O vulgo julga a história contínua progressão. A tecnologia avança para patamares de operatividade superior deixando as técnicas anteriores obsoletas. Novos direitos que as trevas do passado não respeitavam são adquiridos sem que quaisquer direitos sejam perdidos. O crescimento económico e o desenvolvimento humano julgam-se sem limites. As novidades da cultura popular são sempre melhores, mais apelativas porque mais modernas. O vulgo alastra para cima e infeta os estratos superiores de cultura: só a arte que segue a derradeira moda é apreciável, só as últimas teorias científicas estão absolutamente certas, só as últimas elaborações filosóficas são relevantes. O efeito de manada ou até de matilha alastra até os redutos mais elitistas, impedindo qualquer apreciação crítica do antigo e do moderno.
Ao ver monumentos históricos,
esta mítica visão da história do vulgo apenas encontra uma oportunidade
adicional para aprofundar a estupidez. Os papalvos ficam aparvalhados com o que
se conseguia fazer outrora, como se outrora todos devessem ser, pela ordem da
história, retardados mentais ou deficientes físicos, incapazes de produzir
fosse o que fosse de admirável. Alguns ainda levam mais longe esta progressão
de aparvalhamento e nem conseguem conceber que os homens, tão atrasados que
seriam naquela época, pudessem ter feito algo assim, pelo que só poderia ter
sido feito por uma espécie superior entretanto extinta e/ou extraterrestre.
Outros ainda serão capazes de imaginar seres fantásticos, demoníacos ou
divinos, a realizar o que não poderia ser acessível aos humanos. Parece não
haver limites na estultícia.
O que decide a mudança é a
satisfação da oferta e da procura. Muda-se porque há quem lucre com isso e
consegue lucrar porque fornece novidades ao consumo. O que é novo não tem de
ser melhor, mais funcional, suprir mais necessidades, trazer maior satisfação.
Para romper com o aborrecido já habitual, tem apenas de ser diferente. Quando
se adota o produto, o serviço ou a obra nova em detrimento da antiga,
abandona-se primeiro e esquece-se depois modos de fazer, de agir, de
compreender que são, muitas vezes, bem melhores, mais equilibrados ou mais
profundos. O já velho só por já ser habitual é fácil alvo de críticas ou da
identificação de defeitos. Mas a principal razão global que promove a mudança é
a saturação do habitual, o tédio que se harmoniza com e sublinha o vazio de
cada qual. Muitas vezes, a maioria porventura, o novo é notoriamente mais
disfuncional ou mais superficial ou mais desequilibrado ou mais insustentável ou
simplesmente mais feio logo à partida e só é adotado pela ânsia de novidades e
pela ânsia de lucrar mais com o efeito da procura da novidade. Por tal
futilidade vã, se perdem técnicas valiosas, artes subtis, formas de fazer e
executar aprimoradas, equilíbrios sociais e ambientais, teorias que permitiriam
aceder a novas realidades, estilos estéticos requintados, conhecimento de
instâncias sistematicamente dissimuladas, etc. A história também não será uma
contínua regressão, mas é certamente um espetáculo de devastação de inúmeras
produções, práticas e teorias abandonadas para serem substituídas por outras
inferiores.
Muitas são as vezes em que se
consegue apurar uma prática até o nível da excelência e, repentinamente, é
atirada fora porque há sempre uma maioria de incapazes e incompetentes que
tenta disfarçar os seus defeitos colocando em causa o que se faz e como se faz.
A prática que surge é invariavelmente sem nexo e disparatada, mas, assim, ao
não se conseguir fazer nada com ela, torna todos incompetentes e leva todos a
tentarem disfarçar a incapacidade, mistificando o que acontece e sendo
cúmplices na falsificação dos resultados. A história é uma constante sucessão
destes malogros em que, quando se consegue fazer algo com valor, acaba deitado
fora por iniciativa de quem se sentia incomodado por se sentir menorizado ou
atacado ou desmascarado ou deslocado ou outra coisa qualquer que não lhe
agradava. É verdade que também as práticas e teorias de pouco ou nenhum valor
acabarão por desaparecer, mas essas nem sequer tiveram jamais qualquer
utilidade que as suportasse. Pior ainda com as teorias pois são poucos os
capazes de sequer compreender as mais sofisticadas, muitos os que papagueiam
rigidamente o herdado e acabam por encontrar solução para a sua limitação
quando encontram uma teoria mais grosseira, mais esquemática, mais pragmática,
como dizem para disfarçar a boçalidade.
Só para quem não lê a história
desta forma, é espantosa a insustentabilidade económica e ambiental desta
época. Poderá o vulgo e os infindáveis demagogos que o estimulam afirmarem que
é uma consequência colateral do progresso que, em geral, continuaria a ser
indiscutível. Construíram-se modelos económicos de que até uma criança da
primária poderia calcular a inevitável exaustão a médio prazo; permitiram-se
todo o tipo de atividades predatórias em larga escala unicamente movidas e
consentidas pela ganância; estimula-se, sem controlo, o consumo desregrado;
transforma-se toda a natureza numa gigantesca cidade cujo campo é gerido apenas
para satisfazer essa cidade, uma cidade onde as pessoas morrem por dentro e
suportam cada vez pior o peso da artificialidade sem arte, sem engenho, sem
beleza, sem orgânica que as rodeia; multiplicam-se as massas indigentes no
terceiro mundo agrícola e industrial para que as elites privilegiadas do
planeta possam desbaratar insanamente os recursos até se afogarem em
incontroláveis ansiedades e depressões; acumula-se, em breve trecho, todo o
desregramento que todos querem imitar sob a forma de lixo, dos mais diversos
tipos de resíduo destinados a envenenar o futuro; proliferam os produtos que se
lançam no mercado para só mais tarde se descobrir a toxicidade ou outros
efeitos perniciosos; reivindicam-se cada vez maiores direitos e liberdades que
cada vez mais põem a natureza ao sabor da incontinência dos caprichos;
fabrica-se a própria vida para substituir a terra erodida, em vez de a cuidar
como sempre deveria ter sido nosso dever – e considera-se tudo isso aspetos
negativos mas secundários de uma progressão triunfante da qualidade de vida – é
secundário o próprio planeta na insana usura do crescimento ilimitado, como se
as limitações não devessem ser equacionadas em qualquer produção, qualquer
empresa, qualquer negócio e só se devesse ter como referência de valor o cada
vez maior lucro e consumo respetivo.
Mas tudo isto são apenas sintomas
de uma alienação bem mais funda, o esquecimento da própria história para poder
tudo reduzir à operacionalidade técnica. Na unilateralidade do pensamento
técnico, a primeira coisa que há que banir é um pensamento verdadeiramente
histórico, por excelência a instância da pluralidade de perspetivas, do
pensamento contextualizado e intertextualizado, da crítica da nossa própria
época face às possibilidades por ela canceladas. A época quer triunfar sem
crítica e, por isso, bane a história ou transforma-a num relato mítico e épico
do triunfo da civilização técnica. Em qualquer caso, obtém-se o esquecimento da
história e a estupidificação das gentes. O bom burguês fica contente, tudo
reduzido ao negócio, e os restantes estão suficientemente alienados na sua
ausência de consciência de história e de contexto para sequer conceberem
qualquer alternativa. Quem está fora do lucro do negócio, quer apenas entrar
nele e rapidamente deixaria manifestações nas ruas ou protestos nas redes se
tivesse direito a um bom quinhão.
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