmento, de insuficiência, de excremento
– reduzir-se a ser em si, sem possibilidade de reflexão ou sequer consciência
uma regressão ao inorgânico com o organismo e os gestos e as palavras
a funcionarem apenas num qualquer modo vegetativo
fornecendo ainda uma vaga aparência de estar vivo

Arrastar-se para aqui e para ali para poder sobreviver
fazer qualquer coisa mecânica automática para o ordenado
cumprir deveres sexuais como mascar pastilha elástica
tudo sem cor, sem perceção, sem comunicação
e julgar existir, por fim, fora de si, na ilusão da rede dita social
sob a forma de grunho, de gritaria, de vozearia, de aleluia
que julga conectar-se por se juntar num nicho dos idênticos
e cada qual ulular para o seu lado como se fora em conjunto
apenas zombies agitados com tão pouca consciência quanto os indiferentes
absolutamente incapazes de ouvir o que alguém diga
e alheados, aliás, de todo o estranho à sua obsessão

O homúnculo sacia um pouco a sua frustração com o análogo
que carregou um gosto na sua publicação
para logo o olvidar e ir para o seu lado urrar
Não houve nenhum diálogo, nenhuma ligação, nenhuma abertura
apenas algo para garantir que o vício continua
O olho cansado alivia-se com um colírio, o bíceps com um afago
o lábio junta-se a outro para ter a ilusão de algo chupar
e o dedo rebola até reentrância onde pode enfim escarvar
tudo ainda mais deprimente quando aliviado
mais hediondo do que simplesmente estar estropiado
mais ignóbil, muito mais, do que só ser fragmento
e pedaço e partícula e obsessão e fixação sempre reiterada
a satisfação do viciado pelo alívio da tensão
que permite ao seu ínfimo inferno a continuação

Mas o anquilosado não conhece apenas a ideia fixa que repete
conhece o sofrimento constante que o tortura
e é tão insuportável, tão intenso, tão aviltante
que parece não poder durar mais, mas dura
Para quê ainda insistir?
O que leva tais sinistrados a ainda persistir?
O ecrã brilhante devolve a questão
e, sem conexão ou memória 
passo para a próxima publicação

Joaquim Lúcio, ressurreição, pp. 294-296

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