"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

Uma rapariga índia exibe orgulhosa a camisola


Uma rapariga índia exibe orgulhosa a camisola:

“Ninguém é ilegal em terra roubada.”

Tento penetrar o seu sentido

que a rapariga com um ar convencido

mostra como tão evidente

quanto um axioma que toda a gente,

como a comutatividade, tenha em mente.

 

Ninguém deveria ser, em todo o planeta, ilegal,

mas toda a terra foi roubada a alguém ou a ela própria.

O axioma revela-se um círculo quadrado afinal

e a empenhada entrega da rapariga só inglória.

 

Nenhum território habitável deixou de ser alvo de conquista.

Falar de nativos é falar de milhentos povos

que se conquistavam e roubavam uns aos outros,

aniquilavam os antigos povos e instalavam os novos.

E assim foi por todo o planeta,

por todo o continente, por toda a região,

nenhum local deixou de ouvir o toque da corneta

para desferir ataque, chacina, apropriação.

O solo guarda o segredo de quantas famílias foram dizimadas,

quantas violações, quanta tortura, quanta destruição

se acumulou pelos milénios em cada recanto do mundo, em cada pedaço de chão.

 

Mas o que é ser ilegal?

Significa não cumprir um determinado tipo de condição contratual.

Nada tem a ver com uma justiça transcendente,

com direitos absolutos garantidos divinamente.

Alguém que entre inusitado num covil criminal

estará, segundo as suas regras, igualmente ilegal.

Todo o Estado nasceu e cresceu através da violência.

As comunidades de paz não são em nada naturais,

ou foram protegidas pela força das disposições estatais,

ou acabaram por desaparecer com ou sem história.

Comunidades de paz são antros de privilegiados

que se pretendem superiores à violência e à corrupção

quando dependem das potências da ganância e guerra,

beneficiando de sacrifício, martírio e laboral exploração.

Assim foi com os índios como em qualquer outro lado,

os budistas foram protegidos por impérios

e a própria Igreja tinha braço armado.

 

Mas toda esta discussão parva não é nada

comparada com a noção de terra roubada.

Os liberais creem que do simples trabalho depende

toda a legitimidade do direito à propriedade,

isto antes de Estado ou organizada sociedade.

Se apanhar uma maçã não pertencente a ninguém,

o trabalho de apanhar torna a maçã minha pertença

segundo um intemporal direito natural,

sem lei, nem polícia, nem sequer um tribunal.

Sem reconhecimento ao menos social

é um disparate falar até mesmo de direito.

Que direito tem alguém com um machado no peito

se não há qualquer instância de autoridade,

ninguém que reconheça nem sequer a nossa vida

como nossa mais elementar propriedade?

 

Se algum direito absoluto existisse,

seria não o nosso sobre a terra mas da terra sobre nós,

ela é que nos suporta, dela é que nós dependemos,

não somos nada se nos considerarmos a sós.

Podemos deteriorá-la mas nem sequer a destruir,

quanto mais sermos capazes de verdadeiramente a possuir.

A propriedade não passa de um acordo entre homens

para impedir que entre eles se desencadeie conflito.

Até predadores selvagens se espalham pelo território

para cada qual ter espaço para a sua caça

e, mesmo aí, tudo dependerá da força que o mantém

sem reconhecimento vitalício do que cada um, para o seu lado, tem.

 

A terra estará cá quando já nem homens existirem,

anterior a cada um dos seus delírios e alucinações

e, no final, quando, não a terra, o planeta desaparecer

dos homens não restará nem desejo, nem ilusões.

E ainda assim homens cumprem o mandamento da terra

quando amam e odeiam, quando competem, procriam,

quando afirmam e negam, quando fazem paz e guerra,

quando sonham, quando ensejam, quando agem, quando criam.

Sem consciência alguma porque fazem o que fazem,

os homens emergem da terra e nessa terra enfim jazem,

pedaços cegos de terra a julgarem-se superiores

até serem arrasados pelos tempos posteriores.

Tu que vens do pó, para o pó voltarás[1]

e tudo o que tiveste no mundo aí mesmo deixarás.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. III, terra, pp. 143-145.


[1] Adaptação de Eclesiastes, 3, 20.

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