Uma jovem com unhas de gel pontiagudas
e uma verdadeira engenharia
estética na face
declara que a sua personalidade é
tal qual
a revista indicou para o seu perfil
espiritual
Nem me dou ao trabalho de indagar
que raio é isso
não deve ser muito diverso de
signos numerologia
auras tarot cristais o oráculo do
chouriço
ou o que passa em redes sociais
por psicologia
Mas será assim tão diferente essa
cultura popular
de todo esse linguajar académico
pseudocientífico
multiplicador de classificações e
tipos de personalidade
como se fossem estável e
identificadora realidade?
A necessidade de acreditar nisso
é a mesma no bimbo e no doutor
Precisam crer que são assim e
assado
que certo tipo de atos têm como
autor
perfil que nunca poderia ser o
deles
mesmo num contexto bem mais
adverso
que desencadeasse em si o seu
reverso
Precisam acreditar em algo fixo
um análogo à antiga alma e
identidade
sob pena de perderem a sua
segurança
e de ameaçarem a sua própria
sanidade
É muito conveniente pensar tal
é certamente bem tranquilizador
mas corresponderá a algo de real
ou será só véu dissimulador?
O mito da moderna identidade
pessoal
terá mais fundamento que o da
arcana alma?
O que haverá no familiar eu de igual
desde o berro inicial à estranha
e final calma?
É na idade adulta que se
consolida
uma estrutura idêntica que
percorre
todas as vicissitudes com que
lida
um sujeito que delibera e que
discorre?
Poderá essa tal badalada personalidade
persistir para lá não só de
mudanças ordinárias
mas através brutais cortes na
normalidade
resistindo a quaisquer
circunstâncias várias?
Ou será uma convicção
inteiramente dependente
de se levar uma vida habitual e
previsível
e o mundo à volta ir-se alterando
lentamente
sem se ser atingido por rutura
sequer sensível?
Poderá resistir a violência
gratuita e contínua
poderá suportar violação
escravização sequestro
poderá perdurar na fome na guerra
na tortura
poderá escapar a qualquer via que
leve à loucura?
E se não resistir a nada disso
será acaso outra coisa que a
acomodação normal
a forma como se domesticam pelo
treino as pulsões
de modo a assumir-se um aceite
estatuto social?
Não será mais que isso a
personalidade
a máscara imposta socialmente por
decência
ou para proteger grupos da
disfuncionalidade
da fragmentação da dispersão e da
demência?
E poderá a disrupção não ser uma
simples inerência
a certas naturezas certos
ambientes certas sociedades
mas uma constante ameaça de
invasão da existência
pelo oceano de outras
transgressoras possibilidades?
Que segurança verdadeiramente
existe de que se é assim
que nunca se poderia ser de um
outro modo
que o rótulo que me colaram ou que
em mim colei
não poderá ser com a maior
facilidade descolado?
Onde está a garantia no que sou e
que serei
de que não poderei passar para um
outro lado
de que não poderei ser um reverso
de mim próprio
e esse eu transposto nos alheios
ser desintegrado?
Onde está da personalidade o
certificado
para que eu possa enfim sentir-me
resguardado?
Nos corredores da loucura
na mansarda da solidão
com águas furtadas de desespero
para os precipícios da memória
onde se situa a fina linha
a fronteira invisível e subtil
mas transposta polar e absoluta
entre o ato sancionado e o crime
entre a entrega sensual e a
dissolução
entre o jogo sexual e
proxenetismo
entre envidar esforços e
corrupção
entre a justa cólera e o
assassínio
entre o fetichismo e a
perversidade
entre a preguiça e a prevaricação
entre a exigência e a escravatura
entre a legítima defesa e a
vingança
entre a determinação e a ditadura
entre erro ocasional e a vergonha
entre o incidente e o
infanticídio
entre fundada suspeição e a
peçonha
entre longa amargura e o suicídio?
Nesses eternos infernos vividos a
dois
quando poderá o gesto assassino
não ser detido
por um beicinho a suscitar a
empatia
por genuíno choro a provocar
compaixão
pela fragilidade de um pescoço
esbelto
que com facilidade se partiria
com a mão?
A quanta distância terá ficado o
crime
a quanta distância a danação?
Quanto será preciso para já nada
mais importar
e peito e mente se endurecer
nada lhe importando já do outro
que não seja o desejo de o ver
enfim desaparecer?
Quando se deterá ao fazer a
comida
para a entidade que a oprime e
abusa
a mão de colocar a dose regular
de veneno
para na gradualidade haver uma
escusa?
Será após vê-lo febril vê-lo
sufocar
vê-lo definhar a pouco e pouco
até já não ser capaz de maltratar
magro débil anémico e rouco?
Será então altura de hesitar
ou de uma vez misericordiosa
com o que se começou acabar?
A que distância ficará a rapariga
mimosa terna e delicada
que se entrega endoidecida a um
amado
de acabar devassada sem limite
dependente sabe-se lá de quê
abusada acossada prostituída
e certamente nunca redimida?
A que distância ficará esse amado
se estiver sem futuro desesperado
de ir do gozo que o alivia
até saciar toda a perversão
pela força à bruta sem compaixão
até tornada objeto abjeto e
indiferente
a pôr a render de cliente em
cliente?
A que distância ficará a drogada
que se viu com uma criança no
regaço
após ter sido por não sabe quem
emprenhada
e deixar correr a gestação entre
uma dose e outra
de simular uma queda ou um
descuido
que a livre de um tal estorvo
neste mundo?
A que distância fica o político
com a mania das grandezas
de financiá-las com o poder
conseguido
e engendrar um sistema
cleptocrático
que o mantenha sempre abastecido?
A que distância fica o
funcionário
cansado exaurido com o correr dos
anos
sempre com o mesmo estatuto e
horário
sem nada que o compense pelos
danos
de um trabalho que lhe sugou a
vida no absurdo
de não cumprir com o dever
estipulado
com o dolo de ver alguém de quem
não gosta
na sua vida como a dele
prejudicado?
A que distância fica a querida
amiga
confidente terna confortante e
antiga
com poder cultivado de
influenciar alguém
até de si depender para o mal e
para o bem
de lançar insidiosa suspeição
infundada
para gozar o prazer de uma
relação estragada?
A que distância ficará a criança
maltratada
espancada humilhada vilipendiada
de arranjar adulta uma cave onde
a psicopatia
possa ser satisfeita com
requintes de crueldade
até o descanso das vítimas para
toda a eternidade?
A que distância fica o
insuspeitável cidadão
respeitador da lei sexualmente
reprimido
desde a tenra infância com
silêncio e rigor
de transgredir com o pequeno
filho ou filha
totalmente ali indefeso ao seu
dispor
a tensão que desde sempre o
espartilha
e tornar-se um endoidecido
violador?
A que distância fica a esposa
fiel
cada vez mais insatisfeita no seu
leito
de se oferecer a todos numa rede
social
de forma a traindo vingar-se com
o fel
de o seu marido ser por todo o
lado reputado
como o cornudo contente com seu
papel?
A que distância fica o pai
pacífico
que vê acontecer isto ou aquilo
a filho ou filha abuso desastre
extorsão
de transformar-se num cruel torturador
ou num assassino sem nenhuma
compaixão?
A que distância fica o soldado em
missão
longamente importunado por
camarada
que só tem razões para odiar até
abominação
de aproveitar a situação de
combate
para se livrar de vez do objeto
de aversão?
A que distância fica o embriagado
por estar farto da pressão por
estar farto de sofrer
de esmagar alguém desconhecido
numa estrada
de alinhar com outros que querem
à força foder
ou de acabar no fim da noite com
uma faca ensanguentada?
Nada disso poderia acontecer
comigo
diz o mentiroso todo cheio de si
e se calhar ainda ontem hesitou
prestes a aldrabar alguém para
lhe sacar
o dinheirinho que estava mesmo a
precisar
Isso nunca aconteceria comigo
diz o senhor considerado e
respeitável
com a sua barriga engalanada na
proa
e todos os dias tem de se
controlar
cerrando mãos e dentes
febrilmente
enquanto se entesa pelo óculo a
olhar
para não violar a boa vizinha da
frente
Tal comigo era impossível
diz o marido muito bem casado
que por trás de portas se
entretém
a esmurrar por o bife estar mal
passado
a fiel e servil esposa que mantém
Comigo nem pensar tal coisa
diz a mãe dedicada e extremosa
que por qualquer coisa se põe a
espancar
saciando o seu desejo em raiva
odiosa
os seus filhos para bem os educar
E tudo isso diz a figura idosa
na sua fragilidade digna de
respeito
que oculta quantas vítimas foram
no passado
traídas magoadas eliminadas a
preceito
para que tudo fosse pelo tempo
apagado
Não mentem não fogem nunca traem
numa gabarolice de autoindulgência
explorando credulidade e
inocência:
o que tenho a dizer digo
não ando aqui a enganar ninguém
fazendo-se esquecido se burlou
famílias nas obrazitas
necessárias
tudo às três pancadas indulgentes
ou tão-só simplesmente
incompetentes
extorquindo com manha e ardil
o que tinham e o que ainda
ganharão
até se tornar credor do próprio
pão;
um homem não se encolhe
antes quebrar que torcer
escondendo aquela vez precisa
em que ninguém ficou para ver
que denunciasse o ocorrido
e a face vergonhosa do foragido
que acompanhando uma rapariga
fugiu a sete pés de um gangue
sem sequer olhar para a amiga
que ocultaria a covardia com seu
sangue;
eu cá sou uma pessoa séria
palavra dada é palavra honrada
enviesando estrábico olhar da
memória
como só a má-fé tão bem sabe
fazer
de forma a dar outra
interpretação
a cada vez que jurou um
compromisso
para permitir na primeira
situação
ao jurado e prometido seu sumiço;
eles comigo não fazem farinha
ando há muito por aqui a virar
frangos
ostentando a vitória que como
galo caminha
logo após frente a maior força se
ter encolhido
e todos à sua volta por
conveniência ter traído
Um senhor de indiscutível
probidade
devaneia no seu austero
escritório
de um enorme desfalque a
possibilidade
que o liberte do que julga um
purgatório
Outro que não cessa com invetivas
a censura
de decotes de pernas nuas de
devassidão
resolve esta obscenidade que o
tortura
com masturbação após masturbação
A senhora que protesta com a
indecência
alegada pederástica de um
fotógrafo numa praia
enleva-se com a beleza da
adolescência
no corpo desnudado de escultural
catraia
O político coberto de distinções
e honrarias
usa todo o seu poder toda a sua
influência
para tornar legal a concessão de
certas regalias
com que tenciona pagar incógnita
assistência
Do lado de cá do Estado e da
moral
do lado de cá do bem sendo o de
lá o mal
por vezes mentindo por vezes se
iludindo
por vezes por cuidadosamente
cultivada estupidez
quanta declaração categórica de
segurança
no que se poderia ou não fazer
por aqui
quanto insuflado quanta presunção
quanta cagança
quanta tão óbvia incapacidade de
se controlar a si
todos inchados cheios de a jorrar
vaidade
com a simples sorte de os dados
já lançados
não os condicionarem
diferentemente determinados
Por trás da película que limita o
permitido
onde a maioria publicamente se
farsa e disfarça
está todo o possível
conscientemente reprimido
e o factual que se impede de
irromper na praça
– mas o ocultado assim como o
mentido
estão logo ali sempre prestes no
latente
à espera de descontrolo para
poder penetrar o proibido
ou o proibido já escondido se
poder tornar patente
– pronto a aparecer na boca do
contido o indecente
pronto a fazer no homem ético o
interdito
pronto a agir o pacífico
agressivamente
pronto o libertário a impor
autoritário o prescrito
– e não há anarquista que se
preze que se não deseje ditador
não há machão a fazer voz grossa
que não resista à curiosidade anal
não há feminista que frente à
desejada não inveje um violador
não há tentação pecaminosa que não persiga o guardião do dever e da
moral
– por trás de cada homem que
nunca macula a imagem da mais indefetível seriedade
por trás de cada senhora que atira peito à frente cabeça atrás com a
face elevada sobranceira
por trás de cada doutor
empertigado na sua erudição e autoridade
por trás de cada figura de
responsabilidade com atitude altaneira
um universo de possibilidades
reprimidas
que tantas vezes estiveram
prestes a acontecer
ou até mesmo ocorrências ocultadas
ou esquecidas
ou tantas outras que noturnamente
se continuam a viver
– quanto mais há uma obsessão
constitutiva de construir uma pose
tanto maior se revela a sua
natureza dissimuladora e teatral
quanto mais se é judicioso ou
condenatório com quem goze
tanto maior a frustração passada
de não satisfazer a pulsão libidinal
quanto mais alguém se declara
verdadeiro íntegro impoluto
mais provável a mentira mais
certo é estar em frente de um corrupto.
E eu? Acaso não habita em mim
cada uma dessas farsas
e por trás cada uma dessas
possibilidades de que me resguardo?
– mas quantas vezes as distâncias
delas foram escassas
mas quantas vezes desejos de me
libertar de tão pesado fardo?
A que distância está o mesmo aqui
ao pé
sobre que erijo a decente e
social feição
no emprego na família no mercado
no café
e como ninguém parece cheirar
putrefação?
Talvez por não se sentir o pior
odor
se for similar ao habitual e
ambiental fedor...
Eu – uma sucessiva eliminação de
possíveis eus
que como fantasmas continuam a
habitar-me continuam a ser meus
sempre possíveis se as
circunstâncias se conjugarem
sempre potencialidades para a
solidão e loucura
por vezes passados embrionários
com o poder de me assombrarem
por vezes apenas anúncios para
ocorrência futura
Por trás por trás
por trás da máscara de sanidade e
lucidez
a legião combinada de todos os
defeitos vícios pecados e crimes
todas as possibilidades negativas
de um diferente gesto do que fiz
todas as ocorrências cuja
maturação algures não permiti
todos os fantasmas que
remotamente passaram por meus sonhos
todas as aversões por objetos que é muito estranho considerar assim
medonhos
– ali atrás mesmo já aqui
pertence ao que sou
tudo quanto insisto assustado
encolhido em não ser
– ali atrás eu sou a puta
sifilítica ou sidosa e o seu chulo
eu sou o estroina responsável de
familiar esbulho
eu sou o político corrupto que
assola um país
eu sou o ditador que prende e
assassina oposição
eu sou o conquistador que trucida
um povo feliz
eu sou o drogado que tudo faz
para encontrar saciação
eu sou o violador o pederasta em
busca de alvos da sua perversão
eu sou o marido assassino por
ciúme e possessão
eu sou o jogador que alastra
banhas por não fazer mais nada
eu sou o grunho que espera na
brutalidade extremista a alvorada
eu sou o sequestrador que extrai
órgãos para o rico esclerosado
eu sou a mãe desvairada que
tortura a inocência e a infância
eu sou o alcoólico a beber do
chão o vinho já vomitado
eu sou o profeta que se aproveita
da fragilidade e da ignorância
que acasala com a mulher e a
filha do fiel que está ao lado
que arrasta a congregação inteira
para suicídio ou outra violência
e se faz de vítima quando
finalmente é-lhe lida uma sentença
eu sou o traficante que ronda
crianças e escolas básicas
eu sou o psicopata que encontra
prazer no sofrimento alheio
eu sou o pastor que estipula como mandamento dos outros dar dinheiro
eu sou o fiel que se entrega
cegamente ao patife que o engana
eu sou o mentiroso eu sou a
violência eu sou a espécie humana
mas também sou o missionário
ascético sempre virgem
o cientista que concebe partícula
até aí ignota
o suicida que sem razões por fim
cede à vertigem
o explorador que sem água e
alimentos mantém rota
a esposa que nada mais vive que a
exaustão consecutiva
o comunista perseverante na luta por proletariado operário que não há
e a sonhar com uma humanidade
contraditória com a que cá está
o corredor o ciclista o nadador o
automobilista
que procuram ser os mais rápidos
em alguma pista
não para socorrer alguém ou para
realizar qualquer trabalho
mas tão-só pela vazia vaidade da
velocidade em vista
e sou o génio o santo o herói o
místico
todas as grandes possibilidades
de ser homem
o filósofo o teólogo o inventor o
artista
e também os destinos de todos
mais mesquinhos
sou a sopeira o sem abrigo o
burocrata a lojista
sou cada uma das milhentas formas
de ter e não ter caminhos
e tudo sou a implodir para dentro
de mim
como se o que sou não tivesse
qualquer fim
Tenho na mão a cabeça degolada da
rival
e entre as pernas da menina deixo
o sangue virginal
o meu marido violento jaz
decepado à machadada
e vou fazer grelhado um bife
tenrinho mal passado
da vítima que pelas ruas capturei
nesta madrugada
inspiro os cheiros a dejetos
entre os cadáveres do exército derrotado
e há beleza no horror que a minha
vista alcança
dirijo com firmeza a fábrica de
extermínio de matança
mesmo se o cheiro nauseabundo
crematório custa a suportar
há sacrifícios a fazer para a
obrigação devida realizar
já não me lembro há quanto estou
nesta solitária
onde não arrancarei mais nenhum
nariz ou orelha à dentada
adormeço confortavelmente
extenuado desta existência proletária
entre os corpos mal cheirosos da
família na casa exígua amontoada
com os quais copulo
indiferentemente se a verga fica entesada
e sobre a secretária de ébano
assino a ordem de execução
dos rebeldes que se amotinaram
por terem fome e eu não
Compactamente a efervescer para
dentro
mil cabeças de destinos diversos
e adversos
a digladiarem-se para chegar ao
centro
que permita ao submerso advir
emerso
sinto-me habitado por miríades de
demónios
e reconheço enfim nos outros
outros eus
por lhes ver o esforço de
aguentar seus espetros
como eu me esforço por conter os
meus
Nos armários há muito mais que
pilinha ou pipi
há interdições de desejos
calcados pelos medos
terrores secretos e obsessões
descontroladas
abdicações desvios segredos e
degredos
cobiça frustre desilusões
ressentimentos
há um universo de pulsões
dissimuladas
fúrias homicidas entre ternos
sentimentos
e recalcamentos das paixões
passadas
e há uma eterna ânsia afligindo
sem motivo
que propulsiona a mente sempre
para mais
na cupidez no esbanjamento na
ganância
na ambição na inveja e na
arrogância
Vergonha dos esqueletos no
armário
motiva a ocultação do que se é
mas também uma consciência
oblíqua
que nada reconhece por má-fé
mas eles não deixam um segundo de
assombrar
corroendo cada qual por dentro
até de tanto reprimir e simular
acabar com o vazio mesmo no
centro
que sempre acompanhou todo o
danado
ao executar por si próprio a
sentença
a que ele mesmo decidiu estar
condenado
Não espetros não bestas não
demónios
causam assim em cada qual impacto
e dano
tudo vulgar na mesma espécie
ensandecida
tudo banal no humano tristemente
humano
Mas tudo o que anima esse humano
vem de determinação mais funda
vem sem razão sem quê e sem
porquê
sem mesmo como – para lá do como
que se vê
ser a mente o instrumento da ação
ser o sujeito sujeito a imposição
pela qual se torna roberto ou
marionete
de ignota insólita determinação
ou lugar de conflito um joguete
entre forças que exigem
manifestação
E porém desse fundo informe ou
disforme
se forma tudo quanto o humano
constrói
dele a alma torturada pela noite
se consome
dele se exige a glória de santo
mártir ou herói
– e assim como a estrela brilha
no espetáculo
despindo-se no camarim dos já
inúteis adereços
assim cada qual se afirmará no
seu cenáculo
antes da terra implacável exigir
seus preços
Nos meus lábios escorre sangue
criminoso
há mãos a agarrar a agredir a
violentar
pouco importa se criança mulher
idoso
do fundo de mim vêm ganas de
matar
Bastará querer no silêncio
descansar
e um vizinho aumentar volume ao
som
com o desejo da sua pimbalhice
partilhar
para o assassino secreto em mim
se revelar
Na mente não há fronteira nenhuma
entre interdito permitido e
prescrito
nada impede perversidade alguma
nenhum limite na pessoa está
inscrito
O facínora que trucida pessoa
após pessoa
o burlão que arruína velhinhos
com malícia
o violador que goza a dor da gaja
toda boa
pode encerrar o dia com uma terna
carícia
Que admiração ver um cruel
genocida
a tratar bem os cães amável com a
namorada!...
Esperava-se a cabeça de chifres
guarnecida
e cascos de bode a ressoar pela
calçada?
Antes em cada existência quotidiana
olvidada
dever-se-ia ver o tirano pelo
contexto constrangido
e ver a quão poucas ocorrências
de distância
ficou o zé ninguém de ser ditador
sanguinolento
a quão pouca alteração de
condição e circunstância
fica o pacato cidadão do massacre
mais cruento
Nova crença nova presunção novo
mito
substituto da antiga alma simples
imortal
mas a mesma ânsia de acalmar o
animal aflito
com a multidão que habita cada
qual:
a personalidade do cidadão
burguês
inflado do que é do que foi será deixa
de ser...
Bastaria tirar-lhe os pertences
por um mês
privá-lo em cada dia de
satisfação de prazer
torturá-lo com a agulha a grosa a
torquês
renovar mil novas formas de
tensão e de sofrer
e ver-se-ia a personalidade a se
dissolver
trocada por outra e outra e outra
e outra
até por fim em mil partículas se
desintegrar
e o que tão estavelmente era para
sempre
nem entre os fragmentos já se
recordar
Pego num pedaço da desintegração
de mim
entre todos os outros chamuscados
retalhados
deformados torturados perversos e
autênticos
meus como são meus todos os
conteúdos projetados
mesmo se outros pois me habitam e
são idênticos
aos contingentemente em público
manifestados
e não sei se é sonho se ilusão se
delírio se real
sangra na metafórica mão da minha
mente
alucina a superfície em
profundidade abissal
em desvario cruel flácido
rancoroso indecente
e tudo nele me parece muito mais
real e verdadeiro
do que ter acontecido do que
estar ali à frente
do que ser objetivo articulado em
todo ordeiro
verdadeiro na verdade desvelada
em quem mente
na malícia na inveja na cupidez
intestina
na gula deglutidora de tudo o que
se avista
no vício e no pecado na pura
perversão pristina
devorar filhos para deter a
ameaça já prevista
ser castrado por vingança
esponsal clandestina
despedaçar a criança em mil
partículas
ressuscitar fecundando férteis
fêmeas fatigadas
aspergindo sémen sobre todas elas
em gotículas
e tudo é sempre eu em todas as
cenas imaginadas
e tudo é sempre eu e todos os eus
são nadas
A vulnerável virgem que em mim
viaja violada
arfa de sobressalto de
pressentimento de ansiedade
– alguma coisa
se anuncia numa aurora abafada
em que um ocaso maldito narra
indesejável verdade
Quererei de facto desfazer a
identidade
abrir o diligentemente construído
sepulcro
atirar fora o manto velador da
subjetividade
e soltar as criaturas que habitam
o seu fulcro?
Chegou a hora maldita em que o
oculto é descoberto
em que o mentido vê estarrecido a
luz do dia
em que o longamente desejado é
liberto
em que a contínua tensão encontra
a agonia
Que se solte o eu tolhido das
suas peias
que se veja suas masmorras seus
túneis seus acessos
que se pulverizem as muralhas as
ameias
que se exponham suas vergonhas
seus recessos
O eu que se passeia publicamente
é uma mentira
é uma ilusão uma simulação uma
artimanha
a maquilhagem que torna qualquer
feia gira
a toilette que seduz e consolida
uma patranha
Despi-lo é imperioso não só de
vestes mas de pele
até já nada poder enganar ludibriar
confundir
só carne sangrenta que nada
alicia nada compele
que perdeu todo o poder de
manipular ou iludir
Expô-lo com seus tumores suas
infeções seu pus
suas metástases a alastrar por
todo o orgânico
seus pecados sem desculpas seus
vícios nus
sua determinação impessoal em
advir mecânico
até se tornar patente que por
trás da afirmação do eu
apenas se acumula uma disforme
infeta putrefação
todo o temido e desejado todo o
desviado que se não viveu
todo o recalcado todo o mentido toda
a prestidigitação
destinada a dissimular tudo
aquilo que pelo tempo se escondeu
– chegou a hora videolúdica de o
vilão se transformar
e manifestar o monstro hediondo
que tinha dentro de si
a hora de caírem máscaras e se
descobrir sem rosto
um vazio ecoante de mil deformações
sem nome
um abismo hiante de cada
frustração cada desgosto
tártaro replicante de cada
obsessão que o consome
– A decomposição do eu já se iniciou e nada a pode travar
já se sentia há muito o odor mas
a podridão estava encoberta
algum dia o bubão pestífero ou
venéreo teria de rebentar
– destapado o
poço do olvido a porta dos infernos aberta
Terrível a antecipação
insuportável a espera
até que assoma à ombreira o quê?
uma figura austera?
ser duro e cruel? lúbricas
súcubos evocadas?
apenas um ser mesquinho uma
figura castiça
que vencida a timidez desata a
contar piadas
e a rir-se delas até a cabeleira cair
postiça
Não há público não há cadeiras
não há plateia
apenas aquele ser ridículo que
conta más piadas
que se ri gargarejadamente do que
lhe passa pela ideia
que arrota e lança outras
flatulências esperadas
Como um sinal previamente
combinado
ou por ter quebrado o gelo da
expetativa instalada
começam a assomar mais figuras no
umbral
todas hesitantes pela libertação
inesperada
E insolitamente para surpresa completa
e total
nenhum monstro ou demónio surge
pelo portal
apenas figuras humanas todas de
algo amputadas
umas algo obscenas outras mais
deformadas
umas mancas outras corcundas
outras manetas
umas efeminadas outras másculas
outras brutais
umas inocentes outras sórdidas outras
dolentes
mas todas da mesma familiar espécie
imanentes...
Sem a tradicional e constante encenação
do eu
perdeu-se todo o espetáculo
impressionante
uma sucessão de factuais ou
possíveis triviais eus
desfile quanto muito pelo risível
desconcertante
de corriqueiras personagens de
vulgaridades de plebeus
Desvelamento esperado da verdade
e do real!
– banalidade afinal – não mais
que desilusão...
A perversidade acumulada capaz de
todos os crimes
apenas delinquente sujidade rotineira
afinal
unha imunda de ratar todo o
recanto do animal
que se orgulha da superioridade
de ser todo racional...
Cada qual das possibilidades alvo
de repressão
apenas deficiência incapaz apenas
pedaços de não...
E sai também o santo e sai o
mártir e sai o herói
e sai o filósofo e sai o inventor
e sai o artista
todos as melhores possibilidades
de ser eu
o empresário inovador o pregador
o cientista
e todos se mostram igualmente
amputados
igualmente deficientes igualmente
deformados
um castrado o outro
obsessivo-compulsivo
um incapaz de empatia outro enjoativamente
emotivo
um reduzido à ganância outro
feito encenação
um delírio alucinado outro
vaidade e presunção
todos humanos e nunca porém
homens completos
todos marcados todos defeitos
todos dejetos
Escusa Diógenes de chamar por
homens
ou de os procurar com qualquer
lanterna
clama e indaga p’lo que nem pode existir
mesmo fundindo sua multidão interna
Ele próprio fragmento e
caricatura
ele próprio deficiência e dejeto
exposição da impossibilidade
ao risível do tal homem completo
Procure-se na cidade procure-se
no deserto
procure-se no sujeito procure-se
em todo o lado
bem poder-se-á vasculhar p’ra
Diógenes o liberto
que só se acabará a descobrir
como ele é escravo
O eu oculta muito mais de facto
que a perversidade
oculta quão boçal grosseira e simplória
a sua origem
por muito capaz que seja de malícia
e de maldade
e muito mais ainda se tomado de loucura
e de vertigem
No princípio da desvelada sucessão
de deformidade
nenhum portento malvado nenhum
prodígio infeliz
apenas a natureza inerente a toda
a animalidade
a dor e o prazer sentido desejo e
medo petiz
Esses os fios em que está
pendurada a identidade
potências cegas a manipulam
talvez à vez
e a consciência vai recobrindo
com aparente unidade
o fragmentário a impotência a
desconformidade a invalidez
O eu é uma simulação uma história
uma camuflagem
que se conta para proteger da sua
realidade a débil mente
Na raiz para lá do desejo apenas
a falta de coragem
da consciência até do seu
encobrimento inconsciente
Conte essa história a si mesma a
jovem de unhas pontiagudas
ou por falta de imaginação busque
alguém que a possa inventar
– não é difícil fornecer tais
lisonjeiras ajudas
e há sempre bons motivos para
alguém manipular –
conte o que quiser como quiser
com a razão que quiser
receba como quiser seja o que for
que alguém lhe der
fará o que tiver de fazer na
altura apropriada
sem sombra de razão anterior para
fazer o que fará
e quando chegar a altura de se
desfazer em nada
saberá sobre si tanto como o pouco
que sabe já
– fluidos a correrem e a congregarem-se
num curso
desfeito em delta em pântano em
estuário
e sobre a corrente construir todo
um discurso
que mostra como resultou de
arbítrio identitário –
bem gosta esta espécie de tudo
efabular
um gato uma árvore um livro até
um vulcão
dotando-o de calma ou de fúria
que urge aplacar
mesmo não sendo senão o raio de
um buraco no chão...
Como pois poderia a jovem evitar
de na sua identidade acreditar?
Mais facilmente se convenceria o
vulcão
Sem comentários:
Enviar um comentário