Traves e pilares
seguram estas paredes e portas e corredores e andares
e tudo o que por elas passa é efémero transitório
acidental
as pombas e rolas pousam um instante nos
rebordos
e nós um pouco mais fingimos ter nosso lugar
Todo o passageiro negligenciável se perde na
irrelevância
e só ficam das ruínas as últimas vigas e
paredes que as sustentam
Quem sabe os dramas as tragédias as comédias
o estilhaçar da existência em situações limite
vividos em villa castro escombros de qualquer
passado?
Nada interessa nada importa nem sequer em algum
sítio existiu
no fim deste meu mundo no fim do universo
inteiro
como em todo termo tudo será nada e o tudo será
frio
O calor é agitação momentânea destinada a nunca
perdurar
e o que perdura é apenas possibilidade no
sempre mesmo vazio
– e nele insondável o sortilégio de tudo
emergir se projetar
Elementos estruturais ocultados pela construção
pelos condóminos pelas ocorrências por
decoração
ocultam porém uma habitação ainda mais funda
a alma presente em cada ação e gesto
em cada desejo cada ansiedade cada pesadelo
cada sonho que se projetava para lá desta
opacidade
cada dever que o recalcava como impróprio
Há uma nostalgia incompreensível ao percorrer
cada ruína
como se emanasse algo mais de cada muro
esboroado
mais que ruas vagamente pressentidas
mais que uma memória física do passado
Ela habita as paredes que há muito rejeitou
aqui ainda se ouvem seus risos suas lágrimas
aqui passeiam os fantasmas já incapazes de
serem seu terror
aqui se afeiçoam os seus gestos dedicados
aqui se continua a gestar e alimentar o seu
rancor
aqui ecoam projetos devaneios fantasias filhos
desejados
aqui ressoam os sons perenes do prazer
aqui percorrem os recantos ilusões e
frustrações
aqui se acumulam miríades de traições
aqui se busca ainda a possibilidade de um
evento realizador
aqui se acumulam ódios e até despeitado algum
amor
Escorre das aduelas de cada ombreira a memória
mais penosa mais pesada mais nefasta
que o suplício mais cruelmente arquitetado
proporcional à mais pura à mais pristina
inocência
com que se desejou dar sentido à existência
Os rituais sacralizadores purificadores do ninho
puerilmente persistente e perene projetado
e as artimanhas as simulações as omissões
para todo o construído ser traído e defraudado
tudo acumulou uma camada espessa e gordurosa
sobreposta à armadura do edifício das escadas
cada sala
sendo apenas a abertura para tudo o que a voz e
até lembrança cala
Serve de consolo a alguns a persistência da
memória
em cada objeto que insiste em não desvanecer
mas maldição antes parece àqueles cuja história
apenas se endereça no desejo de todo o passado
conseguir esquecer
O seu corpo jaz consigo contrariada
espojada num sofá que já não está aqui
mas a sua alma ficou para sempre capturada
neste anexo de subúrbio de algures que em si
vivi
Como se movimentará ainda esse corpo com a alma
deixada neste canto?
Como poderá prazer e dor se aqui ficou o riso e
o pranto?
Eternamente envelheceremos em conjunto na
verdadeira realidade
a realidade onde não é possível a mentira e a
verdade
nunca tem de ser exigida por ser simplesmente
respirada
como a brisa da manhã após a noite atormentada
Tocar-lhe-ei para sempre porque tocar-lhe é a
minha essência
e sem lhe tocar nem valer a pena sequer pensar
a existência
a voz incapaz de falar sem ser para ela ouvir
o olhar incapaz de ver sem ser para o sentir
A sua ausência transpira por todos os recessos
como se nunca pudesse ter estado mais presente
mas sob forma hedionda maldita assombrada
como penumbra humor gás alma penada
como um atormentado despojo como um pedaço de
nada
Melhor dormir para sempre e nunca jamais
acordar
em sonhos a abraço e beijo e posso lhe falar
em sonhos será sempre possível apesar de tudo a
amar
© Joaquim Lúcio, 2020
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