"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

História

     O vulgo julga a história contínua progressão. A tecnologia avança para patamares de operatividade superior deixando as técnicas anteriores obsoletas. Novos direitos que as trevas do passado não respeitavam são adquiridos sem que quaisquer direitos sejam perdidos. O crescimento económico e o desenvolvimento humano julgam-se sem limites. As novidades da cultura popular são sempre melhores, mais apelativas porque mais modernas. O vulgo alastra para cima e infeta os estratos superiores de cultura: só a arte que segue a derradeira moda é apreciável, só as últimas teorias científicas estão absolutamente certas, só as últimas elaborações filosóficas são relevantes. O efeito de manada ou até de matilha alastra até os redutos mais elitistas, impedindo qualquer apreciação crítica do antigo e do moderno.

Ao ver monumentos históricos, esta mítica visão da história do vulgo apenas encontra uma oportunidade adicional para aprofundar a estupidez. Os papalvos ficam aparvalhados com o que se conseguia fazer outrora, como se outrora todos devessem ser, pela ordem da história, retardados mentais ou deficientes físicos, incapazes de produzir fosse o que fosse de admirável. Alguns ainda levam mais longe esta progressão de aparvalhamento e nem conseguem conceber que os homens, tão atrasados que seriam naquela época, pudessem ter feito algo assim, pelo que só poderia ter sido feito por uma espécie superior entretanto extinta e/ou extraterrestre. Outros ainda serão capazes de imaginar seres fantásticos, demoníacos ou divinos, a realizar o que não poderia ser acessível aos humanos. Parece não haver limites na estultícia.

O que decide a mudança é a satisfação da oferta e da procura. Muda-se porque há quem lucre com isso e consegue lucrar porque fornece novidades ao consumo. O que é novo não tem de ser melhor, mais funcional, suprir mais necessidades, trazer maior satisfação. Para romper com o aborrecido já habitual, tem apenas de ser diferente. Quando se adota o produto, o serviço ou a obra nova em detrimento da antiga, abandona-se primeiro e esquece-se depois modos de fazer, de agir, de compreender que são, muitas vezes, bem melhores, mais equilibrados ou mais profundos. O já velho só por já ser habitual é fácil alvo de críticas ou da identificação de defeitos. Mas a principal razão global que promove a mudança é a saturação do habitual, o tédio que se harmoniza com e sublinha o vazio de cada qual. Muitas vezes, a maioria porventura, o novo é notoriamente mais disfuncional ou mais superficial ou mais desequilibrado ou mais insustentável ou simplesmente mais feio logo à partida e só é adotado pela ânsia de novidades e pela ânsia de lucrar mais com o efeito da procura da novidade. Por tal futilidade vã, se perdem técnicas valiosas, artes subtis, formas de fazer e executar aprimoradas, equilíbrios sociais e ambientais, teorias que permitiriam aceder a novas realidades, estilos estéticos requintados, conhecimento de instâncias sistematicamente dissimuladas, etc. A história também não será uma contínua regressão, mas é certamente um espetáculo de devastação de inúmeras produções, práticas e teorias abandonadas para serem substituídas por outras inferiores.

Muitas são as vezes em que se consegue apurar uma prática até o nível da excelência e, repentinamente, é atirada fora porque há sempre uma maioria de incapazes e incompetentes que tenta disfarçar os seus defeitos colocando em causa o que se faz e como se faz. A prática que surge é invariavelmente sem nexo e disparatada, mas, assim, ao não se conseguir fazer nada com ela, torna todos incompetentes e leva todos a tentarem disfarçar a incapacidade, mistificando o que acontece e sendo cúmplices na falsificação dos resultados. A história é uma constante sucessão destes malogros em que, quando se consegue fazer algo com valor, acaba deitado fora por iniciativa de quem se sentia incomodado por se sentir menorizado ou atacado ou desmascarado ou deslocado ou outra coisa qualquer que não lhe agradava. É verdade que também as práticas e teorias de pouco ou nenhum valor acabarão por desaparecer, mas essas nem sequer tiveram jamais qualquer utilidade que as suportasse. Pior ainda com as teorias pois são poucos os capazes de sequer compreender as mais sofisticadas, muitos os que papagueiam rigidamente o herdado e acabam por encontrar solução para a sua limitação quando encontram uma teoria mais grosseira, mais esquemática, mais pragmática, como dizem para disfarçar a boçalidade.

Só para quem não lê a história desta forma, é espantosa a insustentabilidade económica e ambiental desta época. Poderá o vulgo e os infindáveis demagogos que o estimulam afirmarem que é uma consequência colateral do progresso que, em geral, continuaria a ser indiscutível. Construíram-se modelos económicos de que até uma criança da primária poderia calcular a inevitável exaustão a médio prazo; permitiram-se todo o tipo de atividades predatórias em larga escala unicamente movidas e consentidas pela ganância; estimula-se, sem controlo, o consumo desregrado; transforma-se toda a natureza numa gigantesca cidade cujo campo é gerido apenas para satisfazer essa cidade, uma cidade onde as pessoas morrem por dentro e suportam cada vez pior o peso da artificialidade sem arte, sem engenho, sem beleza, sem orgânica que as rodeia; multiplicam-se as massas indigentes no terceiro mundo agrícola e industrial para que as elites privilegiadas do planeta possam desbaratar insanamente os recursos até se afogarem em incontroláveis ansiedades e depressões; acumula-se, em breve trecho, todo o desregramento que todos querem imitar sob a forma de lixo, dos mais diversos tipos de resíduo destinados a envenenar o futuro; proliferam os produtos que se lançam no mercado para só mais tarde se descobrir a toxicidade ou outros efeitos perniciosos; reivindicam-se cada vez maiores direitos e liberdades que cada vez mais põem a natureza ao sabor da incontinência dos caprichos; fabrica-se a própria vida para substituir a terra erodida, em vez de a cuidar como sempre deveria ter sido nosso dever – e considera-se tudo isso aspetos negativos mas secundários de uma progressão triunfante da qualidade de vida – é secundário o próprio planeta na insana usura do crescimento ilimitado, como se as limitações não devessem ser equacionadas em qualquer produção, qualquer empresa, qualquer negócio e só se devesse ter como referência de valor o cada vez maior lucro e consumo respetivo.

Mas tudo isto são apenas sintomas de uma alienação bem mais funda, o esquecimento da própria história para poder tudo reduzir à operacionalidade técnica. Na unilateralidade do pensamento técnico, a primeira coisa que há que banir é um pensamento verdadeiramente histórico, por excelência a instância da pluralidade de perspetivas, do pensamento contextualizado e intertextualizado, da crítica da nossa própria época face às possibilidades por ela canceladas. A época quer triunfar sem crítica e, por isso, bane a história ou transforma-a num relato mítico e épico do triunfo da civilização técnica. Em qualquer caso, obtém-se o esquecimento da história e a estupidificação das gentes. O bom burguês fica contente, tudo reduzido ao negócio, e os restantes estão suficientemente alienados na sua ausência de consciência de história e de contexto para sequer conceberem qualquer alternativa. Quem está fora do lucro do negócio, quer apenas entrar nele e rapidamente deixaria manifestações nas ruas ou protestos nas redes se tivesse direito a um bom quinhão.

   O esquecimento da história é talvez o aspeto mais perigoso do esquecimento do esquecimento do ser. Cada vez mais e mais e mais liberdades reduzidas a liberdades de consumo – e a manipulação do vulgo para o tornar uma massa inconsciente sem passado e sem futuro, totalmente dominada pelas forças que decidem o mercado. E, no subsolo da consciência, inúmeros tesouros enterrados e esquecidos, tesouros que tornariam o mundo habitável, que permitiriam respirar de novo a beleza mesmo entre paredes, que tornariam possível existir até na cidade, que permitiriam explicar e até resolver o desespero que a habita, que conduziriam a gente fuçadora de novo a ser pessoas, que ensinariam o caminho para o contentamento na moderação, que distinguiriam a busca insana de prazer da realização plena e feliz, e que cultivariam o respeito pela terra. Mas tais tesouros não estão apenas esquecidos, estão perdidos, ninguém saberia onde os encontrar e qualquer um seria dissuadido pelo impedimento de pensar a que se chama hoje pensamento e que menospreza todo o passado, reduzindo‑o à obsolescência inútil, retrógrada e nociva. A época da técnica exige a conformidade absoluta do pensamento e quem se atreve a pensar com a mínima dissonância é, sistematicamente, banido da consideração, da aceitação, da tolerância e, por fim, de qualquer convivência social. Este totalitarismo da manada está condenado pelo descontrolo da inconsciência, da unilateralidade, do tropel que lança a manada sem hesitação para o abismo. E toda a objeção é ignorada ou torneada por uma apropriação técnica, toda a acusação precisa lançada para o atoleiro das notícias para esquecimento rápido, toda a condenação sustentada transformada em nova oportunidade de negócio. Os tesouros da história continuarão tão perdidos como se nunca tivessem existido, mesmo sendo a única salvação. E, para o futuro, apenas resta a perdição...

Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. III, terra, pp. 54-57.

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