"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

A poeira nebulenta da manhã

 

A poeira nebulenta da manhã

cai, pouco a pouco, sobre o nosso esquecimento

e é tudo estranho e mágico, recriado, um novo olhar,

o mundo que das trevas se dá à luz do tempo

– olhamo-nos espantados e vemos rostos gastos,

destroçados de cansaços e desejos ansiosos de fusão

– trementes, ausentes do calor e da força dos céus vastos

que na noite luarenta se abriam em transes fundos de paixão,

somos outros, intimidade estrangeira do amor,

violação da solidão antiga e teimosa de impotência,

e sentimo-nos vazios, vertidos noutro, ao despertarmos do torpor

que nos tomou os membros, amnésicos de outra consciência

senão a de união para além de distância ou divisão temerosa

de ser roubada do seu nada, instada a morrer para se dar

­– olho os teus olhos e vejo-te formosa

dessa devastação de uma noite feita clara para amar.

 

Estou inteiro, regresso ao tempo mágico do início

e há criação e madrugada em cada rumor de devir em mim

– um momento, um instante longo, encruzilhada ou princípio

em que tempos se cruzam e são indiferença e fundamento de criação e fim

– para lá de querer poder, este ser claro aqui

satisfeito no sentido primevo do amor

            – para lá da ausência, origem do ser para si,

            ausência de ti, isolamento em angústia e dor,

            fundamento da ânsia de domínio que nos consome,

            destruição do outro por ódio dele nos ser estranho,

superação da impotência pela potência de relação esmagada,

            força aberta dobre o nada,

por ter nada, ansiosa de uma sempre maior possessão e criação de nada,

            abertura ao vazio e do vazio,

            chaga a abrir-se em ânsia de enchente angustiada

            a limites de impotência e calafrio.  

 

Um sol se avizinha à madrugada

e nós estamos cinzentos de brancura.

Ao fundo, desce, só e cheia, nevada estranha lua

e nós, sem força, trocamo-nos ternura,

espantados da paixão desvelada, agora nua,

que confidenciámos ao luar

violando o cofre da nossa solidão

– lá vai a lua que nos viu amar,

lá vai levando segredos antigos de paixão,

sabendo desde sempre o fogo que nos move,

condescendente ao nosso medo traidor do sentido da nossa geração,

desvio àquilo mesmo que nos forma e se consome

no ímpeto de ser além e fuga na teia de poder ou de razão

– assim falava Bórgia quando a sós,

assim Platão escondido sonhava em ansiar.

 

A noite passa,

a antiga noite, clara ofuscante e desperta,

passa a união primeva de prazer e dor,

passa esse limiar, essa janela aberta

ao mundo da origem e do fim,

onde viajámos da frustração ao torpor,

culminantes em nós mesmos como um sim,

passa essa bênção funda de indiferença, frescura e amor,

um sacramento, um confirmar do parto original

de que nascemos e nasceram todos de modo igual

– silêncio...

– a noite, a  materna noite,

a noite que nos deu frio para nos apertarmos um ao outro,

a noite que nos deu tempo e insistência no encontro,

a noite abençoada em nossos gestos esquecidos de ontem e de amanhã,

a noite passa e espanta-nos a memória com que nos fere esta manhã...

 

Há agora ainda, dentro, em nós, tristeza e dor,

e o limiar do dia dá-se à luz em nostalgia

e sempre haverá tristeza e nostalgia no amor,

mas estamos vivos e dispostos a fruir a alegria

– a nossa dor é convalescente da doença,

não é apartamento e agonia;

somos memória, esperança e promessa,

instante de alfa e ómega, agora,

madrugada de um mundo novo que começa.

 

Intuo agora qualquer coisa mais:

                        – as ruas estão desertas e esperam pelas gentes

ser mais é sempre um excesso é ser demais,

a união perspetívica e plural de colorações diferentes.

(teus olhos – mais calmos – são aqui presentes),

Voltamos sempre à mãe de que nascemos,

                        um raio de sol primeiro ofusca as nuvens,

somos filhos nos filhos que fazemos

e somos pais no instante em que recebemos

– que interessa que o mundo corra mediano?

                        as nuvens brilham numa luz mais forte,

Há anseios esquecidos de outro norte –

                        as árvores aclaram-se do verde escuro,

                        eu olho contente a sombra que se esvai.

Só aberto em mundo eu elevo a força que seguro!

Há mais p’ra lá da queda, algo que se eleva e vai,

algo escondido no cinzento e horizonte,

algo que desperta grande e se quer dar,

algo que se anseia transbordar-se por amor,

algo que dissolve e concretiza a nostalgia do luar.

                        O sol nasce e morre a minha dor!

 

Beijo os teus cabelos

é dia

ah! como o peito se me enche de alegria

haverá gente lá fora?

ah! meu amor,

é-me indiferente o que se passa além,

só em ti minha beleza se demora,

para lá de nós não há ninguém,

nós somos nós mesmos nossa aurora!....

 

A poeira cai brilhante e matinal,

trinam aves em odor floral,

o sol é bom, não é amor?

enche-nos de ternura e de calor,

mas quem brilha somos nós,

nós, planetas um do outro,

nós e nós e nós e nós,

a atração e o encontro,

o início e o final,

a ascensão direta

à consumação inicial,

o raio de luz reta,

teu corpo que me envolve,

cabelos que ondulam nos meus olhos,

lábios devastados a beijar,

e o sol a ascender, luz radiante,

e tu só, amor, é que eu vejo a raiar

– primevo de força e alegria,

em mim nasce, de ti, um novo dia,

amante, amor, sabedoria,

emoção nos limites do tremor,

tu e eu,

amante e amador,

vertigem estonteante,

nada bastante...

                         tão-só...

                                      e só...

                                               amor.

 

A poeira é luminosa agora,

grãos de calma que adormecem,

o mundo acorda, há ruídos fora,

que diria eu se me dissessem

que, em ti, minha beleza se demora?

Sim...

Por certo, sim...

Que poderia eu dizer senão que sim,

se toda a minha alma se sorri?

Ah! ser-me aqui princípio e fim

                        Sim,

                                sim,

                                       sim...

um bocejo longo, cansaço, um olhar e um sorriso,

tudo aqui,

                beijo-te,

                             nada mais preciso.

Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. II, abertura, pp. 33-38

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