"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Traves e pilares seguram estas paredes e portas e corredores e andares

 

Traves e pilares seguram estas paredes e portas e corredores e andares

e tudo o que por elas passa é efémero transitório acidental

as pombas e rolas pousam um instante nos rebordos

e nós um pouco mais fingimos ter nosso lugar

Todo o passageiro negligenciável se perde na irrelevância

e só ficam das ruínas as últimas vigas e paredes que as sustentam

Quem sabe os dramas as tragédias as comédias

o estilhaçar da existência em situações limite

vividos em villa castro escombros de qualquer passado?

Nada interessa nada importa nem sequer em algum sítio existiu

no fim deste meu mundo no fim do universo inteiro

como em todo termo tudo será nada e o tudo será frio

O calor é agitação momentânea destinada a nunca perdurar

e o que perdura é apenas possibilidade no sempre mesmo vazio

– e nele insondável o sortilégio de tudo emergir se projetar

 

Elementos estruturais ocultados pela construção

pelos condóminos pelas ocorrências por decoração

ocultam porém uma habitação ainda mais funda

a alma presente em cada ação e gesto

em cada desejo cada ansiedade cada pesadelo

cada sonho que se projetava para lá desta opacidade

cada dever que o recalcava como impróprio

Há uma nostalgia incompreensível ao percorrer cada ruína

como se emanasse algo mais de cada muro esboroado

mais que ruas vagamente pressentidas

mais que uma memória física do passado

 

Ela habita as paredes que há muito rejeitou

aqui ainda se ouvem seus risos suas lágrimas

aqui passeiam os fantasmas já incapazes de serem seu terror

aqui se afeiçoam os seus gestos dedicados

aqui se continua a gestar e alimentar o seu rancor

aqui ecoam projetos devaneios fantasias filhos desejados

aqui ressoam os sons perenes do prazer

aqui percorrem os recantos ilusões e frustrações

aqui se acumulam miríades de traições

aqui se busca ainda a possibilidade de um evento realizador

aqui se acumulam ódios e até despeitado algum amor

 

Escorre das aduelas de cada ombreira a memória

mais penosa mais pesada mais nefasta

que o suplício mais cruelmente arquitetado

proporcional à mais pura à mais pristina inocência

com que se desejou dar sentido à existência

Os rituais sacralizadores purificadores do ninho

puerilmente persistente e perene projetado

e as artimanhas as simulações as omissões

para todo o construído ser traído e defraudado

tudo acumulou uma camada espessa e gordurosa

sobreposta à armadura do edifício das escadas cada sala

sendo apenas a abertura para tudo o que a voz e até lembrança cala

 

Serve de consolo a alguns a persistência da memória

em cada objeto que insiste em não desvanecer

mas maldição antes parece àqueles cuja história

apenas se endereça no desejo de todo o passado conseguir esquecer

O seu corpo jaz consigo contrariada

espojada num sofá que já não está aqui

mas a sua alma ficou para sempre capturada

neste anexo de subúrbio de algures que em si vivi

Como se movimentará ainda esse corpo com a alma deixada neste canto?

Como poderá prazer e dor se aqui ficou o riso e o pranto?

 

Eternamente envelheceremos em conjunto na verdadeira realidade

a realidade onde não é possível a mentira e a verdade

nunca tem de ser exigida por ser simplesmente respirada

como a brisa da manhã após a noite atormentada

 

Tocar-lhe-ei para sempre porque tocar-lhe é a minha essência

e sem lhe tocar nem valer a pena sequer pensar a existência

a voz incapaz de falar sem ser para ela ouvir

o olhar incapaz de ver sem ser para o sentir

 

A sua ausência transpira por todos os recessos

como se nunca pudesse ter estado mais presente

mas sob forma hedionda maldita assombrada

como penumbra humor gás alma penada

como um atormentado despojo como um pedaço de nada

 

Melhor dormir para sempre e nunca jamais acordar

em sonhos a abraço e beijo e posso lhe falar

em sonhos será sempre possível apesar de tudo a amar



© Joaquim Lúcio, 2020

Sem comentários:

Enviar um comentário

No tempo em que ainda escrevíamos poemas

No tempo em que ainda escrevíamos poemas (ontem só e, porém, um abismo intransponível entre o que houve e o que ficou), no tempo em qu...