"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

Caminho

 Caminho por entre a desolação de um planeta devassado pelo nivelamento técnico. Tudo peças de uma engrenagem que funciona mal, mas funciona. Mais importante que funcionar bem é nivelar, encaixar todas as diferenças num puzzle único em que não existem distinções. Ninguém compreende, ninguém quer compreender, ninguém sequer concebe utilidade ou sentido em compreender o todo do puzzle, até porque este na verdade não existe. Cada qual vê tudo segundo a sua unilateralidade de peça e o sentido global do puzzle é todos reduzir a peças. O aglomerado caótico de um conjunto de peças não produz um todo, mesmo que a redução a ser peça faça buscar sempre a funcionalidade. A cada qual chega descobrir a sua função tal como uma peça do puzzle poderia, como uma ameba, ter uma consciência primitiva que por contacto com outro rebordo descobrisse o que condiz, onde se encaixar. O aglomerado de funcionalidades deste tipo funciona como poderia funcionar um monstro disforme composto de mil tendências e funcionalidades diferentes sem nexo. Acabar-se-ia por decidir um movimento monstruoso feito do maior número de esforços que se congregaram numa direção. Ao mover-se, o monstro consegue arrastar toda a miríade de ímpetos e até pode parecer ter um desígnio. Não passa, porém, de um aglomerado, de um amontoado sem orgânica, de uma colónia caótica de peças.

Caminho pela desolação de uma das chagas que uma concentração de movimentos abriu no planeta. Chamam-lhe cidade e as peças, de uma ou outra forma, orgulham-se de a ela pertencer. Regressando e vendo-a ao longe, as peças sentem a grandiosidade de uma tal obra e julgam-na uma manifestação maior do génio da espécie. Na verdade, não é obra nenhuma mas uma amálgama de apetites, cada qual desejando satisfazer-se o mais possível e apenas sendo limitado pelos outros, cada qual na sua direção até ser por outro bloqueado ou desviado e resultando de todas as direções contraditórias a confusão caótica da cidade. As peças congregam-se para satisfazer apetites, por vezes para fugir de medos, de forma cega, insana, pois na verdade nada é mais perigoso que a cidade. A cidade satisfaz, mas a cidade vicia, a cidade obceca, a cidade perverte, a cidade destrói até transformar cada possibilidade de pessoa numa peça, a peça que fuça em busca de onde se encaixar e ao encaixar contribui para o monstro da cidade que até acaba por parecer uma obra.

Caminho pela desolação de cenário pós-apocalíptico, segundo o que a dita cultura dita popular entende por apocalipse nas películas cinematográficas. Aí se projetam cenários para um mundo tribal de violência ou de meia dúzia de sobreviventes ou de zombies ou de pragas ou de mutantes ou de nichos isolados daquilo que tentam mostrar como estranhos restos de civilização. E eu olho esse cenário, um deles, qualquer um, todos mais ou menos idênticos na sua diferença, e fico estupefacto. É difícil compreender como ninguém vê já viver num desses cenários. A terra encontra-se esventrada, o solo cada vez mais estéril, a água exaurida ou conspurcada, uma praga devassa o planeta predando tudo o que entenda por recursos e fazendo deles e do resto lixo, as formas de vida são sistematicamente exterminadas, algumas poucas multiplicam-se mas para sofrer a condição de mantimentos, víveres, provisões, outras são enjauladas para deleite aparvalhado das peças da engrenagem, e todo o ambiente é alterado de forma caótica, irreversível e descontrolada. Muitos filmes retratam extraterrestres predatórios que pretendem usar todos os recursos do planeta para depois o abandonar – e ninguém repara que o homem só não é esses extraterrestres por não ter forma de abandonar o planeta. Se tivesse, seria ele esses extraterrestres e iria parasitando planeta após planeta, pelo caminho todos destruindo. Assim, é só uma praga estúpida que acabará, de uma ou de outra forma, por se autodestruir. O homem projeta-se a si próprio nesses monstros, até porque, com o poder superior neles fantasiado, pode ter a ilusão de se vir a furtar ao seu próprio destino nefasto.

Caminho pela desolação do consumo desvairado e sei que já houve tempos em que o homem não era uma praga. Esqueceu-se da pagã sagração da natureza, esqueceu-se dos conselhos de moderação e prudência dos antigos, esqueceu-se do medievo cuidar zeloso da terra, esqueceu-se de transcendência, esqueceu-se do esquecimento. Esqueceu-se ou já não entende. Na sua condição de praga, deixou de ser capaz de entender. Tal como acontece com gafanhotos ou ratos, uma espécie só se transforma em praga em circunstâncias muito especiais. Dadas essas circunstâncias, a espécie (ou parte dela numa certa localização) enlouquece, multiplica-se sem controlo e destrói agressivamente tudo o que consegue consumir, vai mudando de local de forma imparável até por fim esgotar recursos e se autodestruir. A diferença desta praga é que é planetária, provocação, agressão e perigo globais, consegue ameaçar a própria vida. Cada peça da praga só pensa no seu diminuto consumo e, como qualquer membro de manada, sente-se simultaneamente protegido por pertencer à praga e não responsável por não ser a praga. Essas peças foram tornadas meras goelas querendo sempre mais satisfação por se ter reduzido o cidadão a um sujeito de direitos, todos e quaisquer direitos, que acabam por ser, no fundamental, direitos de consumo. Uma loucura foi tomando o homem há alguns séculos, a loucura de que a realidade é o negócio e que tudo só existe para fornecer produtos para a satisfação de apetites. E, podendo os apetites ser estimulados e proliferar, a descoberta de uma qualquer utilidade de um novo produto desperta imediatamente nova cobiça, até por os clientes, viciados na hiperestimulação, se terem tornado ávidos de novidades. Um frenesim massivo possui os consumidores na busca pelo novo produto, pelo novo serviço, pelas novas engenhocas que, assim, se já não o eram, se tornam tóxicas e os toxicodependentes usam e abusam sem consciência ou responsabilidade porque, afinal, só estão, cada qual, a satisfazer os seus pequenos apetites. E assim, em poucas décadas, infestam solos, rios, ar, oceanos com os novos produtos até tudo se tornar diversos tipos de lixeira. Em massa consomem, em massa vão para certos locais, praias, discotecas, festivais, em massa despejam seus detritos, em massa destroem cada nicho da terra que pisam e nunca fizeram nada de especial porque afinal só fizeram o seu consumozito. Todo e qualquer produto é legítimo se identifica uma utilidade, por mais fútil que seja, e é imediatamente lançado no mercado. Se gera uma procura, o todo poderoso mercado consagra o produto com as bênçãos da multiplicação dos lucros. Quaisquer consequências, quaisquer contextos, quaisquer objeções morais serão consideradas mais tarde e até serão nova oportunidade para novo produto, novo consumo, novo negócio. Acredita-se piamente que tudo terá resolução técnica e tudo se resolverá sempre no mercado pois essa é a única realidade reconhecida. E ignora-se, com uma disciplina intelectual verdadeiramente admirável, típica afinal da simples má-fé, toda a destruição, toda a devastação, toda a aniquilação que esse consumo provoca. 

Caminho pela desolação de uma terra assolada pelo mundo da usura, do mercado, do negócio. Por vezes, numa peça, desponta vaga e primária uma reminiscência de se poder ser pessoa. Nada que a engrenagem caótica não resolva. Há sempre inúmeros demagogos dispostos a dizer o que as peças querem ouvir de forma a tranquilizar, ou melhor, a aniquilar uma embrionária consciência. Os políticos e os ditos educadores põem criancinhas a plantar árvores da floresta da indústria de celulose que há décadas varreu a diversidade da vida do seu território e dizem que estão a defender o ambiente. Depois, aderem às campanhas contra o óleo de palma pois esse negócio está a destruir florestas bem longe daqui. Anunciam medidas sobre medidas sobre medidas para, passados alguns anos, se perceber como tudo está pior, rios conspurcados, sem água e sem vida, lençóis envenenados ou salobros, as poucas florestas não industriais arrasadas para originar explorações agroquímicas intensivas, o campo silvícola a servir de pasto para as chamas de que ninguém é responsável, cidades a crescer sobre o solo fértil e cada vez maior necessidade de agressão química para compensar a erosão. Um ou outro negócio é prejudicado enquanto uma multidão de outros ainda mais perniciosos alastra, aproveitando a distração das peças, sempre disponíveis para com tudo se entreter. Se nem com os arautos da técnica, dispostos sempre a propagandear as mil maravilhas propiciadas pelo mundo da usura do planeta, houver uma tranquilização completa, podem-se consentir umas manifestações contra os malvados que estão a prejudicar o ambiente, desde que nunca se ponha em causa a absoluta necessidade de cada um dos manifestantes poder continuar intensivamente a consumir. Com facilidade, se fazem mais uns negócios com a moda ambiental e, quando a moda passar, passarão mais uns bons anos até que o todo‑poderoso mercado tenha de lidar com tal inconsequente suposto ataque aos seus interesses. E os servis media vão sempre cobrindo campanha após campanha seja ativista, seja comercial, seja partidária, seja empresarial, seja sindical, seja humanitária, seja musical, seja nacional, desde que consiga momentaneamente ter clientela, sem um micrograma de capacidade crítica. Afinal, também têm de zelar pelo negócio.

Caminho entre peças encaixadas, mesmo que de formas estranhas, insólitas, arbitrárias, visto que o que importa é encaixar e não como se encaixa. A partir do momento em que se encaixa, a peça é incapaz de dizer uma palavra que não seja retirada do discurso da engrenagem, reagindo hostilmente ou com indiferença a todo e qualquer enunciado incompatível com o atual discurso do aglomerado. De facto, cada peça impede, instintiva mas infalivelmente, a continuação de qualquer intervenção que destoe da toada a que se habituou. Recusa sequer ouvir uma diferente enunciação, é-lhe insuportável estar num ambiente onde seja possível dizer alguma coisa que não se harmonize com o que se deve dizer, como se deve dizer, a quem se deve dizer. Para harmonizar bem a toada, existem mil e um eventos, ações e oficinas de formação, colóquios e conferências, entrevistas e pseudodebates mediáticos, campanhas publicitárias, novas enciclopédias e dicionários, cursos universitários, proclamações políticas, aviões cruzam os céus a transportar a mensagem, atores declaram-na em todo o desfile de vaidade, camisolas trazem-na estampada no tecido, ecoa pelos estádios, pelas redes, pelo ar, até uma peça não conseguir algo diverso respirar. Como se trata de uma amálgama e não de uma orgânica, o discurso da engrenagem vai lentamente mudando de teor, mas não por qualquer razão ou como resposta a qualquer crítica legítima. A engrenagem, o aglomerado, a amálgama não é uma consciência que possa ser sensível a argumentos. Muda o teor como resultado dos ímpetos contraditórios das suas peças até criar uma nova lengalenga uníssona, uma nova moda que novamente alastra através de mil e um eventos destinados a homogeneizar o que se considera correto dizer e não dizer. Só uma pequena parte das peças provoca essa mudança, a maioria passa ao novo discurso por pura inércia quase nem notando a alteração e passando a dizer o que todas as outras dizem como se nunca tivesse dito outra coisa. Pouco lhe importa o que se diz desde que seja o dito pelos outros. E eu caminho pelas sucessões destes discursos sempre estúpidos, sempre absurdos, sempre com o único sentido de haver algum referencial a que se possa corresponder a necessidade de uniformização, sabendo que me caberia ser peça e encaixar igualmente, ignorar a desolação e sentir-me satisfeita por ter os mesmos vícios que as outras, as mesmas depressões que as outras, os mesmos consumos das outras, superada a falta de sentido na conformidade coletiva simplesmente por ser coletiva e nunca por ter encontrado qualquer elementar razão. A peça que nunca se conseguiu encaixar nem um detrito é, é uma anomalia com que a amálgama acabará por lidar, esmagando a disfunção de forma impessoal e inconsciente.

Caminho entre a desolação dos escombros da batalha final contra a vida neste planeta. Peça desencaixada, nada toco, nada me toca, nada me envolve. Nem encaixo na engrenagem, nem deixo de lhe pertencer, estranho à vida que agoniza nas garras da agressão técnica do mercado. Estou separado, amputado quer do monstro, quer da natureza, sou um fragmento isolado que vagueia entre os escombros. Tudo o que me resta é isto, um olhar. Ao olhar, vejo aquilo que às peças é vedado ver, como a sua natureza está estropiada pela conformidade que lhes é exigida. Na verdade, elas não encaixaram, elas tinham de encaixar, custasse o que custasse. Entre os escombros do planeta, vou vendo esta peça retorcida, outra peça anquilosada, aquela outra truncada, uma adiante deformada, outra totalmente desmembrada, mais uma depois castrada, uma ao fundo rastejante... E eu sou uma amputação, um olhar destacado de todo o corpo, de toda a mente, deixado simplesmente a olhar, um olhar que caminha ou parece caminhar, incapaz de agir, de influir ou conceber. Talvez seja toda a desolação a caminhar e eu parado, talvez o olhar possa caminhar por todo o lado...

Caminho entre a desolação do caos das peças forçadamente compactadas e, afinal, não só olho, também ouço. Mesmo à beira do abismo, uma vigilância constante para que não se interfira na progressão do monstro, uma preocupação extrema pela persistência do percurso, uma diligência obsessiva pela unilateralidade exclusiva: “deixemo-nos de filosofices”, “querem-nos agora a plantar carvalhos sem ganhar nada com isso”, “o caudal do rio é o internacionalmente acordado”, “isto não é objeto de discussão política porque não passa da solução técnica do problema”, “os nossos técnicos estão a estudar a situação e encontrarão a solução adequada”, “temos de ter cuidado para não provocar uma reação negativa dos mercados financeiros”, “como poderíamos viver, trabalhar, estudar, andar sem telemóvel, sem consola, sem creme hidratante?”, “como é possível que não leves os teus filhos à praia, ao ginásio, às filas de trânsito para todo o lado?”, “quem pode viver hoje sem esquentador, sem máquina de lavar, sem aspirador, sem automóvel, sem secador, sem unhas de gel, sem creme protetor, sem máquinas de ginásio, sem isto, sem aquilo, sem outra coisa qualquer?”, “nunca fomos tão felizes, os índices de consumo o comprovam”. Na verdade, o meu ouvir é um olhar, nada nestes sons há para escutar. A única verdadeira escuta é a da terra e eu já não consigo qualquer escuta. Imagino com o olhar o seu martírio, a rápida agonia da sua voz, o estreitar dos seus canais até impedir a seiva de fluir, a raiva a crescer nas suas entranhas e a vingança a tomar forma na sua reação. Mas tudo isto são projeções do meu olhar, estou amputado, incapaz de toque, de faro ou de escuta. Desconheço a terra e não me encaixo neste monstro de destruição e guerra. Estou fora, apenas olho.

Caminho pela desolação de um planeta assolado pela provocação técnica. As grandes baleias suicidam-se nas praias, chove plástico do céu, os últimos cadáveres de peixes boiam em rios de espuma, oculta‑se com asfalto a impregnação tóxica do solo, chagas gigantescas ofertam da crosta os últimos metais, ameaça-se o planeta com a manipulação do poder dito atómico, fabrica-se a própria vida em laboratórios à medida das necessidades da indústria e o próprio corpo humano é apenas mais um objeto de transformação tecnológica. O homem elimina modernamente milhares de vias de evolução de centenas de milhões de anos e procura substituí-las por transgénicos. As poucas espécies que beneficiaram da nossa eleição alimentar são reduzidas a um muito escasso número de estirpes e mesmo essas estão ameaçadas de extinção quer pela falta de resistências à mínima doença, quer pela concorrência das estirpes fabricadas. E tudo é feito não por um homem-Deus, mas pela concorrência de ofertas para produzir e satisfazer uma miríade descontrolada de apetites, um caos sem desígnio, poder decerto, mas poder que buscando satisfação unilateral, cada qual para seu lado, não pode deixar de ser, no conjunto, um formidável poder de destruição. Esgotou-se em décadas as dádivas energéticas de éones de vida apenas para satisfazer cada capricho de que cada qual se lembrava e julga-se que esta terrível capacidade de devastação é a prova da humana superioridade, a demonstração da verdade da tecnociência, a manifestação da mais pura racionalidade. Nesta loucura, a ganância revela espírito de iniciativa, a intemperança e a desmesura, dinâmica empresarial, a voracidade, otimização de materiais e recursos. Por trás das superfícies plásticas, por trás das ligas carbónicas, por trás do brilho espelhado e metálico, um frenesim descontrolado na luta por parcelas de domínio, ansiedade insanável por sempre haver temor de não agarrar esta e aquela oportunidade, profunda angústia por ninguém saber porque anda a fazer o que anda a fazer, depressão, estupefacientes, soporíferos, esquecer, esquecer. E sobre tudo, como um ecossistema, um ambiente, um mundo, o tradicional pecado, não oculto, sub-reptício, interdito que se torna tentação, não sequer apenas permitido, tolerado, mas pecado normativo, ostensivo, escancarado, proclamado aos sete ventos nos escritórios, nas fábricas, nas escolas, nos centros comerciais, jorrando pelas portas, irrompendo das janelas, inundando dos esgotos, numa enxurrada de lúbrica depravação, num dilúvio de incontinente arrogância, num cataclismo de ressentimento e inveja, preenchendo as praças de viscosa deglutição lipofílica, intoxicando de indolência jovens corpos a roçarem-se pelas paredes, torrentes de cobiça a movimentarem a dinâmica das artérias das cidades até desaguarem fúria, ira, cólera no atoleiro do trânsito urbano, suburbano, desumano, tudo como se fora uma virtude, tudo como se fora grande libertação de comedimento ou repressão, tudo como se fora ápice, clímax, paroxismo de humana realização.    

Caminho entre a desolação do planeta e a desolação da mente e não sei qual a pior. Só é possível a primeira pelo extremo da segunda. Lenta mas firmemente, ensinou-se a mente a nada compreender, a perder toda a deferência pela diferença e tudo reduzir a esquemática abstração, a desconhecer a continuidade cambiante das coisas todas e a fragmentar a realidade para mais completamente a apropriar, a alienar o zeloso cuidar de si nos outros, transformando‑se a si e à relação com outros numa caótica colisão competitiva de corpúsculos, cada qual partícula aprisionada numa particularidade impessoal opaca a qualquer penetração. Sempre existiu a estupidez da unilateralidade, mas nunca noutra era ela foi propagandeada por filósofos e cientistas, nas academias e convénios, por empresários e políticos, pela comunicação dita social e pelas redes de influência e de intimidação, como manifestação da maior adequação e do maior rigor, instrumento de investigação e objetividade, orientação exclusiva da produtividade em busca de sempre maior crescimento para garantir sofreguidão de mais produtos até exaustão dos mais recônditos redutos. A estupidez ganhou foral de sabedoria e reclama para si toda a verdade. Não quer saber de interpretar, contextualizar, considerar objeções morais ou existenciais, ponderar o tempo. Tem-se direito a tudo agora, já, e pouco importa em que ambiente crescerão filhos e netos apesar de continuarem procriantes, até mesmo se tanta adulteração hormonal por toda a parte os tornou estéreis, pois se querem entreter com filhos para os quais não dedicam um futuro, querem usufruir de filhos como de qualquer outro produto, animal de estimação, boneca das bolhinhas, este ou aquele outro peluche. A deformação mental produzida pelo pensamento técnico tornou estas peças adequadas a servirem sem nada compreenderem, mas incapazes de encontrar qualquer sentido para andarem por aí, incapazes de conceber sequer o que seja um sentido, incapazes de se questionarem, incapazes de porquê. Lábios pendentes cansados de fuçar, falos esfolados e vaginas abrasivas de tanta fricção, flacidez inerte incapaz de se mover, executivos inchados da sua importância e condição, trejeitos de desdém pelo que mais se cobiçava possuir, o ódio a aumentar a tensão de músculos e veias até explodir e tudo só para cada qual se distrair do hediondo vazio que habita em si, sem possibilidade nem coragem de preenchimento ou redenção até por todo o esforço se concentrar em nunca olhar para a sombra que em si cresce e que motiva, para obter entretenimento, uma cada vez mais desvairada busca de prazeres que até faça esquecer que pode haver algum remoto esquecimento. Encher a vida de engenhocas que impeçam que haja sequer um segundo sem ter de si desviado o olhar, garantir que nunca perde a condição de peça, que nunca será algo mais que produtor e/ou cliente e que permanecerá até morte nunca mencionada na mesma condição de alienado, de demente.

   Caminho pela desolação e custa já caminhar. O caminho está cheio de crateras, precipícios, cortantes arestas e inomináveis perigos. As peças farejam o inimigo, o olhar que olha para onde elas se recusam a olhar, que olha quando elas recusam sequer a possibilidade de olhar, que olha e vê, pressente, adivinha a profunda origem dessa necessidade de viver na e pela projeção, não da existência mas dos objetos de vício, de alheamento, de carência, um olhar que não se afasta por decoro ou por decência. Nada pior que o olhar, o olhar cru. Rosnam já as peças tornadas bestas, tornadas feras, cravam no solo insuspeitadas garras, predispõem-se para a impulsão, saliva já a escorrer nas presas. Não caminharei por muito mais. Tão-pouco estas peças subsistirão por muito mais. Autodestruir-se-ão ou serão substituídas por peças de engenharia. Pouco importa. Será um não‑mundo, uma dimensão inorgânica ou mecânica ou geneticamente fabricada de oblívio, já se estão a manipular todos os códigos, já se gizaram todas as justificações, a distopia técnica está há muito em marcha. Um plano de combinação geométrica das peças ou o solo estéril de um planeta já sem vida, talvez as duas coisas, talvez uma mistura. A vida ou se extinguirá, ou será transformada para ser outro tipo de entidade. Não valerá a pena caminhar, não se será mais lançado em mundo, a existência já morreu. O olhar persiste um pouco mais ainda nem sei bem para quê... Existe beleza no flagelo, a calamidade é sublime. Tudo quanto é grande, quanto é esmagador, quanto é desmedido inspira admiração e assombro... mesmo o crime...

Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. III, terra, pp. 151-159.

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