"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Ecos de ausência

 

Meus poemas estão incertos,

não conseguem ter um fim

– são espelhos dos meus desertos,

de tudo o que falta em mim –

frases sós, sem sequência,

ou deltificação sem curso ou rio:

espelho-me em impotência,

egocentrizo-me vazio –

não digo quando me quero dizer,

fico em nada por em meio ao infinito,

quando digo há multidões para escolher

e fico sempre menos e sempre me limito –

que diferença pode haver

entre esta imagem e a outra?

que sentido existe em escrever

a falta de sentido que me encontra?

– Ridicularizar-me existência

de indecidibilidade total –

não me decido vivência,

não ponho ponto final –

em ausência total de uma razão

para me obrigar sobrevivência,

tão-só fujo-me à consumação,

                                               covarde, absurdo

– ridiculamente,

imponho-me encolhido à existência... 

– invento razões para tudo

– para escrever este poema –   

e sei sempre, no entanto,

que nada em nada vale realmente a pena –

lá fora só há vício sobre vício

– nada do que eu quis, nada do que eu quero –

dentro em mim tão-só um precipício...

– nada dou, nada dei e contudo... contudo – espero

– em completa egocentrização

(nauseado de mim próprio),

exijo dos outros a minha concretização

com infinita, infinita compaixão

de me existir repelência

– masturbo-me de dor e solidão,

jogo na equipa da excrescência.

Ódio,

só o que eu sinto,

ódio profundo –

ódio a todos os que me esqueceram

de haver alegrias no mundo

em tudo o que me tiraram,

me roubaram, me burlaram,

ciúme de cada prazer, cada riso,

para os quais não sou nem nunca fui preciso;

ódio a cada momento de imposição

mascarada eternamente

pelas razões imperantes da segurança e proteção,

irritação surda crescendo demente

a limites de fúria sem passado e sem presente;

ódio a todos, desejos de assassinar

                        – estrebucho-me em direção a lado algum

                        e fico-me sem forças sequer para lançar

                        uma imprecação maldita a cada um

– subjacente, fica só, enfim,

uma raiva temente de afirmação,

ódio também, ódio de mim,

ódio da minha degradação 

...

Rios de água pelas ruas...

este frio impertinente...

espaços entre os sons e as paredes...

e um mundo que rola indiferente

                        – A dramaturgia presente

(absurda, inconsistente)

                        encontra-se sempre em estreia

                        por falta de público, de cadeiras,

                        de balcão, de plateia –

                        e de um sentido melhor,

                        de uma razão, um pensamento, uma ideia

Razões e razões e razões

tenho eu por certo muitas

– ajudam-me indecisões,

impelem-me a ausenciar-me direções

                        Ah! – Desfazer-me disto tudo!

                        Ser imanência, presença,

                        decidir por atos e caminhos

                        – extirpar-me de me ser doença!

                        (A chuva cai fortemente

                        decidida a molhar tudo –

                        eu estou quase a ser diferente

                        mas fico-me...

                  eh! sim...

                        contudo...)

Contudo há sempre razão para hesitar,

para ficar seguro deste lado da barreira,

temente e sensato, um modo de estacar,

um modo de não, de apenas, uma maneira...

Contudo há verdade em tudo

e forma de esconder o lado errado,

há aquilo que ocultamos e, sobretudo,

oportunidade sempre de olhar p’ró lado.

Contudo... eh, sim... contudo – escrevo,                       

escrevo a consciência de estar paralisado,

escrevo e do que escrevo ficam, tão-só, 

círculos de incoerência,

incomunicabilidades,

subterrâneos, concavidades,

ecos de ausência

– só ecos ficarão

de cada transtornada vivência,

de cada frémito de indecisão

que me percorre vivo

em tensa irritação,

de cada momento sofrido

até aos limites da voz,

gritando até ao esquecimento

daquilo que fomos, não só eu, mas todos nós –

Sim, eu sei que amanhã, porventura,

nada do que digo terá sentido,

que cada delírio ou simples amargura,

cada momento específico retratado e sofrido,

ecoarão perdidos no vazio

d’um mundo que descobriu outras razões,

não moverão tão-pouco um arrepio

nas consciências lúcidas de outras direções

– muito mais aquilo que ora escrevo,

ausência total de uma razão p’ra viver,

a manutenção cadavérica de existir

até aos limites extremos de não ser...

Para quê então continuar a escrever,

insistir em coisas que não consigo dizer

ou, se consigo,

não lhes consigo sentido?

Tudo parece perdido

                                 mas

            eu aqui

à procura da palavra que concretize                             

o sentimento limite que é necessário expressar,

o polícia usual, o ladrão e o deslize,

a rapariga que espera príncipe que a venha amar,

o anarquista frustrado em ato alucinado, 

a mãe obcecante d’uma proteção genital-uterina alienante,

o político ao poder, o ébrio errante,

a vovó ao seu netinho, o mártir santo,

o empresário ávido de tanto sobre tanto,

proxenetas, secretárias, escriturários,

pedintes, vadios, junkies e bancários,

dialética de conter e explodir

desvairando variante no infinito humano de existir,

o excremento – o importante,

liceal compreensão linearizante,

o filósofo encriptante clausurando-se a ser além da vida,

o revolucionário endinheirado escrupulizando-se na terra prometida,

a dona-de-casa infinitesimal ao dia-a-dia,

o burguês descrente de possibilidade ou alegria,

o operário glorificador do trabalho que o anula,

essa gente imensa que pela terra imensa pulula,

todos sofredores e assassinos,

todos ausentes de direção, falhos em todos os caminhos,

todos reduzidos à ajuda de ninguém,

todos procuramos um sentido

                        – iludimo-nos ou não,

                        fantasiamos ou não –

mas todos procuramos um sentido,

possuir algo definido –

e falhamos – na ânsia e na própria possessão –

eternamente autodestruídos

até infinitos de traição

                        – Nesta devassa de sentido,

   desesperadamente, eu busco-o último na ausência:

                        escrevo-o para me manter vivo,

                        em instinto de cruel sobrevivência

– Mas nem a ausência consigo,

nem a ausência eu agarro,

nada nela defino,

nada dela me fica, 

tudo se mostra em processo incontrolável,

foge-me última esperança de permanência,

nada me resta de tudo inagarrável

– isto que fica, estas palavras

– nomes de inexistência,

sons e ruídos de nada –

não me dão nada nem dizem nada,

ecos, quanto muito, cortes de referência,

ecos, ecos de ausência.

Escrevo-os sem qualquer fim ou razão,

desapaixonadamente...

quem quiser um caminho, uma direção,

terá de procurar algo diferente –

eu estou aquém de tudo –

apenas me não iludo...

 

a chuva continua a cair;

vultos passam aqui e ali;

ninguém interpelo a seguir

por ali ou por ali ou por aqui –

um trovão ribomba lá no alto;

cada um sabe de si.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. I, ausência, pp. 194-199. 

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