"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

Dia-a-dia, sobrevivo na ausência


Dia-a-dia, sobrevivo na ausência,

única entidade que presencio.

Noite-a-noite, afundo-me na inexistência,

sono sem sonhos – silenciosamente me esvazio.

 

E olho a cidade e está vazia,

e ouço o ruído e impõe-se-me o silêncio,

fragmentado, dissociação ou esquizofrenia,

unificado apenas fora do que se me presencia.

 

A tua ausência é mais presente que a mais pesada solidez.

O teu silêncio é mais audível que o mais ensurdecedor ruído.

O teu desprezo é mais tóxico que a mais humilhante embriaguez.

 

Pudera acaso tudo isto ter sentido,

pudera enfim virar a esquina e ser comigo,

mas o destino impõe-se:

                                                    és tu que eu amo, és tu que vivo.


*

 

Gota a gota, lentamente, sem cessar,

esvai-se o sangue, esvai-se a força, esvai-se a vida,

sem surpresas, sobressaltos, sem mudar,

em rotina de anestésica despedida.

 

Bloqueado numa espera já sem esperança,

semente no fim de um inverno seco e frio,

desejando já só qualquer, qualquer mudança,

nem que seja a de um só derradeiro arrepio,

 

reconstruo, às avessas, minha vida,

decrescendo, dia a dia, mais um pouco,

exaurindo, gota a gota, linfa e sangue.

 

Assisto impávido à letárgica partida,

nem já lembrando o poeta, o amante ou o louco.

Na tua ausência resto até que caia exangue.


 *


Invejo Eco cuidando terna de Narciso,

repetindo as palavras que ele lhe não diz,

reduzida a ser sombra da sombra da imagem

que, no lago, turva já, porque amada, infeliz.

 

Ao menos, a Eco resta a guarda da mensagem

que exangue, no suspiro último enamorado,

dirigiu, solitário, à sua própria imagem,

o inacessível, porque em si perdido, amado.

 

Pudera corresponder amor a um teu “amo-te”

à tua imagem, nos meus olhos refletida,

dirigido – ser eu o lago de Narciso,

 

ser-me eco e dor, por ti ignorado e ferido.

Mas sou sombra só de um desprezo, de uma ausência,

mas sou tão-só reflexo de uma inexistência.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IV, petrificação, pp. 11-13.

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