"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

Obscenidade

     O que é o obsceno hoje? A condenação de mentalidades conservadoras às manifestações, por um lado, eternas, por outro lado, circunstanciais, seguindo as formas de expressão da moda, dos desejos eróticos? Certamente será isso para muitos e será assim apenas uma expressão de inveja e/ou de ressentimento. Ressentimento de já não serem jovens e belos e rebeldes e suficientemente corajosos para transgredirem as convenções anteriores. Invejosos se nunca foram suficientemente belos, suficientemente rebeldes, suficiente corajosos e ficaram mirrados no canto do meninos bem comportados, maldosos e ressentidos. A palavra obsceno nunca foi, porém, associada ao belo e eu não vejo como as expressões de erotismo possam não ser belas, como possa não ser bela a transgressão que o erotismo implica, transgressão que teve em inúmeras culturas função sagrada, permitindo uma transcendência impossível sem a sexualidade. E, no entanto, vejo obscenidade por todo o lado, muitas vezes até associada às tais mentalidades conservadoras. E a sua fealdade é hedionda.

Esta é a era da obscenidade. Da obscenidade, não do erotismo, não da paixão, não do amor. Mas em que sentido? Sempre existiram pessoas obscenas ou que se viam reduzidas a um estado obsceno, sempre existiram gestos obscenos, sempre existiram palavras e expressões obscenas, sempre existiram apreciações obscenas. Mas essa obscenidade não era dominante a não ser talvez pelo número, era desvalorizada ou até sinal de exclusão social ou cultural, havia a consciência de algo mais e havia pelo menos compreensão, quando não cumplicidade, perante as manifestações de loucura erótica, passional ou enamorada, sobretudo as dos jovens. Esta é a era da obscenidade porque este novo domínio da obscenidade é a aplicação da era da técnica à sexualidade. A técnica reduziu toda a realidade a uma unidimensionalidade manipulável, todo o conhecimento à uniformidade dos métodos legítimos e toda a ação à unilateralidade de uma utilidade, proveito ou serviço pretendidos. Tal pensamento único não podia admitir uma noção de conotações místicas tão fortes como alma, apesar da mesma estar ligada à origem da técnica moderna, e, assim, substituiu-a pela palavra preferida pela língua da técnica, a palavra mente, entendida como epifenómeno do corpo. Poder-se-ia pensar que um tal materialismo promoveria uma valorização do corpo, em particular do corpo erótico, e, para dizer a verdade, isso até aconteceu durante algum tempo. Na verdade, a transgressão das metafísicas, morais e convenções do passado constituiu um nutriente poderoso para as derradeiras formas de erotismo. Porém, após esta libertação do corpo das superstições do passado, o corpo perdeu todo o mistério, a sexualidade perdeu o caráter transgressor e as paixões foram reduzidas a interesses de consumo. O corpo infinitamente transgredido pela publicidade, pelo cinema e televisão, pela pornografia, pela cirurgia estética, pela mudança de sexo, assim como pelos transplantes, pela sua produção artificial, pela manipulação genética, etc., já nada tem que possa motivar um desejo de transgressão. Em vez de objeto de desejo da alma, da mente ou do psiquismo, passou a ser mero objeto de consumo, certamente ainda objeto de desejo, mas do desejo que faz o cliente escolher os produtos nas prateleiras do supermercado, desejo certamente mas relativamente indiferente, colocado ao mesmo nível de tudo o resto no mercado global dos bens, dos recursos e dos serviços.

A redução à unidimensionalidade técnica tornou o corpo num recurso que pode ser manipulado como todo e qualquer outro recurso e que pode ser apreciado como qualquer outro produto, até por ser visto cada vez mais como algo fabricado. Nesta estranha redução da pessoa ao corpo, longe de se valorizar o corpo, o corpo tornou-se universalmente venal como ocorria tradicionalmente com as prostitutas. Mas estas procuravam, habitualmente, ainda salvaguardar a alma que é coisa que já não se considera existir. Desta forma, a totalidade da pessoa tornou-se venal como ocorria com os escravos, com a curiosidade de serem as próprias pessoas que se procuram vender, sujeitando-se à fabricação de um produto adequado e submetendo-se à apreciação de outros até em programas de televisão em que outros como clientes de supermercados se põem a apreciar os produtos expostos nus em escaparates, em ilhas ou numa casa em que são postos a interagir para as câmaras, selecionando o produto preferido. Estes clientes, por sua vez, tornam-se produtos para outros e, assim, o ideal das relações eróticas da nossa época, ao menos nesta cultura, é o de um mercado sexual de escravos em que todos se comprem uns aos outros. Isto é a obscenidade, tal como é obscenidade a seleção de partes do corpo a modificar ou a forma como hoje se concebem as relações afetivas. Esta obscenidade é a redução do erotismo à indiferença técnica.

Poder-se-á pensar que isso é uma deformação dos media e que tudo continua como sempre nas relações humanas. Mas não é verdade. Os grunhos e os broncos tradicionais faziam apreciações do mesmo tipo das jeitosas que passavam pela rua, mas essas apreciações eram transgressivas ao nível que lhes era possível, transgressivas da intangibilidade das jeitosas. Além disso, reservavam uma outra linguagem para as relações próximas. Sem o caráter insultuoso ou agressivo desses broncos, ouço os jovens a fazer o mesmo tipo de apreciações não apenas de estranhos ou de próximos menos relevantes, mas das pessoas supostamente mais relevantes. Todo o poder transgressor quer do erotismo, quer da paixão se esvaiu no mercado das relações afetivas e até se leva a mal e não se compreendem as resilientes manifestações de paixão de alguns desajustados. Aliás, alguma coisa que preocupa sobremaneira os nossos jovens é serem acompanhados por um rótulo, tal como se espera de qualquer produto à venda no mercado. De facto, as relações são estabelecidas entre rótulos de produtos compatíveis e não entre pessoas. Tenho a certeza que em algum sítio se continuam a relacionar pessoas e se continua a inventar o amor, mas ele não se encaixa na linguagem dominante mesmo dos círculos rebeldes a não ser que se veja reduzido e integrado entre os bens de troca do comércio afetivo, sendo as manifestações tradicionais de erotismo ou amor (que continuam, aqui e ali, a ocorrer) ridicularizadas ou até mesmo condenadas. O caráter transgressor da sexualidade ou do amor e da paixão é mesmo mal visto, quando não anatematizado ao ponto de se querer criminalizar nos novos círculos ditos progressistas, apesar do seu moralismo unilateral, incapaz de compreender a dinâmica erótica e afetiva. De facto, nesses novos moralismos, tão puritanos quanto obscenos, as relações sexuais devem ser reduzidas a um contrato previamente discutido e estipulado nas suas diversas disposições, devendo decorrer nos rigorosos trâmites contratados sem admitir qualquer inflexão dos mesmos por entusiasmo, criatividade ou espontaneidade. As relações sexuais deverão estar constantemente reduzidas à segurança técnica e qualquer transgressão tornar-se-á potencialmente criminal. Todo o mistério, todo o universo da sedução, dos ímpetos românticos, das angústias passionais, do amor louco deve ser banido para dar lugar ao império da obscenidade técnica.

Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IIII, terra, pp. 130-132.

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