"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

Eu teria sido outro, é certo


Eu teria sido outro, é certo,

se me tivesse entregado aos convites que fizeram:

há quem me ache bonito, tenho um sorriso aberto,

nem o estrabismo me impediria de receber aquilo que não deram...

Teria sido outro e não teria em mim esta amargura,

seria menos preocupado, saberia menos porventura,

talvez invejasse um outro como eu,

talvez quisesse conquistar o que agora tenho como meu,

e tudo isto é triste, muito triste,

tudo o que sou, tudo o que seria e não existe...

 

O meu rosto de menino ou de menina

emoldurado por uma lágrima a nublar uma retina

(tudo o que me quiseram dar e eu não quis,

esta culpa confrangedora de petiz

numa tristeza que afaga toda a vida

e busca uma razão onde ela não pode ser nem tão‑pouco pressentida

– multidões de caminhos abertos

entre o que eu sou e aquilo que seria

se tivesse feito aquilo que não fiz

e em todos choros cobertos

pela ânsia de um outro ou alegria

no caminho mesmo que se quis

– tudo começa e acaba em escuridão!

aquele além pensa-me com razão

e eu aqui a buscá-la no que ele faz

para perdoar-me daquilo que eu nunca fui capaz

e é tudo assim, naquele além, em mim,

só o choro ainda pode dar sentido a um possível fim)

foi por certo amado, sofrido, desejado,

e é triste o que deixei posto de lado.

 

Sim, por certo seria outro, talvez feliz,

se tivesse feito aquilo que não fiz,

com inconsequência suficiente para amar,

acreditando naquilo que nunca ninguém pôde dar...

ah! amar, amar, amar, amar,

todos esses olhos que me olharam,

todas essas bocas talvez que me mentiram e me desejaram

(tudo isto é espantoso,

tudo isto é falho de sentido:

percebo o que em mim foi querido,

busco-o, não o encontro ou encontro-o noutro lado

– é sempre por outra coisa que se é amado.

Há pessoas que se amam uma vida inteira!

Sim, é verdade e é difícil crer

que possa haver uma mentira assim tão verdadeira,

mas, de alguma maneira, de alguma maneira urge viver

– no fundo, a única verdade é a de ter de morrer

e essa é um fantasma por toda a vida

e não é nada quando realiza a expetativa),

oh sim, por certo há aí sentido,

pelo menos o da minha frustração,

e é preciso, é preciso amar

conquanto isso possa ser só ilusão,

mas aquele que ali vai e se consome,

vai triste por nos seus braços ter alguém que o tome.

 

oh tristeza, quanta a nossa fome

e quanta razão para a sentir e ter –

tudo tão triste por não ter sentido,

tudo traições a mil promessas de viver,

tudo chorar um poder ter sido,

tudo esgotado, tudo perdido.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. I, ausência, pp. 63-65

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