"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

domingo, 22 de novembro de 2020

Lavra e vitaliza o solo


Lavra e vitaliza o solo

a minhoca pegajosa

e a borboleta devém

da larva imunda e viscosa.

 

Quanto mais estrumada a terra,

melhor planta, flor e fruto.

A floresta deve a vida

à podridão de húmus bruto.

 

Não está, da vida, na morte

tão-só a causa final,

mas é só também naquela

que se encontra a inicial.

 

Da corrupção, do excremento,

fealdade nauseante,

se dá, já belo, o advento

da força mais triunfante.

 

E não só em dor se morre,

em dor se pare e se nasce,

e a alegria intensa e forte

só na dor e da dor faz-se.

 

A vida que virá à luz

e que a gozará em festa,

começa langonha e pus,

no antro obscuro se gesta.

 

E se se dá no amor

a força de toda uma vida

porquê esperar seu começo

sem nojo repugnante,

obscuramente sofrida?

 

Porque não pode o amor

vir também do mais imundo,

da podridão e da dor,

do vício baixo, do fundo?

 

Porquê esperar que ele venha,

em espontânea geração,

já luminoso do céu

e nesse céu se mantenha?

 

Não será simulação

narcisicamente imposta

só por dissimulação,

esse amor sem carne e crosta?

 

Sismicamente vulcânico

se prepara e gesta amor

nas entranhas mais recônditas,

no pútrido e no fedor.

 

Não gesta de aristocrata,

não gesta de semideus,

antes no bairro de lata

em histórias de plebeus,

 

germina pleno o amor,

preparado contra tudo,

cheio de vida e furor,

forte, vibrante, carnudo,

 

em tesão de nervo e sangue,

em febre, suor e dor,

em paixão descontrolada

mesmo que leve ao estertor.

 

Na puta despudorada,

na jovem mal-educada,

no traficante emproado,

no ladrãozeco caçado,

 

na virgem pouco ofendida,

no padre bem cobiçoso,

na adúltera redimida,

no malandreco gostoso,

 

na adolescente frustrada,

no velhaco bem escabroso,

na mulher dissimulada

e no homem mentiroso,

 

irrompe da podridão,

como se fora nutrido

por toda a putrefação

ou então só digerido,

lançada defecação,

 

subitamente emergida,

em pulsação e vigor,

numa vontade incontida,

a redenção do amor.

 

Com tal origem profana,

com tal origem pagã,

ninguém o controlará

e verá sempre amanhã.

  

Enlace que se destina

na força da natureza,

desejo que tudo anima

triunfará de certeza.

 

Sacrilégio e heresia,

pura emanação da vida,

só neste amor se anuncia

a redenção prometida.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. II, abertura, pp. 130-133.

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