"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

domingo, 22 de novembro de 2020

Era o peso

      Era o peso. Uma nuvem de negrura sobre tudo. Tudo estático, em silêncio, uniforme.

      Ao canto, a leveza do disforme. A barriga eminente. O ronco, antepara do expiro compassado, desarranjo estropiado, rompendo grosseiramente o silêncio como estupro de inocente, exalando odor repugnante de cerveja, vinho e corpo há muito não lavado, sustentado por pobre caixote podre a ranger fibroso sacrifício de velhice. O quarto gemia de absurdo e violado.

      Soaram passos. Soavam em degraus, pesados e a crescer sonoros, a diminuir distância. Hesitaram, soaram finais para a paragem e pararam. A porta rangeu e abriu-se à luz intrusa e à intrusa sombra. Olhou e pôde fugir à acusação frontal, judicativa, da dura seriedade do silêncio e escuridão, dirigindo, covarde, frágil, a atenção ordinária ao corriqueiro ronco da figura volumosa, exorcizante de toda a significação.

      – Então homem – estrilhou a voz, mesmo se, pouco à vontade, um pouco embargada, subentendendo a busca instintiva de proteção ao retraimento insuportável que, violador do quotidiano, descansado e seguro esquecimento, a conjunção do lugar e do momento impunha. Medo. Fuga. E o truque vulgar e tosco que resulta. Mais que olhar p’ró lado, tão-só não ver, não ser visão.

      À visão, o quarto era sepulcral. Seco e frio. Pesado de morte ou solidão. Unidade. Habituando-se, o olhar devassador, mesmo se retraído, descobriria desarrumação multiforme mas estacada, petrificada de passado e vida abandonada. Livros, cadernos, papelada; copos, lápis, canetas, pequenas coisas; embrulhos, um banco, uma cadeira e uma mesa só adivinhável; alguma roupa. Despojamento. O desleixo impressionava de harmonia. O ermo expressava ainda liberdade. A secura adivinhava autonomia. O frio, imediato e cru, denunciava força ou inteireza. Tensão questionadora. Concreção solitária de dureza.

      O monte de gordura roncou convulso o despertar. O caixote chiou extremo de limite. “Isso é que é paz de alma!” Sobretudo aparente despreocupação, ocultando pusilânime nervosismo, referir o insuportável levemente... “Eu é que não conseguia estar assim descansado. É só descontração!...” Falar por falar e o nada dizer avizinhar significado temido e fundo. “’Tá na hora?” O temível já expressado – o ronco fez-se verbo, significado. “Daqui nada...”

      O olhar era, finalmente, constrangido a deter-se fugaz no mais visível. Silêncio e solidão. Primeiro, impunham-se as tábuas grosseiras, mal talhadas; depois, a configuração alongada do caixote; terceiro, o volume enigmático, interior; por fim, em desvelar chocante, a surpresa de um rosto iluminado, o mais iluminado dentro o quarto, expressando-se inquisidor por apagado: a morte velada a medo, a custo ignorada, irrompia solitária ao olhar sabedor do que o esperava, como sentença capital inesperada, cortante, ameaçadora como um gume, irrompendo petrificada à covarde contenção de um olhar que inutilmente se fechava, finalizado em sobressalto esbugalhado aos limites da revelação indesejada.

      – Então não deixou nada? – a voz soava envergonhada, consciente da profanação do significado do momento, momento solene de desvelamento, pórtico de visionamento do terrível sentido da existência, rumo a mistério ou ausência. Havia a necessidade de conspurcação da solenidade com as premências do quotidiano. Havia a necessidade de tratar a morte como um mero facto entre outros factos, algo com que lidar na vida e não a própria possibilidade derradeira da existência de cada qual. Por possibilidade de reflexão da sua própria situação, havia que a considerar de forma pragmática, havia que a tornar banal, incomodidade quanto muito que vinha interromper fluxo das preocupações nos negócios e na convivência social.

      Pesarosa de estremunhamento, a obesidade acabada de despertar não parecia capaz da elíptica leviana rumo ao útil conveniente à abordagem fugitiva. Abanou a cabeça lentamente, como sem força para se mostrar indiferente num encolher de ombros: “Deixou-nos bem enrascados.” A voz arrastada pelo sono e entaramelada pela longa habituação ao álcool conseguiu expressar-se com desdém: ”Ainda se conseguíssemos alguma coisa por esta merda toda... Mas quem quer este lixo?” Sentiu‑se um leve incómodo na figura ereta, tudo o que restava de uma vida reduzido a lixo. A existência como um acumular de detritos. A morte como uma oportunidade de predar os restos. Predar, não, vasculhar necrófago de bens. A tensão sentida tinha de ser quebrada. Avançou para a janela e puxou as persianas. A luz inundou o quarto, fez brilhar o pó por todo o lado, acordou aranhas em mil teias e desvelou sujidade nas paredes.

      Mas o monte gelatinoso de fedor irritado pelo súbito despertar, forçou ainda mais a desumanidade crua, uma forma como qualquer outra de lidar com a insustentabilidade da dura significação nua: “Devíamos era lançá-lo à vala.” O incómodo do outro aumentava, pequenos gestos inquietos denunciavam a tensão. “Nem me pagou o último mês. Deve ter morrido de fome. Um inútil... E, agora, somos nós que temos de arcar com as despesas...” Não queria arrastar a conversa para o respeito pelo cadáver, havia que manter a abordagem ligeira, reenviá-la para as simples preocupações quotidianas, mas tinha de responder alguma coisa: “Também não é por meia dúzia de tábuas e uma cova...” Um ruído indecifrável, talvez a antecâmara de um grunhido, foi emitido pela protuberância sentada: “Não era nossa obrigação.” E prosseguiu com impaciência: “O que é que somos a ele? Um tipo sem eira nem beira. Sem família, sem profissão. Nunca se deu com ninguém. Não, não é nossa obrigação.” Uma mistura de impaciência com irritação na réplica a romper a contenção neurótica: “Não quer esvaziar o quarto? Alugá‑lo de novo?” Um suspiro assinalou a resignação. Virou-se então para a demora: “Quanto falta?” Aliviada, a resposta: “’Tá na hora.”

      Como se esperassem pelo anúncio, assomaram à porta duas novas figuras. Uma nuvem de fumo invadiu o quarto, expelida pela boca escurecida de onde se seguiu uma tosse cavernosa de agouro e de presságio. O cigarro queimava-se lentamente na sua mão até ser sugado de novo num ardor mortífero. O jovem companheiro olhava absorto para o cadáver e era evidente que não proferiria um som. O fumador, como se tivesse ouvido parte da conversa ou a adivinhasse na disposição do obeso ou na tensão nervosa do antes irritado, atirou em jeito de pequena provocação para o primeiro: “Ainda a remoer isto?” Imediatamente, o segundo lhe fez um sinal impaciente de corte com a mão e o ainda sentado, já pouco disposto a voltar o assunto, encerrou o caso com um ínfimo movimento de ombros.

      Era evidente a indiferença do fumador ao cadáver, era evidente o terror hipnótico do silencioso. “Está um bafo lá fora” – declarou lançando mais um bafo de tabaco pelo quarto. “Não há nuvens, mas não se vê qualquer azul...” Continuando pouco à vontade com a situação, mas aproveitando a ligeireza da informação quotidiana, o nervoso sugeriu: “Se calhar, há fogos.” Mais uma baforada, impregnando todos com os vapores da nicotina: “Aqui por perto não se vê nenhum. Talvez lá longe...” Depois, virando-se, finalmente, para a figura central como se desse pela primeira vez pela presença: “Então, quando é que despachamos este desgraçado?” O incómodo regressou ao interlocutor: “Estávamos à vossa espera...”

      O obeso, finalmente, iniciou o lento esforço de se dispor a levantar. Parecia impossível o velho caixote resistir à força que o esmagava, porventura uma última proeza antes de conhecer chama ou lixeira. Apanhou o braço do fumador e a ponta de uma mesa e começou a titânica tarefa de se erguer. Não se teria alçado, ainda assim, não fosse uma pequena ajuda do companheiro que desencadeou um pequeno mas violento ataque de profunda tosse. “Oh! homem! Tem a certeza que aguenta levar isto?” – declarou quando recuperou o fôlego e, na garganta longamente irritada, a rouca voz. “Preocupe-se antes com não deitar, com esse catarro, o caixão ao chão. Descanse... Custa levantar-me por causa de uma dor nas costas, mas não a sinto de pé, mesmo a levar coisas...” Provocador de novo, não pôde evitar uma réplica: “Claro, a força da gravidade nada tem a ver com isso... Ao menos, consegue acompanhar o nosso passo?” Notou-se um pequeno quase impercetível embaraço, mas também quanto era tão habitual que já pouco importava: “Com o calor que está, quer ir a correr? Se formos a passo, não haverá qualquer problema.” Um prenúncio de riso iniciou a reação: “A passo? A passo de tartaruga quer dizer.” Desta vez, a irritação notou-se e convocou rápida a alfinetada: “Está com pressa? Tem medo de morrer antes de despacharmos este?” Era mais do que o mais débil podia aguentar: “Parem com isso.”

      O absorto, absorto continuava. Olhava para as faces cavadas do cadáver, para a sua roupa grosseira e coçada, para as suas mãos oblongas e esqueléticas, para as veias que percorriam salientes sua pele. Olhava e nada via, atingido pela brutalidade do real. Nada pensava, só olhava e o seu olhar estava vazio. O provocador não pôde resistir: “Então, tens medo que te morda? Descansa que vampiros só nos filmes...” E largou uma risada logo interrompida por nova tosse cavernosa. A contrariedade levava o perturbado a gestos incompletos, a trejeitos. Ligeireza seria o que desejava mas não sobre a realidade que temia. Sem saber bem o que fazer, precipitou a situação. Agarrou na tampa, disposta no chão em pé pela largura e encostada às pernas de uma mesa, duas tábuas largas unidas por tabuinhas, e colocou-a em cima do caixão. O jovem silencioso respirou fundo. A ameaça tinha desaparecido do olhar. A intimidação da presença do cadáver não tinha, porém, desaparecido e o silêncio do rapaz permaneceu. Irritadamente, apressadamente, quase exasperadamente, o outro foi pregando a tampa ao caixão. Oito pregos, nove pregos, dez pregos. Suspirou. Escarnecedor, por hábito, o fumigante exalou ao largo nova nuvem: “Esse já daí não foge.” O martelo foi largado, o encerramento da existência consumado. Aquela figura não mais seria vista, mesmo que furtivamente, no dia-a-dia social. Em breve, existência já pouco lembrada em vida, seria para sempre esquecida como se nunca tivesse sequer sido vivida.

      “Vamos lá a isto” – atirou o mais gordo como quem pretende despachar uma desagradável inconveniência inevitável. Já antecipava o suor que as suas banhas iriam destilar. Os quatro aproximaram-se do caixão. Surpreendentemente, dadas as diferenças entre eles, tinham todos, sensivelmente, a mesma altura. Quase se podia adivinhar pelo tamanho do caixão que isso era verdade para os cinco. O caixão foi levantado com uma rapidez surpreendente. “Estava à espera que pesasse mais...” – declarou o obeso e acrescentou: “Também, é só pele e osso. Como um certo fumador que conheço... O que pesa mais são as tábuas.” O outro devolveu-lhe o sarcasmo: “Ao contrário de certo senhor... Não por ter carne. Desconfio que essa gordura tem quase tão pouca como o desgraçado.” O nervoso rugiu a irritação: “Acabem com isso. Acham que esta é a altura para se estarem a picar?” O sarcástico esquelético ainda disse entre dentes: “É sempre boa altura...”

      Fisicamente discrepantes, num contraste risível, o fumador e o obeso seguiam adiante marcando o passo. Com facilidade, contornaram os obstáculos. Descuidados com a leveza, embateram na ombreira. O caixão quase se baldou, imprecações, realinharam-se, prosseguiram. Percorreram o corredor, desceram a escada estreita e abriram a porta exterior. Assim que a abriram, sentiram a canícula em toda a sua intensidade e perceberam que afinal não iria ser mesmo nada fácil. “Porque raio marcaram uma hora destas?” – remordeu o rotundo com notória dificuldade em respirar. O neurótico não pôde evitar expressar seu medo: “Queria fazer isto à noite?” O tísico acrescentou arfante: “O coveiro tinha que fazer e não podia enterrá-lo mais tarde. E de manhã, já tinha todos os enterros marcados.” A maior volumetria baixou a altura como sinal de conformação. O rapaz parecia aterrado com o calor.

      O cemitério era longe e mais longe ficava com o sol inclemente, com o ar quente sufocante. De facto, não se via nada azul no céu perto ou distante. Cor de tijolo, cor de ferrugem, ar de doença, febril, quase irreal. Cada passo um martírio, cada inspiração resistência ao ardor. Implacável, o sol tórrido em breve os fundiu numa só amálgama de suor. Passo a passo, lentamente, cada vez mais pesado, cada vez mais extenuante, cada vez mais insuportável, o caixão foi levado pelas ruas. Primeiro os ombros, depois as costas, depois as pernas, até os braços começaram a doer. Não viram ninguém, nem ninguém os viu, todos recolhidos por proteção do calor. Percorreram grafitis e calçadas, muros arruinados, vivendas cuidadas. E subiram, subiram sempre, como se estivessem a ser testados contra a dor. A pouco e pouco, deixaram de a sentir, passaram a ser só a missão. Um pé, outro pé, a consciência a diluir‑se nos corpos encharcados, o pó a colar as roupas, a colar as mãos, a colar os lábios. A secura na boca já não tinha saliva que a aliviasse. Ferventes os crânios não permitiam que seja o que for algo pensasse. Em breve, todos eles eram uma única tontura. O som dos passos, a arrastada cadência de seguir, tortuosa entidade autónoma que os empurrava para continuarem a subir. Nada havia já de individual em cada qual, tornando cada outro num igual, toda a diferença indefinível, cada um de outro indiscernível. Arfavam como um só, andavam como um só, palpitavam como um só. Fundiram-se numa criatura única, tão insensível, tão inconsciente, tão inorgânica como os restos que levavam. Em breve se tornaram mera expressão da coisa transportada, o gordo, o fumador, o neurótico, o absorto, o poeta, apenas reminiscências da existência falecida. Um mesmo hausto a percorrer essas possibilidades, um mesmo descontrolo, uma mesma desmesura a percorrer vários momentos de vivência da tortura. Absortamente taciturna, a obesidade deglutia a ansiedade que sorvia inspirante a inquietação de falta de poesia na existência. Eram um. Um no sortilégio, um na danação, um na voragem lançada para a própria consumação, um na insustentabilidade do absurdo do vivido, um no desconhecimento do senso de terem decorrido. Unidade consolidada pelo sofrimento na eternidade abominável do momento após momento. Ressequido aglomerado, gravação fossilizada de amálgama petrificada.

      Por fim, chegaram e o coveiro os esperava. “Estava a ver que nunca mais chegavam” – uma figura que parecia extraída da morte, careca e cinzento, idade avançada ou devassada por mortificação inconfessável. A um tempo, todos depositaram o caixão sobre as cordas dispostas pelo coveiro. Com alívio incalculável, recuperaram a sua singularidade. O mais pesado ainda não conseguia falar, senão teria dito algo similar ao fumador: “Oh! homem, ainda estás pior que esta manhã... Pareces um susto...” O coveiro arreganhou a boca, num esgar sarcástico e maldoso: “É o cancro... Desconfio que não deve faltar muito para o conheceres... Veremos quem enterra quem.” O nervoso voltou a fazer pequenos gestos sem intencionalidade ou nexo. Queria livrar-se disto, voltar à cómoda tranquilidade dos problemas do quotidiano de que cuidar. Finalmente, o obeso conseguiu falar: “Porque têm de pôr os cemitérios no alto? Esperam que os mortos apreciem a vista? Se vamos metê-los numa cova, não faria mais sentido já ir descendo para ela? Pelo menos, na volta, a subir, já não íamos carregados.” O desprezo do coveiro foi ostensivo: “Se não fosse tão sovina, podia tê‑lo trazido como os outros, de carrinha funerária.” Um sopro sonoro saiu-lhe da boca em protesto: “Mas por que raio deveria eu pagar alguma coisa pelo enterro deste tipo? Senhorio não é família.” A impaciência levou o ansioso a disparar: “Vamos mas é acabar com isto.” O calado, calado continuava.

      – A cova está pouco funda – após abundante escarro, acendeu novo cigarro. “Se quiseres, pega na pá e vai cavar mais. Talvez encontres o teu destino.” – devolveu mordaz o coveiro. Não se aguentando mais em pé, o balofo afogueado sentou-se desrespeitosamente numa campa. “Deve ser difícil manter-se muito tempo de pé. A gravidade é tramada.” – escarneceu. “Ajudem-me os outros!” Cada qual dos quatro pegou numa ponta das cordas, alçou o caixão e depositou-o na cova. Porém, ao puxar uma das cordas, o caixão virou-se um pouco, ficando, em altura, na diagonal. Desdém de um longo hábito tornado negligente: “Que se lixe... Ele não vai ficar incomodado.” O inquieto é que ficou, mas preferiu não protestar, não fosse isso prolongar a incomodidade. Mas sentiu dever dizer algo adequado ao momento, com ar pesaroso e tom solene: “A morte a todos atinge.” Pareceu-lhe bem. Reenviava a morte para um simples facto geral conhecido e assim não tinha de pensar na sua morte, não corria o risco de se rever refletido no caixão atirado desajeitadamente para o fundo da cova. Os restantes, mesmo sem esperar o abstrato epitáfio, tinham começado a atirar pazadas de terra sobre o caixão. Em breve, a pouco funda cova ficou preenchida. Todos podiam regressar às preocupações da vida, entendendo por vida as distrações quotidianas como se não houvesse futuro, como se não houvesse temporalidade. Cada qual cristalizado na intemporalidade do entretenimento imediato do trabalho ou do lazer podia viver evitando pensar na sua condição mortal, até ser desassossegado da sua existência sem tempo por mais uma morte de um outro. Lá teria, aborrecido, de deixar as suas preocupações e dizer aquelas coisas que se dizem nos funerais para não ter de se confrontar com a morte a não ser como um facto à sua frente. Milagrosamente, o obeso levantou-se sozinho meio rebolando o corpo e todos, mesmo o coveiro, abandonaram o cemitério. A disposição de todos melhorou imediatamente e o rapaz recuperou a fala.

 

      Era o peso. Uma nuvem de negrura sobre tudo. Tudo estático, em silêncio, uniforme. Ao acordar, despertou mais rapidamente que o habitual devido à insólita posição sentida. A cama parecia inclinada e ter endurecido. Mesmo assim, com os membros dormentes, demorou ainda dezenas de segundos até mexer-se. A mão tocou a madeira, de um lado, do outro lado, a toda a volta. Rapidamente se apercebeu estar fechado dentro de uma caixa. O pânico instalou-se. Começou a tentar empurrar as tábuas, depois esmurrou-as, gritou inutilmente. A gradação do pavor parecia aumentar sem cessar. Sentiu falta de ar antes de ele, de facto, faltar, o coração batia descontroladamente, o corpo alagava-se de suor. Começou a dar joelhadas, pontapés, simultâneos com os murros. Conseguiu atirar todo o corpo contra a madeira. O peso da terra juntava-se aos pregos e impedia que a tampa se soltasse. O facto, porém, de o caixão estar de esguelha facilitou que o lado mais acima da tampa se soltasse um pouco. Imediatamente, começou a entrar terra para dentro do caixão. Só naquela altura percebeu, por fim, que estava enterrado vivo.

      Todos os alarmes de pânico se desencadearam no organismo. Começou uma luta instintiva e sem pensamento contra as massas que o sufocavam. Forçou a abertura da tampa até o seu corpo começar a escavar a terra. Os pregos cravaram-se no seu corpo, rasgando a sua carne, mas ele mal os sentiu. As mãos que escavavam freneticamente abriam feridas, quebravam ou perdiam unhas, empapavam-se de sangue misturado com a terra sem que ele desse por isso. No hausto de tentar respirar, à medida que penetrava cada vez mais o solo, comia-o sem querer, saboreava viscosidades, talvez minhocas, deglutia cada vez mais areia ou terra tornada lama com a humidade orgânica, por a boca estar cheia e tudo entrar para o esófago, para os pulmões. E sem outras sensações que não a urgência da sobrevivência conseguiu subir a pouco e pouco antes que soçobrasse. Mas a falta de ar, real agora, fazia-o ceder cada vez mais. Estava tonto, a perceção perdera a acutilância do instinto de sobrevivência, tudo estava a ficar difuso, o peito a doer horrivelmente, a morte a anunciar-se.

      Após uma eternidade de quem sabe dois ou três minutos, reduzido a um animal fuçante, repentinamente a mão direita deixou de sentir terra, sentiu mesmo uma aragem a passar. Ar frio da noite. O braseiro diurno tinha, ao fim da tarde, trazido nuvens pesadas e, mais tarde, irrompido em trovoada, entretanto já passada e da qual só restara a humidade. “Quase...” – conseguiu pensar. Uma fração de instante, uma hesitação, uma brecha na besta instintiva, um momento em contratempo, uma eternidade de reflexão, emoção avassaladora, pensamento. A palavra ecoou na temporalidade de toda uma existência, refletiu nas esquinas do destino, ressoou até à mais remota das memórias. Assim fora o que vivera: quase a vida, quase o génio, quase a força, quase o amor, quase a transcendência da paixão, quase responsabilidade à família dedicada, quase alcançar a realização, quase a morte descansada. Numa existência talvez tão-só sonhada, fora um fruto neurótico da repressão infantil, quase incapaz de tocar ou ser tocado, todos os gestos perdidos indecisos no vazio, insuportabilidade constante de desejo, entrega, medo. As palavras gastaram-se e tornou-se olhar, absorto no decurso da existência, quase entendendo o sentido que não podia formular, quase som, quase voz, quase discurso, quase capaz de viver ou se matar. Enlouquecera pelas vielas desta vida, bebera em hausto os bares que encontrara, fumara sortilégios pelas noites todas até não ter pulmões que respirar, desesperado e descontrolado a bater os cornos na existência. Conformara-se, apaziguara-se, fizera família com uma rapariga, tivera filhos e amara-os como nunca amara mais ninguém, tornou-se cada vez mais mesquinho e burguês, degradara-se até degradação se expandir em banhas, banhas cada vez mais abundantes, a sufocar tudo o que fora, a afogar possibilidade de ser mais ou outra qualquer coisa. Algures, no meio de milhentas outras faces, foi poeta, capaz de conjurar as potências da palavra, capaz de se alçar a existir acima, além, capaz de exorcizar demónios dos poços escuros da alma, capaz de se despojar de todo o ter, todo o possuir, para ser capaz de, autónomo e íntegro, ser autenticamente o proclamador de devir e advir, sondando os abismos das origens. E foi também o seu coveiro, precipitando-se pelas primícias da sua própria morte, antes de já não o poder fazer, a, por fim, preparar o seu sepulcro, mal amanhado com os restos disponíveis, ligando fragmentos dispersos e espalhados numa obra de fracasso e frustração. E todos os possíveis e ainda mais se juntavam neste instante derradeiro para pronunciar sem som o mesmo incontornável “quase”.

      Voltou a sentir a dor na mão e a aragem a aliviava. Regressou a si como se tivesse estado fora. Ainda era possível, ainda se poderia libertar. Recobrou sentidos como se tivesse respirado, a esperança dava-lhe novo alento, recomeçou a impulsionar o desejo de viver. E exatamente nesse instante, nessa extrema possibilidade de existir, última oportunidade de sobreviver, foi atingido por uma lassidão absoluta, a iluminação de uma questão, o bloqueio de movimentos que atinge alguém ao surgir subitamente a dúvida: “para quê?” Vivera a sua vida intensamente, se não publicara qualquer obra, experimentara produzi-las em cada fibra da vivência, amara-se a si próprio nos transes de paixão, conseguira amar outros abrindo a sua solidão, denunciara, em papel ou na mente, mil formas de fraude e mistificação, transcendera a superfície de aparências até pressentir os insondáveis mistérios de vida e terra, entregara-se finalmente inocente nos braços da presença. Sempre se interrogara como podiam crentes agradecerem a Deus terem sido salvos da morte, a morte que lhes daria acesso ao paraíso. Mas, mesmo sem paraíso algum, salvar de quê? Salvar da morte para a morte? Chegara a um impasse, ficara a meio, ficara entre, incapaz de direção, assim se fechara cada vez mais na sua solidão. Se estava enterrado era por ter‑se entregado em vida à sua própria petrificação. Para quê continuar este caminho de degradação? Para quê se agarrar ávido a uma vida que perdera o seu sentido? Não existia sequer algo ou alguém a que sacrificar o seu desejo de extinção, algo pelo qual ou alguém por quem se manter ainda vivo...

      Perpassou-o a consciência da triste existência da ganância de viver. O jovem morto num recanto remoto de África para que um riquíssimo americano pudesse viver mais um ou dois anos com seus órgãos. O refugiado atirado borda fora em alto mar pelo gangue que lucrou imensamente com o tráfico por pôr gente a mais no barco. O pelotão massacrado devido a um soldado entrar em pânico por ter medo da sua morte. O idoso convencido a matar-se ou pedir a eutanásia pela família cobiçosa da herança. O paciente que não teve o seu transplante por uma figura política importante mover as influências médicas para receber o órgão. A criança envenenada pela mãe para suscitar a compaixão do antigo companheiro. Povos inteiros chacinados ou despojados das terras para que uma corporação possa encher o mealheiro. Espécies inteiras extintas para curas imaginárias para o cancro ou para devolver magicamente a potência perdida e invejada. E em toda a miríade de casos sempre a mesma gulodice por ter mais ou prolongar a vida, sempre a avidez da mente distorcida, sempre a mesquinhez de se agarrar e não querer largar. Pior ainda, procura agarrar-se à vida quem menos sentido nela tem, quem fez da sua própria vida um inferno de que não quer se libertar como todo o viciado não quer largar o vício. Agarra-se à sua própria perfídia e por perfídia quer prolongar o seu suplício. E não se importa de matar um qualquer outro, chacinar povos, extinguir a própria vida porque perverteu a sua alma até já não ser capaz de a nada prestar a reverência merecida. Deformado, nenhum valor mais admite que o valor ilimitado do seu próprio apetite.

      Em contraposição, o guerreiro que se suicida por não poder suportar a humilhação de uma derrota, o filósofo que faz o mesmo por preferir a morte a uma existência indigna, o amante que entrega a sua vida feliz de saber protegida a sua amada, o pai que impede o afogamento aos filhos e acaba arrastado pela corrente, a grandeza maior da humanidade que se dispõe a morrer até para salvar estranhos, a naturalista que enfrenta até à morte caçadores furtivos da espécie em perigo, todo o maior valor que o humano pode atingir concentrado nestes gestos que estão dispostos a deixar a vida ir. Lendas se contam desde eras perdidas para a história, narrativas épicas inspiram no peito humano a coragem, histórias de amor e de paixão enternecem almas sonhadoras e notícias interrompem e transcendem o alinhamento de mesquinhez e maldade de todos os telejornais. O homem mostra tanto mais nobreza quanto mais larga, e mostra tanto mais baixeza quanto mais se agarra. Assim é também com riqueza, poder, carreira, honrarias, amor de amante ou até de filhos, e claro os vícios, gula, luxúria, jogo, estupefacientes, o aumento do ordenadozinho, a guerra da partilha num divórcio, o regateio de notas numa escola, a ocultação fiscal dos rendimentos, a inveja por igualdade, subsídio ou pensão, a ganância cega por herança, e em todo o agarrar uma prisão, seres cada vez mais doentes e, pior do que doentes, amputados, disformes, deficientes. De um lado pessoas, por vezes malogradas, outras nem isso, do outro gente repugnante entregue a sempre mais consumo não só de recursos, de bens e de serviços, mas de qualquer integridade ou qualquer valor. Quereria ser como essa gente, agarrar-se avidamente ao pouco que restar? Não haveria já gente demais no planeta a fervilhar praga ou doença infeciosa destruidora de todo o equilíbrio, desperdiçando, perdulariamente, eras de evolução de tantos organismos? Não seria bom dar lugar à esperança da regeneração em vez de insistir a salvar uma entidade já falida? Haveria ainda um qualquer motivo para continuar, um sentido, um objetivo, uma razão? Não seria a hora de acabar? A mão, lá fora, caiu no chão. Um formigueiro de prazer percorreu-o enquanto se entregava à final dissolução.

                Quantas vezes decidira pôr termo à vida e forças ignotas e insondáveis o fizeram permanecer, passar a depressão, encontrar amor, cultivar filhos, realizar tarefas pelo mundo, enfim, viver? Pouco importam as decisões da consciência, pouco importam as declarações solenes, pouco importa até o que se escreve, cada homem não passa de marioneta cujos gestos algo enigmático prescreve. E a fonte inescrutável da existência continua a impor-se, se preciso for com violência, com crueldade, sem clemência, mesmo no velho desgastado pelo tempo interminável ou no paciente torturado por doença terminal. Mas agora não bastava se manter, agora não bastava resistir, agora era preciso vencer vicissitude, transcender o obstáculo, totalmente ao instinto se entregar. E entre a decisão de voltar ao inorgânico e as pulsões que exigiam a continuação, mais uma vez a meio, mais uma vez entre, o corpo, em protesto, teve uma última convulsão, um espasmo final, o derradeiro estertor. A mão lá fora ergueu-se e assim ficou, dedos a abrirem-se para sempre, o mindinho curvado a noventa graus e os sucessivos cada vez mais abertos até o polegar quase direito. Passadas horas, de madrugada, uma chuva vagarosa foi lavando lentamente a mão assim entreaberta. Durou o bastante para retirar a terra e sangue, brevemente voltar a ter um resquício de beleza. Assim recebeu a luz do sol, assim foi rodeada pela frescura da manhã.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Madrid, Bubok, 2019, Vol. IV, petrificação, pp. 279-290.

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