Caminho por entre a desolação de um planeta devassado pelo nivelamento técnico. Tudo peças de uma engrenagem que funciona mal, mas funciona. Mais importante que funcionar bem é nivelar, encaixar todas as diferenças num puzzle único em que não existem distinções. Ninguém compreende, ninguém quer compreender, ninguém sequer concebe utilidade ou sentido em compreender o todo do puzzle, até porque este na verdade não existe. Cada qual vê tudo segundo a sua unilateralidade de peça e o sentido global do puzzle é todos reduzir a peças. O aglomerado caótico de um conjunto de peças não produz um todo, mesmo que a redução a ser peça faça buscar sempre a funcionalidade. A cada qual chega descobrir a sua função tal como uma peça do puzzle poderia, como uma ameba, ter uma consciência primitiva que por contacto com outro rebordo descobrisse o que condiz, onde se encaixar. O aglomerado de funcionalidades deste tipo funciona como poderia funcionar um monstro disforme composto de mil tendências e funcionalidades diferentes sem nexo. Acabar-se-ia por decidir um movimento monstruoso feito do maior número de esforços que se congregaram numa direção. Ao mover-se, o monstro consegue arrastar toda a miríade de ímpetos e até pode parecer ter um desígnio. Não passa, porém, de um aglomerado, de um amontoado sem orgânica, de uma colónia caótica de peças.
Caminho pela desolação de uma das
chagas que uma concentração de movimentos abriu no planeta. Chamam-lhe cidade e
as peças, de uma ou outra forma, orgulham-se de a ela pertencer. Regressando e vendo-a
ao longe, as peças sentem a grandiosidade de uma tal obra e julgam-na uma
manifestação maior do génio da espécie. Na verdade, não é obra nenhuma mas uma
amálgama de apetites, cada qual desejando satisfazer-se o mais possível e
apenas sendo limitado pelos outros, cada qual na sua direção até ser por outro
bloqueado ou desviado e resultando de todas as direções contraditórias a
confusão caótica da cidade. As peças congregam-se para satisfazer apetites, por
vezes para fugir de medos, de forma cega, insana, pois na verdade nada é mais
perigoso que a cidade. A cidade satisfaz, mas a cidade vicia, a cidade obceca,
a cidade perverte, a cidade destrói até transformar cada possibilidade de
pessoa numa peça, a peça que fuça em busca de onde se encaixar e ao encaixar
contribui para o monstro da cidade que até acaba por parecer uma obra.
Caminho pela desolação de cenário
pós-apocalíptico, segundo o que a dita cultura dita popular entende por
apocalipse nas películas cinematográficas. Aí se projetam cenários para um
mundo tribal de violência ou de meia dúzia de sobreviventes ou de zombies ou de pragas ou de mutantes ou
de nichos isolados daquilo que tentam mostrar como estranhos restos de
civilização. E eu olho esse cenário, um deles, qualquer um, todos mais ou menos
idênticos na sua diferença, e fico estupefacto. É difícil compreender como
ninguém vê já viver num desses cenários. A terra encontra-se esventrada, o solo
cada vez mais estéril, a água exaurida ou conspurcada, uma praga devassa o
planeta predando tudo o que entenda por recursos e fazendo deles e do resto
lixo, as formas de vida são sistematicamente exterminadas, algumas poucas
multiplicam-se mas para sofrer a condição de mantimentos, víveres, provisões,
outras são enjauladas para deleite aparvalhado das peças da engrenagem, e todo
o ambiente é alterado de forma caótica, irreversível e descontrolada. Muitos
filmes retratam extraterrestres predatórios que pretendem usar todos os
recursos do planeta para depois o abandonar – e ninguém repara que o homem só não
é esses extraterrestres por não ter forma de abandonar o planeta. Se tivesse,
seria ele esses extraterrestres e iria parasitando planeta após planeta, pelo
caminho todos destruindo. Assim, é só uma praga estúpida que acabará, de uma ou
de outra forma, por se autodestruir. O homem projeta-se a si próprio nesses
monstros, até porque, com o poder superior neles fantasiado, pode ter a ilusão
de se vir a furtar ao seu próprio destino nefasto.
Caminho pela desolação do consumo
desvairado e sei que já houve tempos em que o homem não era uma praga.
Esqueceu-se da pagã sagração da natureza, esqueceu-se dos conselhos de
moderação e prudência dos antigos, esqueceu-se do medievo cuidar zeloso da
terra, esqueceu-se de transcendência, esqueceu-se do esquecimento. Esqueceu-se
ou já não entende. Na sua condição de praga, deixou de ser capaz de entender.
Tal como acontece com gafanhotos ou ratos, uma espécie só se transforma em
praga em circunstâncias muito especiais. Dadas essas circunstâncias, a espécie
(ou parte dela numa certa localização) enlouquece, multiplica-se sem controlo e
destrói agressivamente tudo o que consegue consumir, vai mudando de local de
forma imparável até por fim esgotar recursos e se autodestruir. A diferença
desta praga é que é planetária, provocação, agressão e perigo globais, consegue
ameaçar a própria vida. Cada peça da praga só pensa no seu diminuto consumo e,
como qualquer membro de manada, sente-se simultaneamente protegido por
pertencer à praga e não responsável por não ser a praga. Essas peças foram
tornadas meras goelas querendo sempre mais satisfação por se ter reduzido o
cidadão a um sujeito de direitos, todos e quaisquer direitos, que acabam por
ser, no fundamental, direitos de consumo. Uma loucura foi tomando o homem há
alguns séculos, a loucura de que a realidade é o negócio e que tudo só existe
para fornecer produtos para a satisfação de apetites. E, podendo os apetites
ser estimulados e proliferar, a descoberta de uma qualquer utilidade de um novo
produto desperta imediatamente nova cobiça, até por os clientes, viciados na
hiperestimulação, se terem tornado ávidos de novidades. Um frenesim massivo
possui os consumidores na busca pelo novo produto, pelo novo serviço, pelas
novas engenhocas que, assim, se já não o eram, se tornam tóxicas e os
toxicodependentes usam e abusam sem consciência ou responsabilidade porque,
afinal, só estão, cada qual, a satisfazer os seus pequenos apetites. E assim,
em poucas décadas, infestam solos, rios, ar, oceanos com os novos produtos até
tudo se tornar diversos tipos de lixeira. Em massa consomem, em massa vão para
certos locais, praias, discotecas, festivais, em massa despejam seus detritos,
em massa destroem cada nicho da terra que pisam e nunca fizeram nada de
especial porque afinal só fizeram o seu consumozito. Todo e qualquer produto é
legítimo se identifica uma utilidade, por mais fútil que seja, e é
imediatamente lançado no mercado. Se gera uma procura, o todo poderoso mercado
consagra o produto com as bênçãos da multiplicação dos lucros. Quaisquer consequências,
quaisquer contextos, quaisquer objeções morais serão consideradas mais tarde e
até serão nova oportunidade para novo produto, novo consumo, novo negócio.
Acredita-se piamente que tudo terá resolução técnica e tudo se resolverá sempre
no mercado pois essa é a única realidade reconhecida. E ignora-se, com uma
disciplina intelectual verdadeiramente admirável, típica afinal da simples
má-fé, toda a destruição, toda a devastação, toda a aniquilação que esse
consumo provoca.
Caminho pela desolação de uma
terra assolada pelo mundo da usura, do mercado, do negócio. Por vezes, numa
peça, desponta vaga e primária uma reminiscência de se poder ser pessoa. Nada
que a engrenagem caótica não resolva. Há sempre inúmeros demagogos dispostos a
dizer o que as peças querem ouvir de forma a tranquilizar, ou melhor, a
aniquilar uma embrionária consciência. Os políticos e os ditos educadores põem
criancinhas a plantar árvores da floresta da indústria de celulose que há
décadas varreu a diversidade da vida do seu território e dizem que estão a
defender o ambiente. Depois, aderem às campanhas contra o óleo de palma pois
esse negócio está a destruir florestas bem longe daqui. Anunciam medidas sobre
medidas sobre medidas para, passados alguns anos, se perceber como tudo está
pior, rios conspurcados, sem água e sem vida, lençóis envenenados ou salobros,
as poucas florestas não industriais arrasadas para originar explorações
agroquímicas intensivas, o campo silvícola a servir de pasto para as chamas de
que ninguém é responsável, cidades a crescer sobre o solo fértil e cada vez
maior necessidade de agressão química para compensar a erosão. Um ou outro
negócio é prejudicado enquanto uma multidão de outros ainda mais perniciosos
alastra, aproveitando a distração das peças, sempre disponíveis para com tudo
se entreter. Se nem com os arautos da técnica, dispostos sempre a propagandear
as mil maravilhas propiciadas pelo mundo da usura do planeta, houver uma
tranquilização completa, podem-se consentir umas manifestações contra os malvados
que estão a prejudicar o ambiente, desde que nunca se ponha em causa a absoluta
necessidade de cada um dos manifestantes poder continuar intensivamente a
consumir. Com facilidade, se fazem mais uns negócios com a moda ambiental e,
quando a moda passar, passarão mais uns bons anos até que o todo‑poderoso
mercado tenha de lidar com tal inconsequente suposto ataque aos seus
interesses. E os servis media vão
sempre cobrindo campanha após campanha seja ativista, seja comercial, seja
partidária, seja empresarial, seja sindical, seja humanitária, seja musical,
seja nacional, desde que consiga momentaneamente ter clientela, sem um
micrograma de capacidade crítica. Afinal, também têm de zelar pelo negócio.
Caminho entre peças encaixadas,
mesmo que de formas estranhas, insólitas, arbitrárias, visto que o que importa
é encaixar e não como se encaixa. A partir do momento em que se encaixa, a peça
é incapaz de dizer uma palavra que não seja retirada do discurso da engrenagem,
reagindo hostilmente ou com indiferença a todo e qualquer enunciado
incompatível com o atual discurso do aglomerado. De facto, cada peça impede,
instintiva mas infalivelmente, a continuação de qualquer intervenção que destoe
da toada a que se habituou. Recusa sequer ouvir uma diferente enunciação, é-lhe
insuportável estar num ambiente onde seja possível dizer alguma coisa que não
se harmonize com o que se deve dizer, como se deve dizer, a quem se deve dizer.
Para harmonizar bem a toada, existem mil e um eventos, ações e oficinas de
formação, colóquios e conferências, entrevistas e pseudodebates mediáticos,
campanhas publicitárias, novas enciclopédias e dicionários, cursos
universitários, proclamações políticas, aviões cruzam os céus a transportar a
mensagem, atores declaram-na em todo o desfile de vaidade, camisolas trazem-na
estampada no tecido, ecoa pelos estádios, pelas redes, pelo ar, até uma peça
não conseguir algo diverso respirar. Como se trata de uma amálgama e não de uma
orgânica, o discurso da engrenagem vai lentamente mudando de teor, mas não por
qualquer razão ou como resposta a qualquer crítica legítima. A engrenagem, o
aglomerado, a amálgama não é uma consciência que possa ser sensível a
argumentos. Muda o teor como resultado dos ímpetos contraditórios das suas
peças até criar uma nova lengalenga uníssona, uma nova moda que novamente
alastra através de mil e um eventos destinados a homogeneizar o que se
considera correto dizer e não dizer. Só uma pequena parte das peças provoca
essa mudança, a maioria passa ao novo discurso por pura inércia quase nem
notando a alteração e passando a dizer o que todas as outras dizem como se
nunca tivesse dito outra coisa. Pouco lhe importa o que se diz desde que seja o
dito pelos outros. E eu caminho pelas sucessões destes discursos sempre
estúpidos, sempre absurdos, sempre com o único sentido de haver algum
referencial a que se possa corresponder a necessidade de uniformização, sabendo
que me caberia ser peça e encaixar igualmente, ignorar a desolação e sentir-me
satisfeita por ter os mesmos vícios que as outras, as mesmas depressões que as
outras, os mesmos consumos das outras, superada a falta de sentido na
conformidade coletiva simplesmente por ser coletiva e nunca por ter encontrado
qualquer elementar razão. A peça que nunca se conseguiu encaixar nem um detrito
é, é uma anomalia com que a amálgama acabará por lidar, esmagando a disfunção
de forma impessoal e inconsciente.
Caminho entre a desolação dos
escombros da batalha final contra a vida neste planeta. Peça desencaixada, nada
toco, nada me toca, nada me envolve. Nem encaixo na engrenagem, nem deixo de
lhe pertencer, estranho à vida que agoniza nas garras da agressão técnica do
mercado. Estou separado, amputado quer do monstro, quer da natureza, sou um
fragmento isolado que vagueia entre os escombros. Tudo o que me resta é isto,
um olhar. Ao olhar, vejo aquilo que às peças é vedado ver, como a sua natureza
está estropiada pela conformidade que lhes é exigida. Na verdade, elas não
encaixaram, elas tinham de encaixar, custasse o que custasse. Entre os
escombros do planeta, vou vendo esta peça retorcida, outra peça anquilosada,
aquela outra truncada, uma adiante deformada, outra totalmente desmembrada,
mais uma depois castrada, uma ao fundo rastejante... E eu sou uma amputação, um
olhar destacado de todo o corpo, de toda a mente, deixado simplesmente a olhar,
um olhar que caminha ou parece caminhar, incapaz de agir, de influir ou
conceber. Talvez seja toda a desolação a caminhar e eu parado, talvez o olhar
possa caminhar por todo o lado...
Caminho entre a desolação do caos
das peças forçadamente compactadas e, afinal, não só olho, também ouço. Mesmo à
beira do abismo, uma vigilância constante para que não se interfira na
progressão do monstro, uma preocupação extrema pela persistência do percurso,
uma diligência obsessiva pela unilateralidade exclusiva: “deixemo-nos de
filosofices”, “querem-nos agora a plantar carvalhos sem ganhar nada com isso”,
“o caudal do rio é o internacionalmente acordado”, “isto não é objeto de
discussão política porque não passa da solução técnica do problema”, “os nossos
técnicos estão a estudar a situação e encontrarão a solução adequada”, “temos
de ter cuidado para não provocar uma reação negativa dos mercados financeiros”,
“como poderíamos viver, trabalhar, estudar, andar sem telemóvel, sem consola,
sem creme hidratante?”, “como é possível que não leves os teus filhos à praia,
ao ginásio, às filas de trânsito para todo o lado?”, “quem pode viver hoje sem
esquentador, sem máquina de lavar, sem aspirador, sem automóvel, sem secador,
sem unhas de gel, sem creme protetor, sem máquinas de ginásio, sem isto, sem
aquilo, sem outra coisa qualquer?”, “nunca fomos tão felizes, os índices de
consumo o comprovam”. Na verdade, o meu ouvir é um olhar, nada nestes sons há
para escutar. A única verdadeira escuta é a da terra e eu já não consigo
qualquer escuta. Imagino com o olhar o seu martírio, a rápida agonia da sua voz,
o estreitar dos seus canais até impedir a seiva de fluir, a raiva a crescer nas
suas entranhas e a vingança a tomar forma na sua reação. Mas tudo isto são
projeções do meu olhar, estou amputado, incapaz de toque, de faro ou de escuta.
Desconheço a terra e não me encaixo neste monstro de destruição e guerra. Estou
fora, apenas olho.
Caminho pela desolação de um
planeta assolado pela provocação técnica. As grandes baleias suicidam-se nas
praias, chove plástico do céu, os últimos cadáveres de peixes boiam em rios de
espuma, oculta‑se com asfalto a impregnação tóxica do solo, chagas gigantescas
ofertam da crosta os últimos metais, ameaça-se o planeta com a manipulação do
poder dito atómico, fabrica-se a própria vida em laboratórios à medida das
necessidades da indústria e o próprio corpo humano é apenas mais um objeto de
transformação tecnológica. O homem elimina modernamente milhares de vias de
evolução de centenas de milhões de anos e procura substituí-las por
transgénicos. As poucas espécies que beneficiaram da nossa eleição alimentar
são reduzidas a um muito escasso número de estirpes e mesmo essas estão
ameaçadas de extinção quer pela falta de resistências à mínima doença, quer
pela concorrência das estirpes fabricadas. E tudo é feito não por um homem-Deus,
mas pela concorrência de ofertas para produzir e satisfazer uma miríade
descontrolada de apetites, um caos sem desígnio, poder decerto, mas poder que
buscando satisfação unilateral, cada qual para seu lado, não pode deixar de
ser, no conjunto, um formidável poder de destruição. Esgotou-se em décadas as
dádivas energéticas de éones de vida apenas para satisfazer cada capricho de
que cada qual se lembrava e julga-se que esta terrível capacidade de devastação
é a prova da humana superioridade, a demonstração da verdade da tecnociência, a
manifestação da mais pura racionalidade. Nesta loucura, a ganância revela
espírito de iniciativa, a intemperança e a desmesura, dinâmica empresarial, a
voracidade, otimização de materiais e recursos. Por trás das superfícies
plásticas, por trás das ligas carbónicas, por trás do brilho espelhado e
metálico, um frenesim descontrolado na luta por parcelas de domínio, ansiedade
insanável por sempre haver temor de não agarrar esta e aquela oportunidade,
profunda angústia por ninguém saber porque anda a fazer o que anda a fazer,
depressão, estupefacientes, soporíferos, esquecer, esquecer. E sobre tudo, como
um ecossistema, um ambiente, um mundo, o tradicional pecado, não oculto,
sub-reptício, interdito que se torna tentação, não sequer apenas permitido,
tolerado, mas pecado normativo, ostensivo, escancarado, proclamado aos sete
ventos nos escritórios, nas fábricas, nas escolas, nos centros comerciais,
jorrando pelas portas, irrompendo das janelas, inundando dos esgotos, numa
enxurrada de lúbrica depravação, num dilúvio de incontinente arrogância, num
cataclismo de ressentimento e inveja, preenchendo as praças de viscosa
deglutição lipofílica, intoxicando de indolência jovens corpos a roçarem-se
pelas paredes, torrentes de cobiça a movimentarem a dinâmica das artérias das
cidades até desaguarem fúria, ira, cólera no atoleiro do trânsito urbano,
suburbano, desumano, tudo como se fora uma virtude, tudo como se fora grande
libertação de comedimento ou repressão, tudo como se fora ápice, clímax,
paroxismo de humana realização.
Caminho entre a desolação do
planeta e a desolação da mente e não sei qual a pior. Só é possível a primeira
pelo extremo da segunda. Lenta mas firmemente, ensinou-se a mente a nada
compreender, a perder toda a deferência pela diferença e tudo reduzir a
esquemática abstração, a desconhecer a continuidade cambiante das coisas todas
e a fragmentar a realidade para mais completamente a apropriar, a alienar o
zeloso cuidar de si nos outros, transformando‑se a si e à relação com outros
numa caótica colisão competitiva de corpúsculos, cada qual partícula
aprisionada numa particularidade impessoal opaca a qualquer penetração. Sempre
existiu a estupidez da unilateralidade, mas nunca noutra era ela foi
propagandeada por filósofos e cientistas, nas academias e convénios, por
empresários e políticos, pela comunicação dita social e pelas redes de
influência e de intimidação, como manifestação da maior adequação e do maior
rigor, instrumento de investigação e objetividade, orientação exclusiva da
produtividade em busca de sempre maior crescimento para garantir sofreguidão de
mais produtos até exaustão dos mais recônditos redutos. A estupidez ganhou
foral de sabedoria e reclama para si toda a verdade. Não quer saber de
interpretar, contextualizar, considerar objeções morais ou existenciais,
ponderar o tempo. Tem-se direito a tudo agora, já, e pouco importa em que
ambiente crescerão filhos e netos apesar de continuarem procriantes, até mesmo
se tanta adulteração hormonal por toda a parte os tornou estéreis, pois se
querem entreter com filhos para os quais não dedicam um futuro, querem usufruir
de filhos como de qualquer outro produto, animal de estimação, boneca das
bolhinhas, este ou aquele outro peluche. A deformação mental produzida pelo
pensamento técnico tornou estas peças adequadas a servirem sem nada
compreenderem, mas incapazes de encontrar qualquer sentido para andarem por aí,
incapazes de conceber sequer o que seja um sentido, incapazes de se
questionarem, incapazes de porquê. Lábios pendentes cansados de fuçar, falos
esfolados e vaginas abrasivas de tanta fricção, flacidez inerte incapaz de se
mover, executivos inchados da sua importância e condição, trejeitos de desdém
pelo que mais se cobiçava possuir, o ódio a aumentar a tensão de músculos e
veias até explodir e tudo só para cada qual se distrair do hediondo vazio que
habita em si, sem possibilidade nem coragem de preenchimento ou redenção até
por todo o esforço se concentrar em nunca olhar para a sombra que em si cresce e
que motiva, para obter entretenimento, uma cada vez mais desvairada busca de
prazeres que até faça esquecer que pode haver algum remoto esquecimento. Encher
a vida de engenhocas que impeçam que haja sequer um segundo sem ter de si
desviado o olhar, garantir que nunca perde a condição de peça, que nunca será
algo mais que produtor e/ou cliente e que permanecerá até morte nunca
mencionada na mesma condição de alienado, de demente.
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