Danos colaterais da fragmentação da família tradicional,
vítimas
silenciosas e silenciadas da revolução sexual,
chagas dissimuladas
da igualdade e identificação dita de género
a alastrarem
por sociedade muito ciosa de direitos
enquanto as
crias estão hipnoticamente fixadas em ecrãs
que usam nas
ruas, nas salas, nos quartos, nos seus leitos,
e se agregam
em depósitos análogos a asilos
onde se diz
que aprendem a se socializar,
quer dizer,
violentarem
e serem violentados pelos outros,
interiorizarem
o sofrimento da diferença e a alegria da conformação,
saborearem o
travo amargoso do abandono e da traição:
Um novo
pecado original emergiu da laicidade libertária
–
desamparadas, abusadas, agredidas, hostilizadas,
sempre a
sentirem-se a mais na vida dos próprios pais,
as crianças
quase já nascem a sentirem-se culpadas,
sem saberem
de quê ao certo, sem acusações formuladas,
antes ainda
de poderem enunciar frases ou palavras,
nas guerras
civis que constituem hoje os supostos lares
ou nos
campos de batalha devastados
das famílias
desfeitas pelos pais divorciados.
Uma mãe
acompanha ainda a filha ao parque
mas, apesar
de encher a boca de ternura maternal,
sobretudo
para a partilha emocional com as amigas,
não larga o ecrã e responde a qualquer solicitação
com o maior enfado
– preferia ter aventuras aliciantes, alternando de
namorado em namorado,
preferia
encontrar-se com um contacto da internet
rebarbado
ou com o
amante que mantém diligentemente camuflado,
tudo menos
ter de zelar pela filha,
uma cria
aborrecida que só a empecilha.
Um pai
longamente ausente procura compensar o filho,
leva-o ao
futebol, a um jantar, compra-lhe um jogo
e encontra
assim desculpa para não o ver por mais um mês
– trocou a
mãe que já não dava pica por mulher mais lúbrica
e já tinha
mudado para tantas outras que lhes perdera a conta
– enquanto
simula a atenção ao filho
só pensa na
última que para o engate final estará já pronta.
O avô recebe
a netinha emudecida por quem mostra tanta ternura
apesar do
silêncio teimoso e mal humorado da casmurra
que ninguém,
na família, sabe explicar
– afinal,
ninguém fica a ver quando o avô a menina vai deitar
e o que ela
sofre para que ele se possa saciar.
O casal não
consegue explicar à Diretora
de onde vem
o mau comportamento do seu filho,
sua vontade
de partir tudo e agredir até o maior amigo,
mas, longe
da vista alheia, entre mútuas recriminações,
agridem-se
entre si e mimam o filho com ainda piores agressões.
E por toda a
parte, por trás de portas e paredes,
as crianças
vivem um inferno censurado,
um inferno
de que só se fala como sendo de outros
e que toda a
gente, por condições e circunstâncias, justifica
– afinal, só
se dá direitos a quem os reivindica
e as
crianças só com a tristeza conseguem protestar
– tempo
haverá para as crianças desenraizadas
encontrarem
formas adolescentes de reivindicar
e desenvolverem
inconsciência ou má consciência
de quanto
dos filhos que terão estarão a abusar,
lesando seus
direitos para desejos satisfazer
por muito
que os façam, como eles antes, sofrer.
Longos dias
passados absortas, longos dias com o peso da indiferença
e a impossibilidade de crianças darem forma ao seu
vazio na consciência,
só conseguindo exteriorizá-lo em objetos, comida,
brinquedos e ecrãs,
nas
agressões da luta pela sobrevivência
na selva em
que são largadas todas as manhãs,
atoladas na
lama do pântano do caos
até o
egoísmo natural se verter na crueldade
e devirem
vítimas eternas ou seres maus
capazes de
infligir maior violência que a recebida
ou
aprenderem a coligar-se para devolver a ofensa infligida.
Assim como
se compra prazer, se compra carreira,
se compra a
única coisa que importa, a realização pessoal,
assim se
compra tudo para o filho para o deixar à beira,
para não
chatear, para não atrapalhar o fundamental:
conversas
com os amigos, satisfação sexual,
entretenimentos
diversos, sucesso profissional.
E chegam à
adolescência os meninos a que deram tudo
e os jovens
arrastam-se indolentes de depressão em depressão,
epidemicamente
desestruturados, incapazes de se orientar,
fugindo às
relações aprofundadas por medo de traição
ou só as
tendo obscenas por impotência de amar,
consumindo
tudo o que podem e querendo consumir mais
e finalmente
assim conseguindo a atenção dos seus pais.
Como foi
possível isto acontecer?
O que se
passa contigo?
Estamos
sempre aqui para ti!
Em mim, encontrarás
sempre um amigo!
Mentiras que
se contam sobretudo a si
para se
eximirem de tudo o que fizeram errado
– e seus
filhos farão pior ainda,
formados na
conceção que têm direito a tudo sem qualquer encargo.
Quando
colidirem com o real
não saberão
nada de responsabilidade
e andarão a
escapar por toda a vida
em busca
frustrada da pura facilidade.
Eis o mundo
da busca da felicidade!
Percorra-se
o rosto dos adolescentes na maior parte do tempo,
percorra-se
o rosto dos refugiados nos campos que os recolhem
por guerra,
banditismo, miséria ou desastres naturais,
o maior
produto do mundo dito desenvolvido
e o símbolo
do inferno do subdesenvolvimento,
e não será
possível dizer qual o rosto mais sofrido,
sobretudo se
o adolescente não estiver encharcado
de
antidepressivos ou outros medicamentos
dos quais
está mais dependente que um drogado.
É certo,
estará melhor alimentado,
mas nenhuma
esperança real o animará,
refugiando-se
nos mundos fictícios
onde,
espera, a si próprio nunca se encontrará.
Nem todos
são assim, claro, isso são exceções
e, de
repente, lá o filho com a perturbação camuflada
procura o
psi isto e aquilo de urgência
para não
descarrilar a perfeita existência projetada.
E não
percebem porque preferem a noite,
porque
preferem música estilhaçante,
porque
preferem aliviar a ansiedade
com um
comportamento autoflagelante.
Uma legião
de jovens do mundo dito avançado
não vê nada
no futuro ou nem quer avançar para esse lado,
preferindo
ficar vegetativa no presente
sem capacidade
de dar sequer um passo em frente.
No campo de
refugiados, de mãos vazias, sem nada,
ainda emerge
sempre a esperança
de tanto
sofrimento desembocar numa alvorada.
Aí
encontra-se abertura e transcendência,
nesses
últimos redutos da sobrevivência.
Por aqui, no
mundo privilegiado,
apenas
fecho, indiferença e ausência
de razões
para existir sequer um horizonte projetado.
E tudo
começa com a criança abandonada
que ficou
esquecida na orgia de direitos,
a criança
que por nascer já é culpada
nunca saberá
ao certo por, em e de quê,
talvez de
não ser peluche ou boneco só para agarrar
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