O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. Se fossem meus, provavelmente jamais veriam a luz pública. Ainda assim, a maioria esperou mais de 25 anos. De qualquer forma, não sendo meus, tenho tantos direitos sobre eles como qualquer outro. Calá-los, seria não cumprir as dignas obrigações que, desde sempre, se tiveram para com os menos ilustres dos finados, seria abandonar, canalhamente, dignos despojos fúnebres, seria, pior que uma profanação, a traição absoluta, o horror da indiferença para com restos mortais de pai, irmão ou, simplesmente, amigo. Assim sendo, o mínimo que poderia fazer era deixar publicamente as marcas do poeta, um jazigo na medida de sua vida e morte, mesmo que para jazer perdido num cemitério de papel ou nos novos crematórios digitais.
Deixados caoticamente dispersos como convém ao
que emana da inteireza imanente de um poeta, impossível seria imediatamente
ter, a partir deles, uma construção qualquer. Assim, fui eu quem ergueu o seu sepulcro
com a ajuda de algumas reminiscências do poeta. Alinhavei aqui, preenchi vazios
ali, reformei mesmo acolá. Exerci o meu direito e cumpri o meu dever de
herdeiro do poeta. Não subscreveria a maioria do que é afirmado nestes versos.
Por vezes, enojam‑me ou, pelo menos, são contrários a muito do que hoje penso.
Porém, tentei ser, se não fiel, ao menos leal – porque, afinal, do estilhaçar
da inteireza do poeta é que eu nasci.
Na verdade, já
lá estava enquanto o poeta agonizava, mas era difícil afirmar-me no meio do
turbilhão da sua vida. Talvez, por isso, o tenha assassinado. Dito assim,
parece mal. De facto, foi um ato de misericórdia, aquilo a que hoje se chama
“boa morte” com uma palavra grega, esquecendo que a morte é sempre boa para
quem ela é conveniente. Porém, como se verá neste jazigo, foi o próprio poeta
que decretou a sua morte. A sua incompetência suicida fê-lo ficar, no entanto,
moribundo e, por isso, a mim me coube concluir a sua própria decisão.
Após este
primeiro e último ato sagrado, pude tornar‑me um animal racional, ou seja, um
não poeta. A minha parte racional encontrou sua realização em jogos
argumentativos. A minha parte animal, em jogos eróticos. Tudo o resto tornou-se
relativamente indiferente, passei desatento pelas multidões de outras possibilidades,
de outras óticas, de outros mundos. Hoje, já um pouco cansado dos primeiros e
já fora do circuito dos segundos, ainda compreendo menos o poeta do que
acontecia após a sua morte e, assim, é natural que seja insatisfatório o
monumento fúnebre que tentei erguer, mas sê‑lo-ia sempre mesmo que fosse
construído inteiramente pelo poeta. Nem o poeta viveu para a sua sepultura,
mesmo que haja vivido para a sua morte, nem eu vivo para honrar sua memória que
antes me incomoda e, por isso, quero definitiva mas respeitosamente abandonar.
Dir-se-á que o
poeta ainda vive em mim. Dir-se-á erradamente. O poeta não pode ser um enxerto,
um cancro ou um órgão, de uma qualquer coisa que lhe é estranha. E tudo lhe é
estranho que não seja ele próprio. Se o mundo não lhe é estranho, é porque é
ele próprio. Se os outros não são estranhos, é porque são ele próprio. Se nada
lhe é estranho, é porque ele é tudo. Tudo ou nada, essa é a lógica do poeta.
Quem faz versos como um hobby entre
deveres familiares e empenhos laborais, ou para preencher qualquer necessidade
particular afetiva ou intelectual, ou para mostrar que é poeta, arrumando
palavras conforme a eufonia, assim tornando-se (por vezes, sem de outro modo o
poder) socialmente considerado, afirmando-se diferente e especial, e, como tal,
saciando a sua vaidade ou contribuindo para sucessos eróticos, ou tão-só para
qualquer coisa só por ser para qualquer coisa, não só não é poeta, como ofende,
ao tentar apropriar o título, a nobreza e integridade do poeta, o poeta que é poeta
por pior que escreva, mais desajeitado seja e menos sucesso erótico alcance.
Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem
doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem
delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os
outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim. Quem faz
versos como poderia fazer bordados, jogar na bolsa ou multiplicar-se em
arranjos de toilette, não só não é
algo menor na poesia, mas antes a sua profanadora antítese.
Hoje que me entrego ao ofício doloroso de recordar, ao ritual solene de abandonar a morte à sua sorte, ser por fim esquecida, qualquer coisa como um espetro do poeta ressurge e paira nas palavras. A saudade emerge o remorso de ser, por minha vida, traição ao que o poeta foi. Houve tempos em que tal saudade me impotenciava de ser seja o que for. Agora, por lastimável que seja o que sou, posso, finalmente, libertado, sê‑lo plenamente. Arrumo-te num ficheiro como sob sete palmos de terra. Exorcizo este espetro derradeiro. Não mais a tua loucura expandindo-se em horizontes será comparada à minha resignação, à minha funcionalidade, ao meu cansaço disfarçado de racionalidade. Não mais a tua lenta agonia perseguirá cada meu gesto, cada meu folgo, cada palavra. Não mais os teus versos escondidos serão uma acusação nos meus atos. Não mais assombrarás a minha vida, cerceando-me as escolhas por não poder te deixar para trás. Não mais regressarás, mesmo espetral, à luz. Não mais, sequer, te relerei. Não mais serás lembrado. Requiescat in pace.
Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. I, ausência, pp. 5-7.
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