Uma rapariga índia exibe orgulhosa a camisola:
“Ninguém é ilegal em terra roubada.”
Tento penetrar o seu sentido
que a rapariga com um ar convencido
mostra como tão evidente
quanto um axioma que toda a gente,
como a comutatividade, tenha em mente.
Ninguém deveria ser, em todo o planeta, ilegal,
mas toda a terra foi roubada a alguém ou a ela
própria.
O axioma revela-se um círculo quadrado afinal
e a empenhada entrega da rapariga só inglória.
Nenhum território habitável deixou de ser alvo de conquista.
Falar de nativos é falar de milhentos povos
que se conquistavam e roubavam uns aos outros,
aniquilavam os antigos povos e instalavam os novos.
E assim foi por todo o planeta,
por todo o continente, por toda a região,
nenhum local deixou de ouvir o toque da corneta
para desferir ataque, chacina, apropriação.
O solo guarda o segredo de quantas famílias foram
dizimadas,
quantas violações, quanta tortura, quanta
destruição
se acumulou pelos milénios em cada recanto do mundo, em cada pedaço de
chão.
Mas o que é ser ilegal?
Significa não cumprir um
determinado tipo de condição contratual.
Nada tem a ver com uma justiça transcendente,
com direitos absolutos garantidos divinamente.
Alguém que entre inusitado num covil criminal
estará, segundo as suas regras, igualmente ilegal.
Todo o Estado nasceu e cresceu através da
violência.
As comunidades de paz não são em nada naturais,
ou foram protegidas pela força das disposições
estatais,
ou acabaram por desaparecer com ou sem história.
Comunidades de paz são antros de privilegiados
que se pretendem superiores à violência e à
corrupção
quando dependem das potências da ganância e guerra,
beneficiando de sacrifício, martírio e laboral
exploração.
Assim foi com os índios como em qualquer outro
lado,
os budistas foram protegidos por impérios
e a própria Igreja tinha braço armado.
Mas toda esta discussão parva não é nada
comparada com a noção de terra roubada.
Os liberais creem que do simples trabalho depende
toda a legitimidade do direito à propriedade,
isto antes de Estado ou organizada sociedade.
Se apanhar uma maçã não pertencente a ninguém,
o trabalho de apanhar torna a maçã minha pertença
segundo um intemporal direito natural,
sem lei, nem polícia, nem sequer um tribunal.
Sem reconhecimento ao menos social
é um disparate falar até mesmo de direito.
Que direito tem alguém com um machado no peito
se não há qualquer instância de autoridade,
ninguém que reconheça nem sequer a nossa vida
como nossa mais elementar propriedade?
Se algum direito absoluto existisse,
seria não o nosso sobre a terra mas da terra sobre
nós,
ela é que nos suporta, dela é que nós dependemos,
não somos nada se nos considerarmos a sós.
Podemos deteriorá-la mas nem sequer a destruir,
quanto mais sermos capazes de verdadeiramente a
possuir.
A propriedade não passa de um acordo entre homens
para impedir que entre eles se desencadeie
conflito.
Até predadores selvagens se espalham pelo
território
para cada qual ter espaço para a sua caça
e, mesmo aí, tudo dependerá da força que o mantém
sem
reconhecimento vitalício do que cada um, para o seu lado, tem.
A terra estará cá quando já nem homens existirem,
anterior a cada um dos seus delírios e alucinações
e, no final, quando, não a terra, o planeta
desaparecer
dos homens não restará nem desejo, nem ilusões.
E ainda assim homens cumprem o mandamento da terra
quando amam e odeiam, quando competem, procriam,
quando afirmam e negam, quando fazem paz e guerra,
quando
sonham, quando ensejam, quando agem, quando criam.
Sem consciência alguma porque fazem o que fazem,
os homens emergem da terra e nessa terra enfim
jazem,
pedaços cegos de terra a julgarem-se superiores
até serem arrasados pelos tempos posteriores.
Tu que vens do pó, para o pó voltarás[1]
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