"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

O fogo


Pura reação sem substância

puro aparecer fenoménico

puro deslumbre da visão

puro torpor reconfortante

 

a chama atrai apela chama

bruxuleia como um sortilégio

de repente reaviva e agita-se

de repente se oculta e é nada

 

Daí devir símbolo da vida

supor-se existir um seu análogo

no interior da carcaça bruta

 

pela qual por instantes breves

se anima e estremece e ama

um corpo sem ela só inerte

 

*

 

Os antigos fizeram do fogo elemento

um dos pilares da arquitetura inicial

que tornou possível a natureza e mundo

dinamizando a alteração e a mudança

 

mas fazendo sua natureza superior

à dos outros elementos corruptíveis

sempre a tender para cima, para o etéreo

para junto das divindades imortais

 

Os antigos transmutaram o mais efémero

na essência mundana mais próxima do eterno

buscando libertação da matéria bruta

 

descontrolo da prisão de mistura e morte

aspiração de alcançar o puro contrário

o cristalino perene incondicionado

 

*

 

“Este mundo (…) [é] um fogo sempre vivo

que se acende e se extingue com medida”[1]

De chama a labareda até incêndio

desde que exista algo para queimar

 

o mundo é ignição de luta e guerra

sempre tendendo a não se sabe o quê

sempre buscando colmatar a falta

não se sabe de quê, como e porquê

 

A luz do obscuro se projeta até hoje

do passado, como a de qualquer chama

tão arrogante como era na origem

 

Perpassa o vazio sideral das eras

muito após estar o fogo consumido

mais longe que a distância concebível

 

*

 

O fogo efémero produz a luz eterna

os deuses são filhos de sua insolência

e pouco importa qualquer curta duração

algures no infinito será novo advento

 

E a chama da alma é igual à da loucura

movendo a mente além dos seus limites

sempre sedenta de se transcender

e sempre incapaz do eterno alcançar

 

No fim do mundo, apenas resta o vácuo

e nele a luz continua a perpassar

talvez para lume acender além

 

no lugar do futuro de outro mundo

que como este será ânsia, será guerra

consumido pela falta e desejo

 

*

 

Toda a ganância do homem está presente

na transformação da terra abençoada

por clima ameno, doce e temperado

numa pira gigantesca e infernal

 

À volta do planeta, norte e sul

o aprazível verão tornado inferno

só pela voragem enlouquecida

sem nenhum Estado cobrar tal crime

 

A cumplicidade dada da gente

tudo legitima pelo negócio

mesmo chorando e berrando no incêndio

 

Só inculpa o tolinho do pirómano

para não ver o caos por si mantido

para algo no mercado valer mais

 

*

 

Espelha a loucura que não se reconhece

a do pobre diabo por todos condenado

Quem vê mundo como recursos de negócio

está disposto a arrasar tudo por proveito

 

Quem vê a sua vida na constante frustração

busca nessa sublime beleza um alívio

tal como, na tragédia alheia, na destruição

a purga catártica do ódio e rancor

 

E toda a estética conflui na grandiosidade

da força horrível descontrolada do incêndio

sentida como redenção da pequenez

 

Se o incendiário exulta com a transcendência

as gentes chorosas logo redobram esforços

para garantir futuro à conflagração

 

*

 

O homem das agressões ambientais

o homem que ateia e aprecia incêndios

o homem que vê em tudo um negócio

é o homem que carregará no botão

 

E nada mais revelará melhor

a natureza ígnea de tal homem

conscientemente ou não já decidido

a ser por qualquer fogo consumido

 

Que se deixe arder a loucura humana

que se deixe a guerra alcançar seu fim

que se atice em toda a parte a fogueira

 

que se incite a figura temerária

que se transforme enfim o planeta

em gigantesca pira funerária

Joaquim Lúcio, ressurreição, KDP, 2022, pp. 328-331

[1] Heraclito, fragmento 30.

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