"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Um mar de águas paradas

 

Um mar de águas paradas[1]

sulcadas tão lentamente

sensações tão só esboçadas

e, logo, esvaídas p’ra sempre

Perto, os sons soam distantes

abafados sem ressonância

como perdidos errantes

o mundo todo à distância

Não se vislumbram as costas

embarcações, objetos

sinalizações dispostas

direções dadas projetos                                   

tão-só água e a claridade

indecisa do nevoeiro

falta a força da vontade

haverá um timoneiro?                                      

 

de fundo, o motor ronrona

na monotonia ambiente

nos limites do audível

espuma escuma paciente

em ondulação cadente

 

vontade de adormecer

enfim sossegadamente

as pálpebras já a pender

o corpo todo dormente

 

até que se avista ao longe

entre brumas vagamente

baço contorno fabril

decrepitude se esconde

numa chaminé viril

 

desde as eras mais longínquas

passava o rio para sul

toda a alma indesejada

pela urbe sofisticada

enviada p’ró esquecimento

exilada e desterrada

num piedoso banimento

da gente civilizada

 

a tristeza angustiante

de uma sirene distante

reiterando-se insistente

em consonância dolente

com toda a bruma envolvente

recorda todo o passado

como pela última vez

já tão distante tão vago

memórias de embriaguez

 

contorna os baixios o barco

sem quase notar-se a curva

não fora um pouco mais espuma

na água inda mais turva

 

embalado em ondulante

e monótona cadência

largo o lastro do passado

despeço-me da existência

irei ainda durar

para fazer descendência

tenho dívida a pagar

p’la minha sobrevivência

mas o poeta tresloucado

guardarei sempre em segredo

esquecido obliterado

na vida deste degredo

 

no resto da duração

aceito sereno o preço

liberto-me de paixão

fecho os olhos adormeço


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IV, petrificação, pp. 219-221


[1] Mar da Palha.

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