"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

Uma jovem com unhas de gel pontiagudas


Uma jovem com unhas de gel pontiagudas

e uma verdadeira engenharia estética na face

declara que a sua personalidade é tal qual

a revista indicou para o seu perfil espiritual

Nem me dou ao trabalho de indagar que raio é isso

não deve ser muito diverso de signos numerologia

auras tarot cristais o oráculo do chouriço

ou o que passa em redes sociais por psicologia

Mas será assim tão diferente essa cultura popular

de todo esse linguajar académico pseudocientífico

multiplicador de classificações e tipos de personalidade

como se fossem estável e identificadora realidade?

A necessidade de acreditar nisso

é a mesma no bimbo e no doutor

Precisam crer que são assim e assado

que certo tipo de atos têm como autor

perfil que nunca poderia ser o deles

mesmo num contexto bem mais adverso

que desencadeasse em si o seu reverso

Precisam acreditar em algo fixo

um análogo à antiga alma e identidade

sob pena de perderem a sua segurança

e de ameaçarem a sua própria sanidade

É muito conveniente pensar tal

é certamente bem tranquilizador

mas corresponderá a algo de real

ou será só véu dissimulador?

 

O mito da moderna identidade pessoal

terá mais fundamento que o da arcana alma?

O que haverá no familiar eu de igual

desde o berro inicial à estranha e final calma?

É na idade adulta que se consolida

uma estrutura idêntica que percorre

todas as vicissitudes com que lida

um sujeito que delibera e que discorre?

Poderá essa tal badalada personalidade

persistir para lá não só de mudanças ordinárias

mas através brutais cortes na normalidade

resistindo a quaisquer circunstâncias várias?

Ou será uma convicção inteiramente dependente

de se levar uma vida habitual e previsível

e o mundo à volta ir-se alterando lentamente

sem se ser atingido por rutura sequer sensível?

Poderá resistir a violência gratuita e contínua

poderá suportar violação escravização sequestro

poderá perdurar na fome na guerra na tortura

poderá escapar a qualquer via que leve à loucura?

E se não resistir a nada disso

será acaso outra coisa que a acomodação normal

a forma como se domesticam pelo treino as pulsões

de modo a assumir-se um aceite estatuto social?

Não será mais que isso a personalidade

a máscara imposta socialmente por decência

ou para proteger grupos da disfuncionalidade

da fragmentação da dispersão e da demência?

E poderá a disrupção não ser uma simples inerência

a certas naturezas certos ambientes certas sociedades

mas uma constante ameaça de invasão da existência

pelo oceano de outras transgressoras possibilidades?

  

Que segurança verdadeiramente existe de que se é assim

que nunca se poderia ser de um outro modo

que o rótulo que me colaram ou que em mim colei

não poderá ser com a maior facilidade descolado?

Onde está a garantia no que sou e que serei

de que não poderei passar para um outro lado

de que não poderei ser um reverso de mim próprio

e esse eu transposto nos alheios ser desintegrado?

Onde está da personalidade o certificado

para que eu possa enfim sentir-me resguardado?

 

Nos corredores da loucura

na mansarda da solidão

com águas furtadas de desespero

para os precipícios da memória

onde se situa a fina linha

a fronteira invisível e subtil

mas transposta polar e absoluta

entre o ato sancionado e o crime

entre a entrega sensual e a dissolução

entre o jogo sexual e proxenetismo

entre envidar esforços e corrupção

entre a justa cólera e o assassínio

entre o fetichismo e a perversidade

entre a preguiça e a prevaricação

entre a exigência e a escravatura

entre a legítima defesa e a vingança

entre a determinação e a ditadura

entre erro ocasional e a vergonha

entre o incidente e o infanticídio

entre fundada suspeição e a peçonha

entre longa amargura e o suicídio?

 

Nesses eternos infernos vividos a dois

quando poderá o gesto assassino não ser detido

por um beicinho a suscitar a empatia

por genuíno choro a provocar compaixão

pela fragilidade de um pescoço esbelto

que com facilidade se partiria com a mão?

A quanta distância terá ficado o crime

a quanta distância a danação?

Quanto será preciso para já nada mais importar

e peito e mente se endurecer

nada lhe importando já do outro

que não seja o desejo de o ver enfim desaparecer?

Quando se deterá ao fazer a comida

para a entidade que a oprime e abusa

a mão de colocar a dose regular de veneno

para na gradualidade haver uma escusa?

Será após vê-lo febril vê-lo sufocar

vê-lo definhar a pouco e pouco

até já não ser capaz de maltratar

magro débil anémico e rouco?

Será então altura de hesitar

ou de uma vez misericordiosa

com o que se começou acabar?

 

A que distância ficará a rapariga

mimosa terna e delicada

que se entrega endoidecida a um amado

de acabar devassada sem limite

dependente sabe-se lá de quê

abusada acossada prostituída

e certamente nunca redimida?

A que distância ficará esse amado

se estiver sem futuro desesperado

de ir do gozo que o alivia

até saciar toda a perversão

pela força à bruta sem compaixão

até tornada objeto abjeto e indiferente

a pôr a render de cliente em cliente?

A que distância ficará a drogada

que se viu com uma criança no regaço

após ter sido por não sabe quem emprenhada

e deixar correr a gestação entre uma dose e outra

de simular uma queda ou um descuido

que a livre de um tal estorvo neste mundo?

 

 A que distância fica o político

com a mania das grandezas

de financiá-las com o poder conseguido

e engendrar um sistema cleptocrático

que o mantenha sempre abastecido?

A que distância fica o funcionário

cansado exaurido com o correr dos anos

sempre com o mesmo estatuto e horário

sem nada que o compense pelos danos

de um trabalho que lhe sugou a vida no absurdo

de não cumprir com o dever estipulado

com o dolo de ver alguém de quem não gosta

na sua vida como a dele prejudicado?

A que distância fica a querida amiga

confidente terna confortante e antiga

com poder cultivado de influenciar alguém

até de si depender para o mal e para o bem

de lançar insidiosa suspeição infundada

para gozar o prazer de uma relação estragada?

A que distância ficará a criança maltratada

espancada humilhada vilipendiada

de arranjar adulta uma cave onde a psicopatia

possa ser satisfeita com requintes de crueldade

até o descanso das vítimas para toda a eternidade?

A que distância fica o insuspeitável cidadão

respeitador da lei sexualmente reprimido

desde a tenra infância com silêncio e rigor

de transgredir com o pequeno filho ou filha

totalmente ali indefeso ao seu dispor

a tensão que desde sempre o espartilha

e tornar-se um endoidecido violador?

A que distância fica a esposa fiel

cada vez mais insatisfeita no seu leito

de se oferecer a todos numa rede social

de forma a traindo vingar-se com o fel

de o seu marido ser por todo o lado reputado

como o cornudo contente com seu papel?

A que distância fica o pai pacífico

que vê acontecer isto ou aquilo

a filho ou filha abuso desastre extorsão

de transformar-se num cruel torturador      

ou num assassino sem nenhuma compaixão?

A que distância fica o soldado em missão

longamente importunado por camarada

que só tem razões para odiar até abominação

de aproveitar a situação de combate

para se livrar de vez do objeto de aversão?

A que distância fica o embriagado

por estar farto da pressão por estar farto de sofrer

de esmagar alguém desconhecido numa estrada

de alinhar com outros que querem à força foder

ou de acabar no fim da noite com uma faca ensanguentada?

 

Nada disso poderia acontecer comigo

diz o mentiroso todo cheio de si

e se calhar ainda ontem hesitou

prestes a aldrabar alguém para lhe sacar

o dinheirinho que estava mesmo a precisar

Isso nunca aconteceria comigo

diz o senhor considerado e respeitável

com a sua barriga engalanada na proa

e todos os dias tem de se controlar

cerrando mãos e dentes febrilmente

enquanto se entesa pelo óculo a olhar

para não violar a boa vizinha da frente

Tal comigo era impossível

diz o marido muito bem casado

que por trás de portas se entretém

a esmurrar por o bife estar mal passado

a fiel e servil esposa que mantém

Comigo nem pensar tal coisa

diz a mãe dedicada e extremosa

que por qualquer coisa se põe a espancar

saciando o seu desejo em raiva odiosa

os seus filhos para bem os educar

E tudo isso diz a figura idosa

na sua fragilidade digna de respeito

que oculta quantas vítimas foram no passado

traídas magoadas eliminadas a preceito

para que tudo fosse pelo tempo apagado

  

Não mentem não fogem nunca traem

numa gabarolice de autoindulgência

explorando credulidade e inocência:

o que tenho a dizer digo

não ando aqui a enganar ninguém

fazendo-se esquecido se burlou

famílias nas obrazitas necessárias

tudo às três pancadas indulgentes

ou tão-só simplesmente incompetentes

extorquindo com manha e ardil

o que tinham e o que ainda ganharão

até se tornar credor do próprio pão;

um homem não se encolhe

antes quebrar que torcer

escondendo aquela vez precisa

em que ninguém ficou para ver

que denunciasse o ocorrido

e a face vergonhosa do foragido

que acompanhando uma rapariga

fugiu a sete pés de um gangue

sem sequer olhar para a amiga

que ocultaria a covardia com seu sangue;

eu cá sou uma pessoa séria

palavra dada é palavra honrada

enviesando estrábico olhar da memória

como só a má-fé tão bem sabe fazer

de forma a dar outra interpretação

a cada vez que jurou um compromisso

para permitir na primeira situação

ao jurado e prometido seu sumiço;

eles comigo não fazem farinha

ando há muito por aqui a virar frangos

ostentando a vitória que como galo caminha

logo após frente a maior força se ter encolhido

e todos à sua volta por conveniência ter traído

 

Um senhor de indiscutível probidade

devaneia no seu austero escritório

de um enorme desfalque a possibilidade

que o liberte do que julga um purgatório

Outro que não cessa com invetivas a censura

de decotes de pernas nuas de devassidão

resolve esta obscenidade que o tortura

com masturbação após masturbação

A senhora que protesta com a indecência

alegada pederástica de um fotógrafo numa praia

enleva-se com a beleza da adolescência

no corpo desnudado de escultural catraia

O político coberto de distinções e honrarias

usa todo o seu poder toda a sua influência

para tornar legal a concessão de certas regalias

com que tenciona pagar incógnita assistência

 

Do lado de cá do Estado e da moral

do lado de cá do bem sendo o de lá o mal

por vezes mentindo por vezes se iludindo

por vezes por cuidadosamente cultivada estupidez

quanta declaração categórica de segurança

no que se poderia ou não fazer por aqui

quanto insuflado quanta presunção quanta cagança

quanta tão óbvia incapacidade de se controlar a si

todos inchados cheios de a jorrar vaidade

com a simples sorte de os dados já lançados

não os condicionarem diferentemente determinados

  

Por trás da película que limita o permitido

onde a maioria publicamente se farsa e disfarça

está todo o possível conscientemente reprimido

e o factual que se impede de irromper na praça

– mas o ocultado assim como o mentido

estão logo ali sempre prestes no latente

à espera de descontrolo para poder penetrar o proibido

ou o proibido já escondido se poder tornar patente

– pronto a aparecer na boca do contido o indecente

pronto a fazer no homem ético o interdito

pronto a agir o pacífico agressivamente

pronto o libertário a impor autoritário o prescrito

– e não há anarquista que se preze que se não deseje ditador

não há machão a fazer voz grossa que não resista à curiosidade anal

não há feminista que frente à desejada não inveje um violador

não há tentação pecaminosa que não persiga o guardião do dever e da moral

– por trás de cada homem que nunca macula a imagem da mais indefetível seriedade

por trás de cada senhora que atira peito à frente cabeça atrás com a face elevada sobranceira

por trás de cada doutor empertigado na sua erudição e autoridade

por trás de cada figura de responsabilidade com atitude altaneira

um universo de possibilidades reprimidas

que tantas vezes estiveram prestes a acontecer

ou até mesmo ocorrências ocultadas ou esquecidas

ou tantas outras que noturnamente se continuam a viver

– quanto mais há uma obsessão constitutiva de construir uma pose

tanto maior se revela a sua natureza dissimuladora e teatral

quanto mais se é judicioso ou condenatório com quem goze

tanto maior a frustração passada de não satisfazer a pulsão libidinal

quanto mais alguém se declara verdadeiro íntegro impoluto

mais provável a mentira mais certo é estar em frente de um corrupto.

 

E eu? Acaso não habita em mim cada uma dessas farsas

e por trás cada uma dessas possibilidades de que me resguardo?

– mas quantas vezes as distâncias delas foram escassas

mas quantas vezes desejos de me libertar de tão pesado fardo?

A que distância está o mesmo aqui ao pé

sobre que erijo a decente e social feição

no emprego na família no mercado no café

e como ninguém parece cheirar putrefação?

Talvez por não se sentir o pior odor

se for similar ao habitual e ambiental fedor...

Eu – uma sucessiva eliminação de possíveis eus

que como fantasmas continuam a habitar-me continuam a ser meus

sempre possíveis se as circunstâncias se conjugarem

sempre potencialidades para a solidão e loucura

por vezes passados embrionários com o poder de me assombrarem

por vezes apenas anúncios para ocorrência futura

 

Por trás por trás

por trás da máscara de sanidade e lucidez

a legião combinada de todos os defeitos vícios pecados e crimes

todas as possibilidades negativas de um diferente gesto do que fiz

todas as ocorrências cuja maturação algures não permiti

todos os fantasmas que remotamente passaram por meus sonhos

todas as aversões por objetos que é muito estranho considerar assim medonhos

– ali atrás mesmo já aqui pertence ao que sou

tudo quanto insisto assustado encolhido em não ser

– ali atrás eu sou a puta sifilítica ou sidosa e o seu chulo

eu sou o estroina responsável de familiar esbulho

eu sou o político corrupto que assola um país

eu sou o ditador que prende e assassina oposição

eu sou o conquistador que trucida um povo feliz

eu sou o drogado que tudo faz para encontrar saciação

eu sou o violador o pederasta em busca de alvos da sua perversão

eu sou o marido assassino por ciúme e possessão

eu sou o jogador que alastra banhas por não fazer mais nada

eu sou o grunho que espera na brutalidade extremista a alvorada

eu sou o sequestrador que extrai órgãos para o rico esclerosado

eu sou a mãe desvairada que tortura a inocência e a infância

eu sou o alcoólico a beber do chão o vinho já vomitado

eu sou o profeta que se aproveita da fragilidade e da ignorância

que acasala com a mulher e a filha do fiel que está ao lado

que arrasta a congregação inteira para suicídio ou outra violência

e se faz de vítima quando finalmente é-lhe lida uma sentença

eu sou o traficante que ronda crianças e escolas básicas

eu sou o psicopata que encontra prazer no sofrimento alheio

eu sou o pastor que estipula como mandamento dos outros dar dinheiro

eu sou o fiel que se entrega cegamente ao patife que o engana

eu sou o mentiroso eu sou a violência eu sou a espécie humana  

 

mas também sou o missionário ascético sempre virgem

o cientista que concebe partícula até aí ignota

o suicida que sem razões por fim cede à vertigem

o explorador que sem água e alimentos mantém rota

a esposa que nada mais vive que a exaustão consecutiva

o comunista perseverante na luta por proletariado operário que não há

e a sonhar com uma humanidade contraditória com a que cá está

o corredor o ciclista o nadador o automobilista

que procuram ser os mais rápidos em alguma pista

não para socorrer alguém ou para realizar qualquer trabalho

mas tão-só pela vazia vaidade da velocidade em vista

 

e sou o génio o santo o herói o místico

todas as grandes possibilidades de ser homem

o filósofo o teólogo o inventor o artista

e também os destinos de todos mais mesquinhos

sou a sopeira o sem abrigo o burocrata a lojista

sou cada uma das milhentas formas de ter e não ter caminhos  

e tudo sou a implodir para dentro de mim

como se o que sou não tivesse qualquer fim

 

Tenho na mão a cabeça degolada da rival

e entre as pernas da menina deixo o sangue virginal

o meu marido violento jaz decepado à machadada

e vou fazer grelhado um bife tenrinho mal passado

da vítima que pelas ruas capturei nesta madrugada

inspiro os cheiros a dejetos entre os cadáveres do exército derrotado

e há beleza no horror que a minha vista alcança

dirijo com firmeza a fábrica de extermínio de matança

mesmo se o cheiro nauseabundo crematório custa a suportar

há sacrifícios a fazer para a obrigação devida realizar

já não me lembro há quanto estou nesta solitária

onde não arrancarei mais nenhum nariz ou orelha à dentada

adormeço confortavelmente extenuado desta existência proletária

entre os corpos mal cheirosos da família na casa exígua amontoada

com os quais copulo indiferentemente se a verga fica entesada

e sobre a secretária de ébano assino a ordem de execução

dos rebeldes que se amotinaram por terem fome e eu não

 

Compactamente a efervescer para dentro

mil cabeças de destinos diversos e adversos

a digladiarem-se para chegar ao centro

que permita ao submerso advir emerso

sinto-me habitado por miríades de demónios

e reconheço enfim nos outros outros eus

por lhes ver o esforço de aguentar seus espetros

como eu me esforço por conter os meus

Nos armários há muito mais que pilinha ou pipi

há interdições de desejos calcados pelos medos

terrores secretos e obsessões descontroladas

abdicações desvios segredos e degredos

cobiça frustre desilusões ressentimentos

há um universo de pulsões dissimuladas

fúrias homicidas entre ternos sentimentos

e recalcamentos das paixões passadas

e há uma eterna ânsia afligindo sem motivo

que propulsiona a mente sempre para mais

na cupidez no esbanjamento na ganância

na ambição na inveja e na arrogância

Vergonha dos esqueletos no armário

motiva a ocultação do que se é

mas também uma consciência oblíqua

que nada reconhece por má-fé

mas eles não deixam um segundo de assombrar

corroendo cada qual por dentro

até de tanto reprimir e simular

acabar com o vazio mesmo no centro

que sempre acompanhou todo o danado

ao executar por si próprio a sentença

a que ele mesmo decidiu estar condenado

 

Não espetros não bestas não demónios

causam assim em cada qual impacto e dano

tudo vulgar na mesma espécie ensandecida

tudo banal no humano tristemente humano

Mas tudo o que anima esse humano

vem de determinação mais funda

vem sem razão sem quê e sem porquê

sem mesmo como – para lá do como que se vê

ser a mente o instrumento da ação

ser o sujeito sujeito a imposição

pela qual se torna roberto ou marionete

de ignota insólita determinação

ou lugar de conflito um joguete

entre forças que exigem manifestação

E porém desse fundo informe ou disforme

se forma tudo quanto o humano constrói

dele a alma torturada pela noite se consome

dele se exige a glória de santo mártir ou herói

– e assim como a estrela brilha no espetáculo

despindo-se no camarim dos já inúteis adereços

assim cada qual se afirmará no seu cenáculo

antes da terra implacável exigir seus preços

 

Nos meus lábios escorre sangue criminoso

há mãos a agarrar a agredir a violentar

pouco importa se criança mulher idoso

do fundo de mim vêm ganas de matar

Bastará querer no silêncio descansar

e um vizinho aumentar volume ao som

com o desejo da sua pimbalhice partilhar

para o assassino secreto em mim se revelar

Na mente não há fronteira nenhuma

entre interdito permitido e prescrito

nada impede perversidade alguma

nenhum limite na pessoa está inscrito

O facínora que trucida pessoa após pessoa

o burlão que arruína velhinhos com malícia

o violador que goza a dor da gaja toda boa

pode encerrar o dia com uma terna carícia

Que admiração ver um cruel genocida

a tratar bem os cães amável com a namorada!...

Esperava-se a cabeça de chifres guarnecida

e cascos de bode a ressoar pela calçada?

Antes em cada existência quotidiana olvidada

dever-se-ia ver o tirano pelo contexto constrangido

e ver a quão poucas ocorrências de distância

ficou o zé ninguém de ser ditador sanguinolento

a quão pouca alteração de condição e circunstância

fica o pacato cidadão do massacre mais cruento

 

Nova crença nova presunção novo mito

substituto da antiga alma simples imortal

mas a mesma ânsia de acalmar o animal aflito

com a multidão que habita cada qual:

a personalidade do cidadão burguês

inflado do que é do que foi será deixa de ser...

Bastaria tirar-lhe os pertences por um mês

privá-lo em cada dia de satisfação de prazer

torturá-lo com a agulha a grosa a torquês

renovar mil novas formas de tensão e de sofrer

e ver-se-ia a personalidade a se dissolver

trocada por outra e outra e outra e outra

até por fim em mil partículas se desintegrar

e o que tão estavelmente era para sempre

nem entre os fragmentos já se recordar

 

Pego num pedaço da desintegração de mim

entre todos os outros chamuscados retalhados

deformados torturados perversos e autênticos

meus como são meus todos os conteúdos projetados

mesmo se outros pois me habitam e são idênticos

aos contingentemente em público manifestados

e não sei se é sonho se ilusão se delírio se real

sangra na metafórica mão da minha mente

alucina a superfície em profundidade abissal

em desvario cruel flácido rancoroso indecente

e tudo nele me parece muito mais real e verdadeiro

do que ter acontecido do que estar ali à frente

do que ser objetivo articulado em todo ordeiro

verdadeiro na verdade desvelada em quem mente

na malícia na inveja na cupidez intestina

na gula deglutidora de tudo o que se avista

no vício e no pecado na pura perversão pristina

devorar filhos para deter a ameaça já prevista

ser castrado por vingança esponsal clandestina

despedaçar a criança em mil partículas

ressuscitar fecundando férteis fêmeas fatigadas

aspergindo sémen sobre todas elas em gotículas

e tudo é sempre eu em todas as cenas imaginadas

e tudo é sempre eu e todos os eus são nadas

 

A vulnerável virgem que em mim viaja violada

arfa de sobressalto de pressentimento de ansiedade

– alguma coisa se anuncia numa aurora abafada

em que um ocaso maldito narra indesejável verdade

Quererei de facto desfazer a identidade

abrir o diligentemente construído sepulcro

atirar fora o manto velador da subjetividade

e soltar as criaturas que habitam o seu fulcro?

 

Chegou a hora maldita em que o oculto é descoberto

em que o mentido vê estarrecido a luz do dia

em que o longamente desejado é liberto

em que a contínua tensão encontra a agonia

Que se solte o eu tolhido das suas peias

que se veja suas masmorras seus túneis seus acessos

que se pulverizem as muralhas as ameias

que se exponham suas vergonhas seus recessos

O eu que se passeia publicamente é uma mentira

é uma ilusão uma simulação uma artimanha

a maquilhagem que torna qualquer feia gira

a toilette que seduz e consolida uma patranha

Despi-lo é imperioso não só de vestes mas de pele

até já nada poder enganar ludibriar confundir

só carne sangrenta que nada alicia nada compele

que perdeu todo o poder de manipular ou iludir

Expô-lo com seus tumores suas infeções seu pus

suas metástases a alastrar por todo o orgânico

seus pecados sem desculpas seus vícios nus

sua determinação impessoal em advir mecânico

até se tornar patente que por trás da afirmação do eu

apenas se acumula uma disforme infeta putrefação

todo o temido e desejado todo o desviado que se não viveu

todo o recalcado todo o mentido toda a prestidigitação

destinada a dissimular tudo aquilo que pelo tempo se escondeu

– chegou a hora videolúdica de o vilão se transformar

e manifestar o monstro hediondo que tinha dentro de si

a hora de caírem máscaras e se descobrir sem rosto

um vazio ecoante de mil deformações sem nome

um abismo hiante de cada frustração cada desgosto

tártaro replicante de cada obsessão que o consome

– A decomposição do eu já se iniciou e nada a pode travar     

já se sentia há muito o odor mas a podridão estava encoberta

algum dia o bubão pestífero ou venéreo teria de rebentar

– destapado o poço do olvido a porta dos infernos aberta

 

Terrível a antecipação insuportável a espera

até que assoma à ombreira o quê? uma figura austera?

ser duro e cruel? lúbricas súcubos evocadas?

apenas um ser mesquinho uma figura castiça

que vencida a timidez desata a contar piadas

e a rir-se delas até a cabeleira cair postiça

Não há público não há cadeiras não há plateia

apenas aquele ser ridículo que conta más piadas

que se ri gargarejadamente do que lhe passa pela ideia

que arrota e lança outras flatulências esperadas

Como um sinal previamente combinado

ou por ter quebrado o gelo da expetativa instalada

começam a assomar mais figuras no umbral

todas hesitantes pela libertação inesperada

E insolitamente para surpresa completa e total

nenhum monstro ou demónio surge pelo portal

apenas figuras humanas todas de algo amputadas

umas algo obscenas outras mais deformadas

umas mancas outras corcundas outras manetas

umas efeminadas outras másculas outras brutais

umas inocentes outras sórdidas outras dolentes

mas todas da mesma familiar espécie imanentes...

Sem a tradicional e constante encenação do eu

perdeu-se todo o espetáculo impressionante

uma sucessão de factuais ou possíveis triviais eus

desfile quanto muito pelo risível desconcertante

de corriqueiras personagens de vulgaridades de plebeus

Desvelamento esperado da verdade e do real!

– banalidade afinal – não mais que desilusão...

A perversidade acumulada capaz de todos os crimes

apenas delinquente sujidade rotineira afinal

unha imunda de ratar todo o recanto do animal

que se orgulha da superioridade de ser todo racional...

Cada qual das possibilidades alvo de repressão

apenas deficiência incapaz apenas pedaços de não...

  

E sai também o santo e sai o mártir e sai o herói

e sai o filósofo e sai o inventor e sai o artista

todos as melhores possibilidades de ser eu

o empresário inovador o pregador o cientista

e todos se mostram igualmente amputados

igualmente deficientes igualmente deformados

um castrado o outro obsessivo-compulsivo

um incapaz de empatia outro enjoativamente emotivo

um reduzido à ganância outro feito encenação

um delírio alucinado outro vaidade e presunção

todos humanos e nunca porém homens completos

todos marcados todos defeitos todos dejetos

 

Escusa Diógenes de chamar por homens

ou de os procurar com qualquer lanterna

clama e indaga p’lo que nem pode existir

mesmo fundindo sua multidão interna

Ele próprio fragmento e caricatura

ele próprio deficiência e dejeto

exposição da impossibilidade

ao risível do tal homem completo

Procure-se na cidade procure-se no deserto

procure-se no sujeito procure-se em todo o lado

bem poder-se-á vasculhar p’ra Diógenes o liberto

que só se acabará a descobrir como ele é escravo

 

O eu oculta muito mais de facto que a perversidade

oculta quão boçal grosseira e simplória a sua origem

por muito capaz que seja de malícia e de maldade

e muito mais ainda se tomado de loucura e de vertigem

No princípio da desvelada sucessão de deformidade

nenhum portento malvado nenhum prodígio infeliz

apenas a natureza inerente a toda a animalidade

a dor e o prazer sentido desejo e medo petiz

Esses os fios em que está pendurada a identidade

potências cegas a manipulam talvez à vez

e a consciência vai recobrindo com aparente unidade

o fragmentário a impotência a desconformidade a invalidez

O eu é uma simulação uma história uma camuflagem

que se conta para proteger da sua realidade a débil mente

Na raiz para lá do desejo apenas a falta de coragem

da consciência até do seu encobrimento inconsciente

 

Conte essa história a si mesma a jovem de unhas pontiagudas

ou por falta de imaginação busque alguém que a possa inventar

– não é difícil fornecer tais lisonjeiras ajudas

e há sempre bons motivos para alguém manipular –

conte o que quiser como quiser com a razão que quiser

receba como quiser seja o que for que alguém lhe der

fará o que tiver de fazer na altura apropriada

sem sombra de razão anterior para fazer o que fará

e quando chegar a altura de se desfazer em nada

saberá sobre si tanto como o pouco que sabe já

– fluidos a correrem e a congregarem-se num curso

desfeito em delta em pântano em estuário

e sobre a corrente construir todo um discurso

que mostra como resultou de arbítrio identitário –

bem gosta esta espécie de tudo efabular

um gato uma árvore um livro até um vulcão

dotando-o de calma ou de fúria que urge aplacar

mesmo não sendo senão o raio de um buraco no chão...

 

Como pois poderia a jovem evitar

de na sua identidade acreditar?

Mais facilmente se convenceria o vulcão

a conter a suposta ira da sua erupção...


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IV, petrificação, pp. 129-149.

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