"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Quem assoma

  

Quem assoma no recorte noturno do monte

tapando tantas estrelas com seu vulto?

Quem produz assim um calafrio tão-só com a sua sombra?

Quem faz adivinhar um olhar que nos penetra

até o mais negro dos abismos?

Quem transporta a morte nos seus lábios e a vida nos seus passos?

Quem traz o agouro de uma verdade indesejada

pronta a ser dita custe o que custar

como se fora questão de uma alvorada?

 

Um ladrão e um escravo, um plebeu e um cego

Roubei a flor e a humidade da jovem inocência

e paguei com longos anos de labores forçados

Quis erigir-me às alturas dos maiores

e descobri a minha natureza irremediavelmente medíocre

A cegueira invadiu-me o olhar e tornou-me incapaz de ver o habitual

para sempre condenado a ver a natureza nua e a carne crua

para sempre incapacitado de desviar o olhar

ou fingir não ver o disposto mesmo em frente

para sempre impossibilitado de jogar os cenários

que se põem e dispõem para gregariamente não ver

aquilo mesmo que está sempre a acontecer

 

És um poeta, um profeta ou um louco

ou ao contrário um assassino prestes a atuar?

Deveremos te ouvir mesmo sem te perceber

ou é altura de fugir com medo do que tu possas fazer?

Ouvir-se-á na tua voz uma dimensão sagrada

ou o eco dos danados lançados para sempre para o nada?

É sinistro o tom que te embala

ou anuncia por fim a manhã tão desejada?

 

Não é diverso o poeta do profeta nas origens do dizer

poética é a religião pristina que encanta o símbolo com o verbo

e sem loucura não se transgride a ordem habitual

para que a palavra o gesto o artefacto abram o sagrado

e façam o divino irromper no ambiente humano

erguendo a catedral de todo o sentido e todo o significado

E é assassino quem empunha o punhal para o sacrifício

ou seu delírio demoníaco rompe o véu profano

trazendo até nós a força das potências abissais?

E há verdadeiramente outro sagrado que não

o proveniente daquilo que vos parece nada?

A minha fala ressoa a madrugada pronta para a luz

mas é feita de espesso breu hálito infeto pútrido pus

A escuridão habita o meu olhar desenraizado

mas tento escutar a luz na respiração da terra

sem porém o conseguir sempre mais desesperado

pela urgência vibrante na voz de cada desterrado

 

Buscas então um caminho para o homem?

Ou visas a sua redentora destruição final?

Tuas pegadas no solo parece que se somem

e a tua fala incompreensível não diz o habitual

A tua mensagem parece não ser para nós

e ninguém consegue escutar a tua voz

Melhor seria se invertesses passos

aqui nunca construireis os menores laços

O homem quer apenas espelhos dos seus vícios

não quem lhe mostre chagas precipícios

quer de si próprio de seus medos se entreter

não quem o obrigue a escutar olhar e ver

quer sobretudo saciar a ansiedade com prazer

decorrer sem percurso a vida como eterno

e sem consciência do tempo enfim morrer

E hoje se queres a sua escuta sê ligeiro

nada que exceda o instante passageiro

receberá a mais ínfima das aprovações

dá-lhe ecos reflexos estímulos ilusões

não temas manipular a sua crença

é o que deseja em paixão febre doença

arrastado por fluxo ou maré à costa ou foz

como uma concha vazia como uma casca de noz

 

O pior que ao homem pode acontecer

é ser-lhe dado exatamente o desejado

Mas a minha fala não se dirige ao decorrer

da gente fragmentada a fuçar por todo o lado

A manada nada pode escutar por natureza

seu tropel impede qualquer silêncio

e a pastar e mugir se reduz a subtileza

de tudo quanto é mudo por essência

A minha fala é uma evocação do outro

da pessoa oculta na máscara de ser gente

e o que digo procura o diálogo o confronto

com mundo só pressentido em ser diferente

Em cada pessoa em cada obra em cada ente

há uma oportunidade de abertura

a uma dimensão que apenas se pressente

na superfície de aparências a rutura

Com um outro ficaria eternamente a conversar

à beira do precipício para onde se precipita o homem

a praga que infesta a terra o céu o espaço o mar

devorando todos os seres que neles morem

Mas é preciso despertá-lo do seu sono

tirá-lo da carcaça obscena que consome e oferta

fazê-lo despertar o som o olhar a escuta

encaminhá-lo para por seus passos sair por fim da gruta

Tal caminho é o único que importa

e para franquear finalmente a ombreira

é precisa a chave para abrir a porta

e trazer o rosto marcado e oculto à soleira

 

Apenas isso? Encontrar um outro? Falar com ele?

Não percebo então o pavor que me tomava

não percebo a escuridão e a madrugada

não percebo o presságio de revelação

não percebo o odor místico de religião

Parecias vir anunciar uma mensagem

para a qual só para ouvir e entender

seria precisa a máxima coragem

e aguentar o que se iria padecer

Mas afinal buscas uma banalidade

segues o desejo habitual

certamente uma necessidade

mas nem sequer um ideal

 

Quanta luz e sombra ocultam as palavras

quanta reserva se mantém recolhida no patente

quanto se ignora no familiar e óbvio

quão idêntico parece o de raiz diferente

Julgas que os casais que só ouvem o outro

como ameaça de pesadelo a que há que fazer frente

e desenvolvem um monólogo com o par

fazem algo mais que solilóquio de demente?

Julgas que o político o professor o ator

se dirige ao outro se coloca em seu lugar

quando apenas busca reação de espetador

o apoio para o que está para ali a perorar?

Julgas que o industrial ou o publicitário

veem nos outros entes outros mundos

ou apenas buscam manipular consumos

de insaciáveis goelas abismos sem fundo?

Será a paixão autista secretora de endorfinas

que permite aceder a quem nem sequer vê

ou será a religião do ressentimento e frustração

que lança o fiel para não se sabe o quê?

Serão os próximos os pais os irmãos os filhos

que permitirão vencer o radical egoísmo

muitas vezes vistos apenas como atilhos

outras como extensão de vaidade e narcisismo?

Será pela obra de arte que se descobre o outro

quando cada qual dela diferentemente se apropria

enriquecendo certamente o próprio mundo

mas incapaz de atingir a autêntica autoria?

De certeza que atingir a alteridade

não passa da mais vulgar banalidade?

Nada há mais difícil que a abertura ao outro

nada também há que seja mais perigoso

nada ameaça mais conforto e segurança

nada há mais dilacerante e mais delicioso

O rompimento da bolha subjetiva

a que cada qual chama o mundo

é um verdadeiro rasgão no universo

abrindo o idêntico ao de raiz diverso

O que a gente chama guerra revoluções

não passa de seus sonhos e pesadelos

seus delírios alucinações obsessões

projeções da massa que no eu têm modelo

desejos e medos invejas e rancores

e sobretudo persistente frustração

visando no caos de que são os projetores

a impossível saciedade por destruição

O verdadeiro outro surge ao próprio

com a estrutura do religioso símbolo

uma abertura no mundo que o enriquece

com o pressentimento de uma outra dimensão

E essa abertura não cessa na relação

trazendo mais sentido mais respiração

como diálogo como luta como violência

agressão da pacata tranquila imanência

Pensas na enjoativa categoria da fofura

coraçõezinhos a embalar terna doçura

ou o abraço másculo de camarada

mostrando amizade longamente partilhada?

Pensa antes na adaga nas costas espetada

na traição diligentemente preparada

na guerra sem tréguas de pontos de vista

que busca sobre outro subjugação vitória

Pensa na dissimulada malícia calculista

na corrupção de que é tecida a história

as intenções ocultas de um abraço de inimigo

beijo arrebatado a esposa alheia num postigo

O outro não é um eco alívio consolação

o outro não é terapia de dor doença

o outro é a ameaça de uma dimensão hostil

capaz de destruir até minha presença

O outro abre-se em cada fechado mundo

mas sob a forma de chaga crua e viva

para ser lenta dolorosamente fruída

para ser delícia efémera sofrida

Do outro quero sofrer para sempre

pois só nele mistério se vislumbra

que faz existir eu e mundo e ente

eternamente oculto na penumbra

 

É esse o outro que procuras?

És afinal de facto louco

buscas morte ou desventura

todo o inferno sendo pouco

para descrever uma tal tortura

onde em asfixia golpe ou soco

buscas na agressão a abertura

E com ele ficarias a conversar?

Não seria antes a discutir e a berrar?

Como é possível dialogar com o oposto

ou até só com o de raiz diferente

se em comum não se encontra um gosto

numa dissensão sempre latente?

 

Dialogar não é um solilóquio

que se pronuncia frente ao espelho

Nunca haverá real colóquio

se se for incapaz de ouvir o alheio

Que interesse numa existência

que fosse só a reiteração do mesmo?

Para quê sequer linguagem

se não existir para outrem a coragem?

A palavra existe para falar

e não se fala para só a si mesmo se escutar

ou para deixar falar um discurso universal

indiferente ao orador individual

Há língua para falar com o outro

mesmo que tenha sido roubada pela gente

para ir repetindo o que ouve em todo o lado

tentando obliterar todo o diferente

até assegurar que cada entidade singular

é sempre a mesma em qualquer lugar

garantindo a consistência global

das peças que formam o todo social

 

E na cidade buscas desvelar o outro

na cidade buscas a luta e o encontro

na cidade buscas com a espada abrir

um rasgão onde possas um outro descobrir?

Julgas poder incomodar a massa

como se foras um filósofo de antanho

feito moscardo com o aguilhão

a acordar o bronco e o tacanho?

Mesmo a ele lembrarás o seu destino

embora pacatamente com os amigos     

iludindo-se confortavelmente

acerca da morte que tinha pela frente

Mas tu serás trucidado pela turba

nem a julgamento terás direito

desprezado e ridicularizado

no final só pegarão nos teus bocados

para os deitar para qualquer lado

Não encontrarás qualquer outro

nem sequer um qualquer consorte

nos teus passos o destino já está pronto

e será apenas o olvido e morte

 

De algo se pode estar certo e seguro

só ao vivo é possível morrer

e se ao defunto foi dado um futuro

que seja ao menos o de algo dizer

O filósofo cria vir a renascer

mas ainda não tinha renascido

a não ser no que insistia em crer

julgando já antes ter morrido

Mas se o falecido regressa

exatamente como falecido

o que lhe aconteça não interessa

para trás ficou todo o vivido

Sem desejo medo ou ansiedade

desço de novo ao inferno da cidade

sabendo bem o que me espera

sempre inverno e nunca primavera

Por aqui já encontrei o outro

que disseste nunca poder encontrar

talvez após a queda na urbe volte

para podermos em paz e guerra falar

 

© Joaquim Lúcio, Janeiro 2021

De entre os escombros de tantos passados, tantas ilusões


De entre os escombros de tantos passados, tantas ilusões,

de entre o deserto dos esqueletos distópicos urbanos,

de entre o ressentimento de tanta promessa malograda,

de entre tanta imposição de absurdos insustentáveis,

de entre o silêncio opaco do ruído, do estrépito operatório,

de entre a fragmentação desenraizada das goelas ávidas,

de entre as vielas insanamente percorridas recorridas,

de entre as amplas artérias maquinalmente devoradas,

de entre as voragens porta a porta comercialmente anichadas,

de entre o entre dos tecidos apodrecidos pelas pestes do desalento,

de entre o dentro da corrupção da essência humana em praga,

de entre diante o espetáculo do extermínio e do saque,

do frenesim da proliferação de artifícios para saciar o insaciável,

a proliferação infinda de apetites até penúria inevitável e final,

de entre o ambiente hostil a uma existência projetada,

ambiente sem mundo, sem tempo, sem verdade,

que besta ou profeta ou pacificador ou revolucionário,

que destinação, poeta, génio, santo ou herói

despojado da herança gasta e incapacitada

se erguerá com um brilho novo no olhar

para declinar sua força entre a vozearia da manada

até um novo dizer pelos seus recantos se insinuar

e a inquietude no gado despertar sensibilidade

capaz de gerar pessoas, sentido e verdade?

 

Nas brumas da manhã cinzenta, espessa e fria,

entre o ressoar de passos e tagarelice popular,

um bramir mais fundo se anuncia,

pronto para converter, convocar e transmutar

sem que se saiba que configurações desenhará

na tela ávida pela história que se escreverá.

 

A sombra que assoma na alvura espessa

um novo martelo no futuro percutirá

e não o fará para um além que o porvir adensa

mas no presente que só poderá ser cá.

 

Quem sabe as gravações que restarão na pedra?

Quem sabe os escombros que deixará atrás?

Quem sabe os portentos que lhe serão devidos?

Quem sabe a ternura dos crimes que cometerá?

 

Por agora tão-só pressentimento, talvez miragem.

Por agora uma impressão subliminar na perceção.

Por agora pode ser menosprezado com coragem.

Por agora pode ser sonho, pesadelo, alucinação.

 

Por agora é só a hora de o renascido anunciar,

entre os destroços do passado, do presente, do porvir,

o advento do que ainda está por ver, por se manifestar

perdido entre a confusão indiscernível do fluxo do devir.

 

Para quê a ressurreição do dizer, do proferir,

porque não deixar afundar desolação no silêncio eterno,

o das máquinas a rugir sem alguém que as possa ouvir,

sem nada germinar num estéril e perene inverno?

 

Nenhuma razão, nenhum sentido, nenhum destino,

o dizer encontra expressão em qualquer silêncio,

qualquer silêncio convoca a palavra oculta e a escuta,

até da informidade se precisar a forma contundente

de alguém, enfim, decisivamente preparado para a luta.

 

© Joaquim Lúcio, 12/1/21

Se o teu cheiro fosse habitação

Se o teu cheiro fosse habitação lá dormiria eternamente sem desejo de sair até para a comida e morreria assim dormente sem me aperce...