"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Da dor, o meu poema quer olhar

 

Da dor, o meu poema quer olhar

para horizontes satisfeitos de alegria

e na visão do repleto anunciar

o fim da noite atroz já alvorada ao novo dia,

mas a falta é que convida à conquista

e a conquista é que ao lutador apraz:

quer-se além a alegria que se avista

mas, ser da dor e aqui na dor, à alegria só dor traz

– assim quer, separado, o ansiante,

ansiando de chegar mas evitando,

e até o avistado envida à dor em ser distante

– assim fundado, vai, de impossível, à dor fundando

– se possível e concretizado, letal seria

– mas não: em si farsando, é realizado pela dor

pois o seu rosto, só ao longe é de alegria –

aqui é nada, pretexto à luta, símbolo de morte,

eufemismo do ansiado,

                        pretendido, desejado por temido

                                                                  ser para a agonia

                                                                       – do apartado,

o gozo:

 a solidão quer-se apartada

lutando até consecução contra o apartamento,

tudo na forma de obstacularidade hiatizada      

incitando a superar-se por conquista/incorporação do próprio rompimento

– dissimular prazer na esperança dolorosa de prazer amanhã 

                                                              de prazer um dia

– mas o prazer é luta, não cristalização – é forma de sofrimento

ou então outra que não esta de aviso e de vislumbre

embora seja separação origem possibilitante de alegria

– da dor, se transcendente, toda a alegria é prestidigitação,

além, só a dor da dor em meu poema se anuncia.

 

Nervos puxados à distensão maior,

retorno eterno à possibilidade de doer,

enclausuramento em busca ao infinito do mais de íntimo

por absurdo de à alteridade me mover.

 

Da dor, o meu poema se absorve

e eu me obceco na absorção

– vivo em excesso de tensão e a tensão me move,

rumo claro e evidente para a consumação

– da dor me dirijo à exclusão

de ser para além da dor e ter sentido

e, lúcido, mais me dou à direção já dada:

ser para a morte dirigido

por excesso vital intimamente extrovertido.

 

Só resto de sentido em dar-me à dor que me formou

– relâmpagos de fuga e reencontro,

tentar olhar p’ró lado e me esquecer

mas ser apenas o que no futuro já passou,

o será que apenas foi sem nunca ser –

Afirmo, pois, por fatal, aquilo que ‘inda e já sou

e, decidido e passional, à dor me dou.

 

Mas sempre me reporto e sempre me diviso

e titubeio sem força para ser presente

– hiatizado sempre, mais sempre me divido

sem integridade que se patenteie de imanente.

 

Lançado ao esporádico abismal de ser inteiro,

me deliro obcecado em persistir-me afirmativo

mas, impotente, recaio-me em permeio,

apenas forte no falho, obliterante, reativo.

 

Da dor, o meu poema, ferido e desvirtuado,

se lança, então, alucinado na voragem,

intrépido, de impotente e de frustrado,

à temeridade mais selvagem

– enfurecido se perde e se destrói

e não alcança jamais consecução

– eterniza-se dorido por antagonista ao que dói

e afoga-se, revolta e lucidez castrante,

sempre a um passo, sempre participação,

sempre não poder desistir de intencionar afirmação

em mais asfixia, em mais, em mais,

e, sempre menos, maior impotenciação –

da dor, o meu poema desespero e aflição.

 

(Contenção breve inevitável do desvairo,

arfar um pouco, arfar, arfar...

Mas o aguilhão aspirativo instituinte

insiste, motivando a cada nada, em mais aproximar;

 

aproximar de nada em aproximar ao infinito

– pois que Zenão tinha razão –

mas quem, se sujeito, não hiatiza

e se relaciona na separação?)

 

Ah! raiva absurda, ira-te ao demais

e bate com os cornos na parede –

domina e destrói com precisão

até saciares com seca a tua sede.

  

Há que domar ainda e provar mostrando algum domínio,

há que incidir e violar recolhimento,

há que ser demonstrativo até ao menos de impotência,

há que pisar resignação e ser intento

– possibilidade de expressão, cada momento,

vitória em expressar até mesmo diasporando,

sendo a expressão o seu próprio fundamento.

 

Da dor, o meu poema rasga, hiante,

tiras de vivência ao real

e se dirige, incisivo e dilacerante,

à expressividade maior de vitalização letal,

pois é de em mim que se consecuta o desmembramento,

a mim referido em referência ao mundo,

em mim se sequencia a partir do sofrimento,

de mim se forma e ganha-se ecoando-se profundo

– expressão de ser existe,

delimita, define, atinge, exprime, é dardo,

mas o mundo incorporado ali persiste

persistentemente ignorado

– de, a, em mim indistinto a mundo,

mistério eu senão a dor intuível

e a dor forma como em si se finaliza,

a dor engole-se expelida,

a dor me realiza,

torna tudo meu e me faz seu,

em si me dá -sistência e centraliza

– da dor, meu poema e eu.

  

A forma de ser eu me formaliza,

mas este centramento recolhido

cria-se retrativo ao sofrimento

– eu, consciência de mim e de mundo intra-apartamento,

sou da dor produto como movimento de temor,

existo-me na medida do meu medo

e a sua transcendência de tremor

não transcende jamais ser-me degredo

em, de ser o mundo aqui e agora, ser alienação,

negando o não poder deixar de ser afirmação.

 

Da dor, o meu poema fala cambiando

até ao fundamento do temor

– compraz-se impotente, transmutando

desespero em orgástico estertor

– sofrendo orgiástico deambula

em espanto primevo ao pavor –

estilhaça-se disperso exprimindo-se plural,

consecutando-se frustrado de mil formas –

conspurcado se exalta destrutivo,

mil sentimentos e furores,

dilaceramento de alucinado vivo

perdendo-se em hiatos oclusivos

fundados em recolhimentos amedrontados,

todo o medo fundador de consciência e humanidade,

suores entretecidos no prazer febril de ser tensão,

dizer e não chegar expressividade,

mil formas de querer sofrer em toda a direção,

angústia ferir-se revolta desesperada frustração terror,

gemer-se abandonado à dispersão,

farsar-se e disfarçar-se em dizer-se e ser ator,

exprimir-se intensamente até à ausência pretendida

fazendo adivinhar prazeres recônditos,

obscenidades conseguidas em agir corruptor,

em tudo mostrar fraqueza e covardia,

indiciar o gozo e ser só dor.

Da dor, o meu poema, a agonia.

 

                        Suspendo-me intenso de exaustão

                        – não me expressei, nem gozei ludíbrio –

                        falhei-me umbilical masturbação

                        por ser já resposta à impotência e frustração

                        – dirijo só palavras que me digo

                        sem expressar-me além de ser comigo

 

                        e que é ser senão manifestar?

                        – esgoto-me em ser só para mim...

                        Mas não será necessariamente assim?

e aquilo que intento, idêntico ao dado agora aqui?

                        pois que ser senão possibilidade?

 

                        Concentro-me e diviso a identidade:

                        É indiferente, na afirmação inevitável,

                        a unidade ou a dispersão

e o mesmo movimento centrifugador da mesmidade

                        determina o centripetar a alteridade.

 

                        Assim,

 

Da dor, o meu poema, dia após dia,

traduz as nuances do possível

e o possível se inevitabiliza, se circunstancia,

mostrando-se real-aqui todo o traduzível,

combinando-se quotidiano dementemente concentrado em dispersão,

e o possível existe-se, ao imaginável, excedível,

e o possível se transmuta em concreto,

explodindo diário para aqui de toda a direção

– infinitos os modos de transmuta e variação,

e todo existente supera a sempre insuficiente fantasia,

os que podem ser são os que são.

Da dor, o meu poema, o dia-a-dia.

 

Desresponsabilizado, o poema surge,

sempre o mesmo, mesmo se o altero

– olha, desenvolve e se retorna ou incorpora e se devolve

– tudo pode, tudo intenta, tudo é total e mero.

A afeção é idêntica à vontade,

todo o requerido já verdade.

 

Para além – identificações desnecessárias

– escrevo e fica escrito

e segue rotas estranhas, arbitrárias

à pretensão de, de mim, ser-me registo.

 

“Veias impondo músculos veiculantes,

eu me afirmando, eu me querendo, eu me dando”

– ingenuidades iludentes de frustrado,

sublimações doloridas de falhado –

pois,

Da dor, o meu poema se ergue hierático,

autonomizado na letra sublimada,

e se determina estranho a mim, estático,

aberto à penetração estranha à apropriada

– é texto para lá de senso próprio,

devasso a toda a significância imaginável

que se forma em escritas de leitura

direcionantes à justificação e violação

de mil sentidos estrangeiros e imperativos

conquistadores, em prol de si, de mil certezas de significação

redutoras da diferença aos seus motivos

em subserviência à lógica do mesmo/recolhido

à obsessão do temor ao todo já sofrido

– erguendo-se da dor, diverge-se e signo se vagueia

até ser recolhido, ausente e já mentido, tão-só pela dor alheia

– na dor, o meu poema, em autonomizar-se é subordinantemente possuído,

por identificação apetitiva, compensatoriamente deglutido.

 

Mas insisto, ainda assim, num sentido para mim,

guloso de exclusividade até à possessão,

e frente à evidência mais flagrante

desvio-me de enfrentar para me entreter na ilusão.

 

Afasto a impotência aspirativa estruturante

e uso em prazer possível a dinâmica carenciante

jogando o vazio contra vazios –

entreteço, a gozar eterna insaciação,

tesões, tremores e arrepios,

querendo jamais consecutar a já impossível fundente copulação.

 

Da dor, o meu poema se dejeta

por auto-compaixão

e prazenteiramente se reserva,

sofrendo a contenção,

para os excessos orgásticos da agonia,

gozando-se expressão da maior dor

– em vício, me alastro pleno de asco

e gozo-me em repugnância que me sinto

e multíplice de gozo, culpa, dor, gozo até estertor,

eu concluo o maior triunfo da derrota

de que é processo a dor –

transposição do medo na perda de sentido

realizante da força que o formou

– à dor, no meu poema, eu me entrego,

possuindo vorazmente aquilo que eu mesmo dou.

 

Da dor, o meu poema bebe o sangue

e se alimenta muito gordurosamente,

por seus recessos pútridos se lambe,

martírico se defeca insistentemente

no gozo de se enojar de si e ser além

– meu poema, na dor, é consistente,

embora de forma oblíqua, não fundante,

antes consequente à origem de ele ser expressão

– e, no entanto, antecedente, há uma antiga solidão

que, expressando-se, se desvia à auto-confrontação

– aí é mais consistente

o seu sentido dorido

e o gozo que é presente

é só manobrante distrativamente

para longe do escondido:

a dor que em poema quero ausente.

 

Da dor, o meu poema, ainda assim, transpira

um passado recalcado e mentido,

devaneando um rosto transfigurado,

perdido de ser fim ou ter sentido,

boiante num inevitável restar vivo

enquanto não é dado por passado,

realizando-se no por si fertilizado.

 

Mas disso fujo e supremamente me contenho,

dominando interditoriamente

toda a aproximação à beira do abismo

– mas ele me atrai e é presente

                                               na própria contenção,

latentemente

seduzinte à tentadora transgressão.

 

                        A noite,

                        um firmamento estúpido e ausente,

                        febril e feio, incluso frenesim persistente

                        – cedo ao desgaste, dou-me dilaceração,

fustigo-me nefasto exclamando-me questão,

                        angustioso me fadigo tensionante,

                        gozo-me em estrutura declinante

                        até à maior imersão

                        numa mais dispersa multiforme

                        orgástica degradação –

 

Explodir em todas as direções

como necessidade já imperante sobre a antiga contenção

– ser supremo em destruição

depois de esforço impossibilitado

na própria intenção impotente

de alcançar consequente libertado

– independência final pela decisão suicida –

autonomia negada ou indecidida

que em tensão nervosa ou colapso

se afirma em pontuar final

– lançado fora o rumo numa diferença sempre igual.

 

Cansaço de ludíbrios e muletas

sempre desculpadas por um ser além agorizável

mas sempre traído e execrado

pela própria esperança realizável

– afirmo-me de impotência ser viril,

requesto-me à baixeza em me ser mais,

divago-me à dissolução mais vil

e em maior e mais enojante corrupção

sou-me enfim agente e geração –

 

Dejeto de mim sou-me lançado

e por nada trocaria esta agonia

– estertor de estilhaçamento, esquecido e isolado,

sou exclamação e tenho dia –

pegadas são-me já nestes meus pés,

passos dados em se darem sem intento,

vagueio-me da intensidade à ausência,

presença mais forte no mais forte esquecimento,

fusão obstacular e rígida a músculo e nervo,

                                    imanência,

fatalidade assumida de arbítrio e vontade.

 

Indiferente que tudo exista ou não,

neste estremecimento de se ser

até à verdade mais exangue,

no golpe único e final

patenteante em real supremo

da fundação única do sangue.

 

                        Eis desvelado o fundamento

                        e um olhar trágico que o teme

                        – uma verdade que se afirma em momento,

                        mas segue sem nós, devindo indemne:

 

                        o é de todo o instante aqui

                        e toda a possibilidade em imanência

                        – apenas foi, será, para lá, fora de si,

                        o que jamais é, o além, a transcendência,

e é o transcendente o que não sou

nem posso ser nem sequer ter,

aquilo a que, mesmo intencionando, não me dou.

 

– Em sangue vivo e sou-me só este viver

 

– porquê então ao sangue me encolher,

ficar aquém de enfim me ser?

 

            Entre temer e defrontar,

            pausa sobre pausa e o absurdo em cada ato

– demasiada direcionalidade intra‑intencionada

            e só eu, em mundo, presente, dado ou facto –

 

            – um momento de indecisão,

            de falta da coragem necessária,

            e tudo a fluir de novo –

            fora agora, distância indiferente e arbitrária.

 

Sobre o mesmo abismo, apetição e irascividade,

sobre o mesmo abismo se ergue puro entusiasmo e total vazio,

sobre o mesmo abismo, o efémero, a eternidade,

sobre o mesmo abismo, a embriaguez e o calafrio,

 

e um único momento, um único, transmuta um contrário no oposto,

uma fútil decisão ou o mínimo gesto hesitante – o menor olhar

inverte o sentido das ondas de intensificação ao ínfimo abismático,

inverte a intrínseca ressonância, a dinâmica da força, o modo de estacar,

 

um único inadvertido momento, um único, sem significado,

sacraliza ou amaldiçoa a inteireza de uma vida,

decide pela presença, condena ser-se em ausência,

arrasta e fataliza as possibilidades de ser de uma vivência,


um único momento e um tipo de vertigem

sempre sobre o mesmo hiático abismo,

a falta de um gesto decisivo,

estacar cansado de excesso apetitivo

e tudo a correr de novo no reverso

como se fora sentido de algo o seu inverso –

 

um momento sempre não notório,

sem adivinhar consequências,

uma paragem nos limites do abismo

e o vazio a arrastar, inúteis já, ao devir, as resistências...

 

Olhos longos demandam sem alcance...

clímax ambicionam sem poder...

– areias movediças e langor...

entorpecimento em me ser dor...

 

A autonomia está cansada,

só busca, enfim, compensação;

deglute, sem vergonha, apaziguada,

bonomia e solidão –

 

Voltar atrás? recomeçar? ser festa?

relançar a força em golpes de vontade?

A derrota é o que resta

e sem retorno nem verdade.

 

Temor de sangue, apetição à vida,

instalar a morte em manter carne,

quando a carne quer-se sorvida,

tragada pela terra que a formou.

 

Não querer dor é já fugir à alegria,

preferir adormecer, sonhar, a estremecer,

a vibrar de intensidade e de ser dia

até aos limites de ansiar e de sofrer –

 

Não querer morrer é não querer terra,

temer o sentido de viver,

fugir à luta, à tensão, fugir à guerra,

petrificar-se em paz se entorpecer.

 

Fraquezas se congregam no meu ser,

sinto sono e quero me esquecer,

incomoda-me o passado, incomoda-me pensar,

ah! deixem-me fechar os olhos, sonhar, sonhar...

 

Quero esquecer vergonha e culpa,

ser suficiente e vazio,

dissolver-me lentamente,

no quentinho, sem ter frio.

 

Acalentar-me a mim próprio,

aninhar-me no meu colo,

regressar ao meu umbigo

enternecido sorrindo

 

quem me espicaça ainda fundo?

quem me fala e me envida?

que tremor e que revolta?

 

esqueci-me do desespero,

retornei ao meu umbigo,

não quero ter de viver,

mas,

 

Da dor, o meu poema geme fundo

e anseia alegria que o devolva

forte ao que o formou, ao mundo,

anseia paz ou dança que a dor dissolva

ou lhe dê textura de sentido que, ausente,

vagueia hoje, irrisório ou mesquinho,

numa compensação qualquer redutora e instaurante de caminho;

anseia voo, quer querer-se instante permanente

que se afirme mesmo dor, mesmo sozinho,

altaneiro alegre inevitável destino,

mesmo sem rumo, em tudo ao desatino,

quer-se rindo, quer querer-se a si,

deixar hiatos,

                        ser o mundo em ser aqui.

 

Momentos longos, acabrunhados em ser lá,

em não se afirmarem, não se serem –aquém de ser em ser além–

pairam pesados e fatais ao que virá,

cada qual sobrepujado pela dor, cada qual ninguém,

dor amorfa, sem músculo, nervo, sem tesão

– anestesia – ausência – esterilização –

momentos sempre a medo, em medo iguais...

 

                        da dor, o meu poema quer-se mais

– quer a diferença afirmadora de se ser,

quer punho erguido – olhar farpante – demolidor

e o berro antigo lançado vivo do momento de nascer,

afirmativo, forte, tenaz – o meu poema – da dor à dor.

 

A dor como sentido me percorre

e sou-me enquanto sofro – em dor me vivo

– prazer é o sangue que me corre

e matando é que, carnívoro, sobrevivo.

 

Despojado, sou-me livre e tenho voo,

cada gesto dirigindo afirmação,

nervo ereto, distendido a calafrio,

mas enfrentando em limite de paixão

a aniquilação que me anuncio –

 

Quero-me a ser eternamente

o momento em que me digo a morte

e na dor em que derroto manutenção

sou-me enfim destino e porte

 

– clímax maior em estar nascente

e, antes que me canse e me derrote,

afirmo-me em ápice tremente,

frente ao sol e dor, em me dar morte.

 

Da dor à dor maior, o sentido de viver

– anel de retorno até cair exangue –

Nada mais que poema místico de ser

alfa e ómega da verdade de ser sangue.

 

Da dor quero morrer eternamente

já que é o sentido da tensão,

quero gozar aos limites do fremente,

quero intentar, quero criar, quero paixão

e, senão houver mais a gerar,

quero a carne enquanto corrupção,

penetrando a terra e, em seiva,

ser de novo agente e geração

– que da terra é meu sentido e verdade

e da dor o meu começo afirmativo

até esgotar-se eternidade,

até espalhar-me e ser vivo

ao limite do universo

em assunção de infinito,

situando-me na plena dispersão

da mais derivante orgástica dissolução

 

– da dor, o meu poema se aniquila

em querer autonomia e ser afirmação,

gozando-se maior no espasmo explosivo

em dor por dor princípio e fim completos na maior destruição,

força terrível de afirmar a própria negação,

tensão plena no limite mais carente

até só ser enquanto pretendente,

até esgotar-se fazedor e, porque não?,

encontrar, na realização do, à partida,

impossível ou contrário à vida,

a sua própria íntima satisfação –

restar, no fim, consecutado e feliz,

na placidez triste da recordação

– tudo se fazendo para mais tarde ver-se em beleza

o rosto passado enfrentando o impossível

com infinita melancólica tristeza,

olhando satisfeito o cada vez menos visível,

os contornos se apagando

e apenas símbolos ficando,

signos de uma dor passada,

de uma intensidade antiga e não saudosa

pois só significante em dar sentido

a uma velhice e paz radiosa,

liberta e ponderada, eternizando cada momento vivido

– o sol põe-se num horizonte entristecido

mas por fulgurar final em alegria

– o vaso transborda de emoção e sentimento,

revisitando a vida, momento a momento,

e lágrimas felizes caem, celebrando, em nostalgia,

a dor, o poema que se presencia –

 

transmutação e magia

no despojamento final,

o poema torna-se elegia

e a dor iguala-se afinal,

em comoção, à alegria,

à felicidade total.

 

Da dor, o meu poema se faz dia

e, revolucionando-se solar,

é noturnamente em harmonia

e esvai-se despojado a amar

 

– mas o poema em expetativa

é o que castra o poema aqui,

o reportamento que em fim visa

é vazio intimamente em si

– visar o gozo da conquista completa

em vez de a conquistar

– acalentar-se em esperança repleta

do que é por oposto ao aqui estar

– esvaziar o sentido do instante

na satisfação de antever o só distante,

protelando-o e assim o mantendo cada vez mais p’ra diante

– sinal de perda da força passional,

afirmar-se, na própria criação,

criando o sentido fora do criar, no ideal,

e dando sentido além a alcançar à sua própria expressão,

concebendo mistério e segredo a desvendar

o tão-só produto da própria e fundante imaginação

– necessidade enfraquecida de, só se reportado,

vivenciar a presença criativa da própria possibilidade,

incapacidade de ser tão-só, de alteridade despojado,

no seu agir expressante – todo o mundo e verdade

 

– restar esperando o dia da vontade,

sempre sem propício na quotidianidade

– o corpo degradando-se inerte assegurado,

alienado pela castração mais funda

e querendo-se tão-só anestesiado

 

– e a vergonha a inundar fria e imunda...

 

Na dor, o meu poema se redunda

perdido nos círculos da dor amorfa que nos funda

e nos labirintos que se sucedem sem saída,

circulando até ao desalento de não poder jamais em corpo a eternidade,

e, recomeçando sempre a aspirar além da dor,

sempre, impotente, gozando a antevisão

e sempre desvelando o seu sentido prestidigitador

e sempre desdobrando-se comprazendo-se auto-compaixão

e sempre ficando ainda assim necessidade de ser mais

e sempre falhar paixão e retornar a ideais

e sempre, se ainda intentando ser a força que é de si,

sempre falhando a integração da força já inevitavelmente aqui

hiaticamente mantendo limite ao pleno, ali, ali,

passionando-se desvairo possível ao estertor

até à mais absoluta asfixiante impotenciação,

despojando-se até ao nuclear da hiatização

e deparando fundamentos recolhidos em temor

até patentear na possibilidade a estruturação

da dor geral castrante de fugir à dor

e não poder libertar a frustrante castração

e sublimar ainda expressando a própria ausência de sentido

e gozando a derrota por impossibilidade de se gozar vivo

e conspurcar-se pocilguento até à maior execração

e desvendar angustiante a traidora progressão

e confrontar-se com os abismos memoriais da irreversível original traição,

dilacerar-se final em toda a direção,                 

indecidir-se no patenteamento fundamental, 

desistir prostrado indiferente à degenerescência

e, final, aspirar ainda e de novo antevisar

por insuportabilidade envergonhada da impotência

e de novo fundar na dor uma nova transcendência,

exorcizar em poema a própria insuficiência      

e desvelar de novo o absurdo de hiatizar

e querer-se ser em si e todo em imanência

e diasporizar passionalmente em força a intentar

e ver de novo o sentido no preenchimento além

e de novo desvelar prestidigitação

e de novo redundância, angústia, desilusão,

desespero, petrificação, desistência – inação – ninguém

– círculos prostrando-me final e indiferente

até, sem força para, nobre, o sacralizar,

do próprio ser para a morte, desistente

– e nada mais na dor que se possa poetizar.

 

Da dor o meu poema, vazio, se emudece,

não só descrente, mas absurdo,

calando a própria fundante e inevitável expressão

por indiferente o que quer que se diga ou não

 

suspensão

 

um sabor amargo perdendo-se na boca,

um olhar obliterado, baço, sem intimidade,

manter-se a fazer o que outros fazem,

festa, trabalho, casamento, maternidade,

tudo mecanicamente, arte do absurdo,

indiferente, sempre indiferente, o sentido, a justiça, a verdade,

cacarejamentos de convicções e contemporaneidade

entretentes desse mundo, dessa gente,

que desprezo e a que pareço, cada vez, cada vez mais,

mais e mais deprimentemente,

até à náusea mais contínua e persistente,

mais redutora a indiferente – indiferente,

mais inerte, mais amorfo, mais carente,

mais idêntico ao público, a toda a gente...

 

e as coisas e os tempos afastam-se de mim,

fluem em direção a não aqui,

escapam a ser e são-me fim

passando de aí a ali, ali

 

escapa-se a vida, escapa-se a dor,

escapam ternuras, vai-se a paixão,

escapa-se a cor, brilho, fulgor,

e a penumbra,

                        a noite,

                                     o tempo,

                                                   a solidão,

irremediável sentimento de perda,

absurdo, contínuo,

amargura e nostalgia,

frente à vida, frente ao mundo

– a circularidade de tudo,

fundante do ser de todos,

pagando-se da teimosia

em que insisti e fiz via

– a indiferença dos Pança

a conquistar D. Quixote

– nem restando para herança

a força que me era dote...

 

Dor esbatida, dor constante,

compassiva, aniquilante,

torno nada o pessoal,

olhos tristes de plebeu,

identifico-me igual,

em toda a gente sou eu.

 

Ainda aí se existe

e faz-se e a transmutação persiste,

mas absurda e mimética,

de fora, como ausentada,

dor infinda e desprezada,

dor de si mesma castrada,

dor total e redutiva

de tudo a ser-se alienada,

tristeza incorporando dorida

meu poema feito nada.

 

Esperanças e sonhos – anseios,

magias visadas, segredos,

mistérios, carícias e seios,

torturas batalhas degredos

– tudo deixado de lado,

todos seguindo indiferentes,

abandonado o chorado,

cerrados de vez os dentes.

 

vez em vez, queixumes inda,

mas sem força, sem verdade,

ocultando, distrativos à memória,

a própria impossibilidade

de ser-se paixão ou história

 

restar, restar, funcionando,

lassidão e desencanto,

o real, o verdadeiro, o quando

se vê tal qual e tanto sobre tanto.

 

Indecidido ou vazio, suspenso ou tão-só só nada,

o poema fica perdido no excesso diferencial.

Em dispersão, que toada?

despojamento, para onde?

em nada, que interessa a dor?

como a vontade? qual o amor?

é tudo igual, tudo igual...

 

triste, ausente, fatal


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. I, ausência, pp. 224-246

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