"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

Os poemas sangram


Os poemas sangram

são feitos das batalhas travadas cada dia

percorrem a guerra eterna da cidade

reproduzem os golpes as traições as feridas

variam conforme as alianças

conforme as táticas conforme as estratégias

e sobretudo conforme os inimigos

 

Os poemas sangram

esguicham de pulsos e são punhais

desabam gravíticos das torres

afogam-se estrondosos na rebentação

esperam o impacto de carros e comboios

escorrem das entranhas de mulher

amam o combate e a derrota

 

Os poemas sangram

dor pura feita palavra

são feitos de neurónios não de versos

feitos de desgraça e de tragédia

ou só de paz desoladora

entre os corpos do campo de batalha

quando a guerra avançou para outro lado

 

Os poemas sangram

mesmo no amor mais ainda na paixão

que abrem chagas pela alma

e lutam sempre por poder

mesmo na vítima indefesa

que através da compaixão

consegue alcançar dominação

 

Os poemas sangram

advêm da terra esventrada

bebem o veneno dos mananciais

intoxicam os lençóis

até definhar planta e árvore e flor

asfixiam organicamente os rios

até tudo ser dor angústia e morte

 

Os poemas sangram

pelas artérias rodoviárias

a insultar os movimentos

pelas instalações públicas

lançando olhares obscenos

pelas escadas pelos elevadores

antecipando a solidão e a tortura

 

Os poemas sangram

pelos antros pelos esgotos

pelo clandestino pelo sórdido

pelo oculto pelo conspirante

e desvelam intenções

denunciam os abusos

desmascaram violações

 

Os poemas sangram

pelo crime mais brutal

mas também camuflam

prestidigitam falseiam

embelezam a fealdade

idealizam o obsceno

e comprometem verdade

 

Mas mesmo na falsidade

têm a verdade da emoção

da cadência da música

vinda de dentro das veias

com a autenticidade

de um corte a espirrar sangue

ou de sangue vomitado

 

Os poemas sangram

as palavras no papel

e estas são estigmas abertos

que nos dizem sempre algo

sobre afeto sofrimento

sobre o bairro sobre a rua

sobre o mar e sobre o vento

mão a agarrar terra crua

carícia do firmamento 

Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. III, terra, pp. 117-119.

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