O que é o obsceno hoje? A condenação de mentalidades conservadoras às manifestações, por um lado, eternas, por outro lado, circunstanciais, seguindo as formas de expressão da moda, dos desejos eróticos? Certamente será isso para muitos e será assim apenas uma expressão de inveja e/ou de ressentimento. Ressentimento de já não serem jovens e belos e rebeldes e suficientemente corajosos para transgredirem as convenções anteriores. Invejosos se nunca foram suficientemente belos, suficientemente rebeldes, suficiente corajosos e ficaram mirrados no canto do meninos bem comportados, maldosos e ressentidos. A palavra obsceno nunca foi, porém, associada ao belo e eu não vejo como as expressões de erotismo possam não ser belas, como possa não ser bela a transgressão que o erotismo implica, transgressão que teve em inúmeras culturas função sagrada, permitindo uma transcendência impossível sem a sexualidade. E, no entanto, vejo obscenidade por todo o lado, muitas vezes até associada às tais mentalidades conservadoras. E a sua fealdade é hedionda.
Esta é a era da obscenidade. Da obscenidade, não do
erotismo, não da paixão, não do amor. Mas em que sentido? Sempre existiram
pessoas obscenas ou que se viam reduzidas a um estado obsceno, sempre existiram
gestos obscenos, sempre existiram palavras e expressões obscenas, sempre
existiram apreciações obscenas. Mas essa obscenidade não era dominante a não
ser talvez pelo número, era desvalorizada ou até sinal de exclusão social ou
cultural, havia a consciência de algo mais e havia pelo menos compreensão,
quando não cumplicidade, perante as manifestações de loucura erótica, passional
ou enamorada, sobretudo as dos jovens. Esta é a era da obscenidade porque este
novo domínio da obscenidade é a aplicação da era da técnica à sexualidade. A
técnica reduziu toda a realidade a uma unidimensionalidade manipulável, todo o
conhecimento à uniformidade dos métodos legítimos e toda a ação à
unilateralidade de uma utilidade, proveito ou serviço pretendidos. Tal
pensamento único não podia admitir uma noção de conotações místicas tão fortes
como alma, apesar da mesma estar ligada à origem da técnica moderna, e, assim,
substituiu-a pela palavra preferida pela língua da técnica, a palavra mente,
entendida como epifenómeno do corpo. Poder-se-ia pensar que um tal materialismo
promoveria uma valorização do corpo, em particular do corpo erótico, e, para
dizer a verdade, isso até aconteceu durante algum tempo. Na verdade, a
transgressão das metafísicas, morais e convenções do passado constituiu um
nutriente poderoso para as derradeiras formas de erotismo. Porém, após esta
libertação do corpo das superstições do passado, o corpo perdeu todo o
mistério, a sexualidade perdeu o caráter transgressor e as paixões foram
reduzidas a interesses de consumo. O corpo infinitamente transgredido pela
publicidade, pelo cinema e televisão, pela pornografia, pela cirurgia estética,
pela mudança de sexo, assim como pelos transplantes, pela sua produção
artificial, pela manipulação genética, etc., já nada tem que possa motivar um
desejo de transgressão. Em vez de objeto de desejo da alma, da mente ou do
psiquismo, passou a ser mero objeto de consumo, certamente ainda objeto de
desejo, mas do desejo que faz o cliente escolher os produtos nas prateleiras do
supermercado, desejo certamente mas relativamente indiferente, colocado ao
mesmo nível de tudo o resto no mercado global dos bens, dos recursos e dos
serviços.
A redução à unidimensionalidade técnica tornou o
corpo num recurso que pode ser manipulado como todo e qualquer outro recurso e
que pode ser apreciado como qualquer outro produto, até por ser visto cada vez
mais como algo fabricado. Nesta estranha redução da pessoa ao corpo, longe de
se valorizar o corpo, o corpo tornou-se universalmente venal como ocorria
tradicionalmente com as prostitutas. Mas estas procuravam, habitualmente, ainda
salvaguardar a alma que é coisa que já não se considera existir. Desta forma, a
totalidade da pessoa tornou-se venal como ocorria com os escravos, com a
curiosidade de serem as próprias pessoas que se procuram vender, sujeitando-se
à fabricação de um produto adequado e submetendo-se à apreciação de outros até
em programas de televisão em que outros como clientes de supermercados se põem
a apreciar os produtos expostos nus em escaparates, em ilhas ou numa casa em
que são postos a interagir para as câmaras, selecionando o produto preferido.
Estes clientes, por sua vez, tornam-se produtos para outros e, assim, o ideal
das relações eróticas da nossa época, ao menos nesta cultura, é o de um mercado
sexual de escravos em que todos se comprem uns aos outros. Isto é a
obscenidade, tal como é obscenidade a seleção de partes do corpo a modificar ou
a forma como hoje se concebem as relações afetivas. Esta obscenidade é a
redução do erotismo à indiferença técnica.
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