Pura reação sem substância
puro aparecer fenoménico
puro deslumbre da visão
puro torpor reconfortante
a chama atrai apela chama
bruxuleia como um sortilégio
de repente reaviva e agita-se
de repente se oculta e é nada
Daí devir símbolo da vida
supor-se existir um seu análogo
no interior da carcaça bruta
pela qual por instantes breves
se anima e estremece e ama
um corpo sem ela só inerte
*
Os antigos fizeram do fogo elemento
um dos pilares da arquitetura inicial
que tornou possível a natureza e mundo
dinamizando a alteração e a mudança
mas fazendo sua natureza superior
à dos outros elementos corruptíveis
sempre a tender para cima, para o etéreo
para junto das divindades imortais
Os antigos transmutaram o mais efémero
na essência mundana mais próxima do eterno
buscando libertação da matéria bruta
descontrolo da prisão de mistura e morte
aspiração de alcançar o puro contrário
o cristalino perene incondicionado
*
“Este mundo (…) [é] um fogo sempre vivo
que se acende e se extingue com medida”[1]
De chama a labareda até incêndio
desde que exista algo para queimar
o mundo é ignição de luta e guerra
sempre tendendo a não se sabe o quê
sempre buscando colmatar a falta
não se sabe de quê, como e porquê
A luz do obscuro se projeta até hoje
do passado, como a de qualquer chama
tão arrogante como era na origem
Perpassa o vazio sideral das eras
muito após estar o fogo consumido
mais longe que a distância concebível
*
O fogo efémero produz a luz eterna
os deuses são filhos de sua insolência
e pouco importa qualquer curta duração
algures no infinito será novo advento
E a chama da alma é igual à da loucura
movendo a mente além dos seus limites
sempre sedenta de se transcender
e sempre incapaz do eterno alcançar
No fim do mundo, apenas resta o vácuo
e nele a luz continua a perpassar
talvez para lume acender além
no lugar do futuro de outro mundo
que como este será ânsia, será guerra
consumido pela falta e desejo
*
Toda a ganância do homem está presente
na transformação da terra abençoada
por clima ameno, doce e temperado
numa pira gigantesca e infernal
À volta do planeta, norte e sul
o aprazível verão tornado inferno
só pela voragem enlouquecida
sem nenhum Estado cobrar tal crime
A cumplicidade dada da gente
tudo legitima pelo negócio
mesmo chorando e berrando no incêndio
Só inculpa o tolinho do pirómano
para não ver o caos por si mantido
para algo no mercado valer mais
*
Espelha a loucura que não se reconhece
a do pobre diabo por todos condenado
Quem vê mundo como recursos de negócio
está disposto a arrasar tudo por proveito
Quem vê a sua vida na constante frustração
busca nessa sublime beleza um alívio
tal como, na tragédia alheia, na destruição
a purga catártica do ódio e rancor
E toda a estética conflui na grandiosidade
da força horrível descontrolada do incêndio
sentida como redenção da pequenez
Se o incendiário exulta com a transcendência
as gentes chorosas logo redobram esforços
para garantir futuro à conflagração
*
O homem das agressões ambientais
o homem que ateia e aprecia incêndios
o homem que vê em tudo um negócio
é o homem que carregará no botão
E nada mais revelará melhor
a natureza ígnea de tal homem
conscientemente ou não já decidido
a ser por qualquer fogo consumido
Que se deixe arder a loucura humana
que se deixe a guerra alcançar seu fim
que se atice em toda a parte a fogueira
que se incite a figura temerária
que se transforme enfim o planeta
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