"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

Com a morte no peito, nos membros e na fronte


Com a morte no peito, nos membros e na fronte,

executo os rituais fúnebres do sonho pueril –

como são todos os sonhos engendradores de vida,

pernitas de filhota a correr, riso descontrolado infantil,

bochechas afogueadas de acumular tesouros de bolotas

e as carícias ternas e húmidas de mulher selvagem e gentil ­–

pelo qual sacrifiquei aspirações e ambições idiotas

mas talvez exequíveis, talvez realizáveis,

não fora a troca por objetivos aparentemente mais viáveis

e, aos poucos, derrotados, aviltados, humilhados,

até nada restar dos horizontes projetados.

 

Agora, nada resta ou só os fragmentos amargos da memória,

já não existe regaço a que voltar, já não há a nossa história,

cada qual largado a vaguear à tona das correntes do destino,

com a morte no peito, nos membros e na fronte,

um peso imenso na mente, no olhar e na expressão,

nem curiosidade já pelo que o fado esconde,

nem qualquer sentido, intento ou direção.

 

A dor, o luto, a perda jamais recuperável, a agonia,

não só se acumulam no divórcio mil traições do dia a dia,

mas o amor é transformado em negra opressão no peito

até se fazer rancor e ódio e ressentimento e despeito,

onde não há moderação ou sensatez possíveis,

antes dilaceramento, descontrolo e retaliação temíveis.

 

Penteiam-me a alma decrepitudes de caráter

à medida que apodrecem em féretros vazios

o revolucionário, o poeta, o amante, o burocrata,

o pai extremoso, o marido diligente, o apátrida,

e em todos o fétido odor do falhanço ou do absurdo

que me deixa apático indiferente absorto mudo.

 

Já perco os traços do teu rosto tornado tão marcado

pelo sofrimento que partilhámos longe,

já esqueço o roçar da tua pele e o cheiro exalado

da intimidade mútua que ternamente habitámos –

resto fóssil vivo, exemplar de espécie em vias de extinção,

último pesado mastodonte, cetáceo, rinoceronte,

cicatrizando mais uma chaga de um corpo em putrefação,

com a morte no peito, nos membros e na fronte...


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IV, petrificação, pp. 57-58.

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