"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

Perfeita a flor


Perfeita a flor,

perfeito o fruto,

perfeito o voo

de alado adulto.

 

Perfeita a voz

de ária saudosa,

perfeito êxtase

no qual se goza.

 

Perfeito um rosto

feito expressão,

perfeito agosto,

satisfação.

 

Perfeito o dia

que a luz refrata

com a alegria

de uma gaiata.

 

Perfeito o enleio

do apaixonado,

perfeito o seio

adivinhado.

 

Perfeito o riso

jovem feliz,

perfeito alcance

do que se quis.

 

Perfeito amor

e o seu deleite

tal qual ardor

com que é aceite.

 

Perfeito o sono

após entrega

com a dormência

que a pele navega.

 

Perfeita a paz,

serenidade,

por mais fugaz

a brevidade.

 

Perfeita a Terra

vista à distância

pelo astronauta

em vigilância.

 

Perfeito o sol,

a irradiação

de cada raio,

cada fotão.

 

Perfeito o ser

afirmativo,

nascer, crescer,

ser forte, ativo.

 

Perfeito é

tudo que advenha

e cujo ímpeto

nada detenha.

 

Mas, dessa forma,

perfeito é

não só ser cume,

também sopé.

 

Perfeita a meta

que se remata,

tal como a seta

que o gamo mata.

 

Perfeito o engano

de uma traição,

como a malícia

da sedução.

 

Perfeito o crime

arquitetado

com a minúcia

de um rendilhado.

 

Perfeita a falha

do derrotado,

como a inépcia

do desastrado,

 

assim vergonha

num humilhado,

assim peçonha

n’ envenenado.

 

Perfeita enfim

a privação,

não só do ato,

mas da paixão.

 

Perfeito o fardo

do responsável,

constrangimento

d’ inadiável,

 

e o sacrifício

do proletário,

como o suplício

do solitário.

 

Perfeita a dádiva

da castidade,

recalcamento

da honestidade.

  

Perfeita a morte

e a corrupção

da carne a monte,

putrefação.

 

Perfeita a fome

desde nascer,

em cada dia,

até morrer.

 

Perfeito instinto

que insta a fazer

querido filho

p’ra perecer.

 

Perfeita a gula,

indigestão,

que a diarreia

purga p’ró chão.

 

Perfeito o ciclo

que faz estrume,

nova colheita,

novo legume.

 

Perfeito o fogo,

rescalda o velho,

brotando o novo

do ardor vermelho.

 

Perfeito o horror

com que inda berra

um desmembrado

de qualquer guerra,

 

e assim cidade

abandonada

com os seus prédios

em derrocada.

  

Perfeito o cheiro

de uma lixeira

e o chafurdeiro

de uma rameira.

 

Perfeitos passos

em que perdura

a luta infinda

contra a secura,

 

e no deserto,

em vez de auxílio,

se encontra abusos

do seu exílio.

 

Perfeitos gestos

dos tresloucados,

vazios afetos

de alucinados,

 

furores e uivos

mostram tortura

a transtornar

mente em loucura.

 

Perfeito fim

a colisão

entre planetas

em atração

 

ou ‘té melhor,

gradual fusão

levando estrela

à implosão.

 

Perfeito espaço

dito vazio,

vácuo sem traço,

límpido e frio.

  

Perfeito nada

que a alma insana,

triste e cansada,

busca em nirvana.

 

Perfeito sim,

perfeito não,

é perfeição

contradição.

 

E assim se Deus,

caso existir,

é perfeição

sem se cingir,

 

ao infinito

ser soberana

superação

da que é humana,

 

só poderia

ser e não ser,

tanto o mirrar

como o crescer.

 

O maior brilho

e a escuridão,

um fixo trilho,

caos, confusão,

 

e tão presente

na mão que afaga

quanto demente

no fio da adaga.

 

Ser absoluto

de adjunção,

fazer do luto

celebração.

  

Claro que há

quem Deus conceba

um ser que abstrato

só o sim receba.

 

Noção absurda,

maximizar

o que só existe

se variar.

 

Vida sem morte?

Brilho sem sombra?

E, sem doença,

saúde infinda?

 

E a felicidade

sem sofrimento,

inanidade,

‘nfastiamento?

 

Mundo é dinâmica,

riso e comédia,

tensão no drama,

dor na tragédia.

 

Ser um só lado

não é ser puro,

significado

de som absurdo

 

que só parece

ter um sentido

por ser do ser

abstraído.

 

Ser é ser luta,

é ser ação,

desde disputa

até paixão.

  

Lobotomia,

sem incisão,

sofreu quem quer

o sim sem não

 

ou talvez seja

a frustração

que enfim deseja

só castração.

 

Qualquer que seja

a sua razão,

nunca é mais nada

que abstração

 

lá projetada

por poder cá

só desejar

lado de lá.

 

Como nem há

qualquer além,

resta-lhe ser

delírio aquém.

 

É assim perfeita

a imperfeição,

o azul no céu,

escarro no chão.

 

Ser soberano,

manchado e puro,

infindo oceano,

musgo num muro,

 

ser impessoal,

sem lado ou escolha,

sem bem ou mal,

verbo que acolha,

  

indiferente,

sem consciência,

cujo desígnio

é a sua ausência,

 

é só o possível

possib’litando

renovação

do que se vai

                já desgastando...

 

...

barata a fugir da luz,

minhoca a furar a terra,

infeção a excretar pus,

semente que a enxada enterra

– beleza tímida ocultada por capuz,

jazigo que se descerra 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. III, terra, pp. 93-101.

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