"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

Danos colaterais da fragmentação da família tradicional


Danos colaterais da fragmentação da família tradicional,

vítimas silenciosas e silenciadas da revolução sexual,

chagas dissimuladas da igualdade e identificação dita de género

a alastrarem por sociedade muito ciosa de direitos

enquanto as crias estão hipnoticamente fixadas em ecrãs

que usam nas ruas, nas salas, nos quartos, nos seus leitos,

e se agregam em depósitos análogos a asilos

onde se diz que aprendem a se socializar,

quer dizer,

violentarem e serem violentados pelos outros,

interiorizarem o sofrimento da diferença e a alegria da conformação,

saborearem o travo amargoso do abandono e da traição:

 

Um novo pecado original emergiu da laicidade libertária

– desamparadas, abusadas, agredidas, hostilizadas,

sempre a sentirem-se a mais na vida dos próprios pais,

as crianças quase já nascem a sentirem-se culpadas,

sem saberem de quê ao certo, sem acusações formuladas,

antes ainda de poderem enunciar frases ou palavras,

nas guerras civis que constituem hoje os supostos lares

ou nos campos de batalha devastados

das famílias desfeitas pelos pais divorciados.

 

Uma mãe acompanha ainda a filha ao parque

mas, apesar de encher a boca de ternura maternal,

sobretudo para a partilha emocional com as amigas,

não larga o ecrã e responde a qualquer solicitação com o maior enfado

– preferia ter aventuras aliciantes, alternando de namorado em namorado,

preferia encontrar-se com um contacto da internet rebarbado

ou com o amante que mantém diligentemente camuflado,

tudo menos ter de zelar pela filha,

uma cria aborrecida que só a empecilha.

 

Um pai longamente ausente procura compensar o filho,

leva-o ao futebol, a um jantar, compra-lhe um jogo

e encontra assim desculpa para não o ver por mais um mês

– trocou a mãe que já não dava pica por mulher mais lúbrica

e já tinha mudado para tantas outras que lhes perdera a conta

– enquanto simula a atenção ao filho

só pensa na última que para o engate final estará já pronta.

 

O avô recebe a netinha emudecida por quem mostra tanta ternura

apesar do silêncio teimoso e mal humorado da casmurra

que ninguém, na família, sabe explicar

– afinal, ninguém fica a ver quando o avô a menina vai deitar

e o que ela sofre para que ele se possa saciar.

 

O casal não consegue explicar à Diretora

de onde vem o mau comportamento do seu filho,

sua vontade de partir tudo e agredir até o maior amigo,

mas, longe da vista alheia, entre mútuas recriminações,

agridem-se entre si e mimam o filho com ainda piores agressões.

  

E por toda a parte, por trás de portas e paredes,

as crianças vivem um inferno censurado,

um inferno de que só se fala como sendo de outros

e que toda a gente, por condições e circunstâncias, justifica

– afinal, só se dá direitos a quem os reivindica

e as crianças só com a tristeza conseguem protestar

– tempo haverá para as crianças desenraizadas

encontrarem formas adolescentes de reivindicar

e desenvolverem inconsciência ou má consciência

de quanto dos filhos que terão estarão a abusar,

lesando seus direitos para desejos satisfazer

por muito que os façam, como eles antes, sofrer.

 

Longos dias passados absortas, longos dias com o peso da indiferença

e a impossibilidade de crianças darem forma ao seu vazio na consciência,

só conseguindo exteriorizá-lo em objetos, comida, brinquedos e ecrãs,

nas agressões da luta pela sobrevivência

na selva em que são largadas todas as manhãs,

atoladas na lama do pântano do caos

até o egoísmo natural se verter na crueldade

e devirem vítimas eternas ou seres maus

capazes de infligir maior violência que a recebida

ou aprenderem a coligar-se para devolver a ofensa infligida.

 

Assim como se compra prazer, se compra carreira,

se compra a única coisa que importa, a realização pessoal,

assim se compra tudo para o filho para o deixar à beira,

para não chatear, para não atrapalhar o fundamental:

conversas com os amigos, satisfação sexual,

entretenimentos diversos, sucesso profissional.

E chegam à adolescência os meninos a que deram tudo

e os jovens arrastam-se indolentes de depressão em depressão,

epidemicamente desestruturados, incapazes de se orientar,

fugindo às relações aprofundadas por medo de traição

ou só as tendo obscenas por impotência de amar,

consumindo tudo o que podem e querendo consumir mais

e finalmente assim conseguindo a atenção dos seus pais.

  

Como foi possível isto acontecer?

O que se passa contigo?

Estamos sempre aqui para ti!

Em mim, encontrarás sempre um amigo!

Mentiras que se contam sobretudo a si

para se eximirem de tudo o que fizeram errado

– e seus filhos farão pior ainda,

formados na conceção que têm direito a tudo sem qualquer encargo.

Quando colidirem com o real

não saberão nada de responsabilidade

e andarão a escapar por toda a vida

em busca frustrada da pura facilidade.

 

Eis o mundo da busca da felicidade!

Percorra-se o rosto dos adolescentes na maior parte do tempo,

percorra-se o rosto dos refugiados nos campos que os recolhem

por guerra, banditismo, miséria ou desastres naturais,

o maior produto do mundo dito desenvolvido

e o símbolo do inferno do subdesenvolvimento,

e não será possível dizer qual o rosto mais sofrido,

sobretudo se o adolescente não estiver encharcado

de antidepressivos ou outros medicamentos

dos quais está mais dependente que um drogado.

É certo, estará melhor alimentado,

mas nenhuma esperança real o animará,

refugiando-se nos mundos fictícios

onde, espera, a si próprio nunca se encontrará.

 

Nem todos são assim, claro, isso são exceções

e, de repente, lá o filho com a perturbação camuflada

procura o psi isto e aquilo de urgência

para não descarrilar a perfeita existência projetada.

E não percebem porque preferem a noite,

porque preferem música estilhaçante,

porque preferem aliviar a ansiedade

com um comportamento autoflagelante.

Uma legião de jovens do mundo dito avançado

não vê nada no futuro ou nem quer avançar para esse lado,

preferindo ficar vegetativa no presente

sem capacidade de dar sequer um passo em frente.

No campo de refugiados, de mãos vazias, sem nada,

ainda emerge sempre a esperança

de tanto sofrimento desembocar numa alvorada.

Aí encontra-se abertura e transcendência,

nesses últimos redutos da sobrevivência.

Por aqui, no mundo privilegiado,

apenas fecho, indiferença e ausência

de razões para existir sequer um horizonte projetado.

 

E tudo começa com a criança abandonada

que ficou esquecida na orgia de direitos,

a criança que por nascer já é culpada

nunca saberá ao certo por, em e de quê,

talvez de não ser peluche ou boneco só para agarrar

como os bebés que se publicitam na tv.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. III, terra, pp. 112-116.

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