Eu vejo várias estrelas. Eu ouço o
impacto do vento nas folhas. Eu cheiro o odor da terra e da relva molhada pela
chuva. Eu saboreio uma pastilha. Eu sinto a rugosa casca de uma árvore. Eu
sinto uma indisposição digestiva. Eu sinto-me irritado com a demora da pessoa
com que me vou encontrar. Eu amo-a. Eu reflito acerca destas sensações,
emoções, sentimentos e pensamentos. Eu pergunto-me acerca do que é este eu.
Tudo o que eu considere é meu objeto, inclusive o próprio eu. O objeto é o que
é considerado por um sujeito. Pode existir uma coisa que não seja objeto.
Porém, na medida em que estou a considerar essa possibilidade, imediatamente
essa coisa se torna um objeto possível. Os objetos opõem-se ao sujeito. São
considerados por este, por sua espontaneidade cognitiva. Suponho que alguns
desses objetos correspondem a outros sujeitos. Porém, só tenho deles
conhecimento como objetos e como objetos nada têm de sujeitos. Considera-se que
vários desses objetos estão fora do sujeito e outros estão dentro. Estranha distinção.
Pensa-se que as estrelas que vejo estarão a muitos anos-luz do meu planeta.
Porém, mesmo para a física, a luz que vejo das estrelas não está a essa
distância. De facto, segundo a física, entrou-me literalmente pelos olhos
dentro. O objeto “estrelas” é visto aqui, a conceção de que a sua luz foi
causada a grande distância e no passado é aprendida e compreendida aqui, a
distinção entre a luz que vejo e o que a astronomia concluiu que era em si uma
estrela é entendida aqui, a conceção que tenho acerca de ótica e do
funcionamento dos meus olhos é percebida aqui. Supõe-se que, apesar de a
perceção ocorrer aqui, se refere a coisas que, embora diversas da perceção,
existem em si mesmas independente de mim. Porém, mesmo essa conceção da coisa
em si é especulada aqui. Supõe-se que, através de experimentos, eu possa testar
as minhas hipóteses acerca do que será cada coisa em si, vendo se ocorre ou não
fenomenicamente o previsto caso a coisa que se não vê corresponda à hipótese.
Mas também essa verificação ocorre aqui, as máquinas experimentais são feitas
com as conceções do sujeito e dependem da interpretação do sujeito.
Corresponderão as teorias à realidade para lá do sujeito? O homem da idade da
pedra que atribuía a dádiva do fogo a um determinado deus, julgava confirmar a
sua teoria quando, após ou durante uma reza a esse deus, conseguia dar origem a
uma chama. O mesmo, aliás, continua a acontecer nos centros religiosos
milagreiros de promessas. Admito que se encontra aí um reforço considerável
para a crença, mas a história tem mostrado que as crenças consideradas mais
indubitáveis só o eram por ninguém (ou por ninguém considerado relevante) as
pôr em dúvida. Quando o fizeram, acabaram por não resistir. Talvez exista uma
realidade para lá do sujeito, eu acredito que existe, mas só posso falar
daquela que, de uma outra forma, é considerada por mim. E as conceções que
melhor aceito são aquelas que melhor ordenam a compreensão que tenho do mundo.
É habitual contrapor o eu ao mundo.
O mundo é o conjunto de tudo o que está à frente do sujeito, mas que se supõe
transcendê-lo. Isto porque se supõe que o mundo existe independentemente do
sujeito e de que tem muito mais coisas que aquelas que o sujeito percebe. Ora,
a palavra mundo, mesmo entre os latinos, contrapõe-se a caos. Traduz, aliás, a
palavra cosmos. O cosmos, para os gregos, resultava da ação ordenadora dos
deuses a partir do caos primevo. A ciência, ao pressupor constantemente que
existe uma ordem eterna no universo, leis universais da natureza que é, apenas,
preciso descobrir, acaba por ter uma conceção análoga do mundo. Inicialmente, a
ciência atribuía essa ordem ao desígnio divino. Hoje, as crenças variam, mas
não a crença da existência dessa ordem, sem a qual nem valeria a pena fazer
ciência. Haverá uma ordem na própria realidade independentemente de qualquer
sujeito? É possível. Porém, só é possível falar dela enquanto é considerada
pelo sujeito, nem que seja sob a forma da especulação acerca de uma eventual
realidade para lá do sujeito. Na verdade, independentemente da existência ou
não de uma ordem não subjetiva, toda e qualquer ordem que haja sido atribuída
ao mundo não foi mais do que uma construção do próprio sujeito. De facto, o
mundo de que se pode falar é sempre e apenas o resultado da ordenação subjetiva
das próprias representações do eu. Especular acerca de uma ordem que não pode
ser ordenada pelo sujeito e existirá para lá dele é falar de uma suposição
subjetiva também ou então tentar falar sem se conseguir de algo mais
inconcebível que qualquer quimera, pois não há qualquer forma de lhe aceder,
nem há nenhuma razão para supor tal existência. O mundo (ou ordem) de que posso
falar é subjetivo e toda a realidade que possa existir para lá da construção
subjetiva é indizível a não ser como uma suposição subjetiva. Não há mundo sem
eu. Mas haverá eu sem o mundo?
Assim parece porque para lá de tudo o que está disposto frente ao eu e a ele contraposto, há toda uma série de representações que refiro a mim próprio. Porém, a minha indisposição digestiva é atribuída ao meu corpo que eu considero, é certo, como algo que está próximo de mim na ordenação do mundo e que, de alguma forma, possuo ou, pelo menos, pelos atos intencionais, uso, mas que não sou eu. Atribuo a irritação ou até mesmo o amor parcialmente ao meu corpo, mas já envolvo as emoções e os sentimentos na consideração de outra instância que se pode chamar alma, espírito, mente, etc., de forma mais ou menos indiferente. Em qualquer caso, na medida em que considero a irritação, o amor ou a mente, passam a ser meros objetos do sujeito e não o próprio sujeito. O mesmo acontece com a minha reflexão acerca disso e tudo aquilo que denomino consciência, inclusive as perguntas acerca dela. Seja como entidade metafísica, como eu transcendental ou como parte do psiquismo, o eu que o eu considera já não sou eu mas um objeto subjetivo. Quando me tento referir à minha atividade como espontaneidade para sublinhar o seu caráter ativo mas objetivamente inexplicado, já a estou a reduzir a um determinado tipo vago de objeto e, como tal, não consigo falar da verdadeira suposta espontaneidade do sujeito. Dessa forma, verifico afinal que tudo o que a mim atribuo acaba por ter a mesma natureza do mundo, tratam-se de objetos frente ao sujeito. Mas, então, o que é o eu? Se se eliminar tudo quanto é objeto para chegar ao sujeito, fica-se com o quê? Com nada? Como o infinitesimal ponto, o limite da extensão que se pode considerar ele próprio como não extenso, pois senão seria um pequeno círculo, o eu não é de facto nada a não ser o ponto a partir do qual se estrutura todo o mundo. Tudo é referido ao eu, tudo é sentido, percecionado, pensado pelo eu, mas nada que é sentido, percecionado e pensado parece ser o eu. O que seja em si o eu é algo que está na mesma situação da realidade em si para lá da perceção. Só se pode especular acerca disso e, quando se especula, já se não está a atingir o que se pretendia pois transforma-se esse eu ou essa coisa em si num objeto subjetivo. Porém, enquanto ponto perspetívico em relação ao qual tudo é referido, num certo sentido, todo o mundo é eu na medida em que é o conjunto das suas representações. Tal qual não há nenhum mundo de que se possa falar que não o subjetivo, também não há nenhum sujeito de que se possa falar que não aquele a que se refere todo o mundo. Assim, o mundo acaba por ser a forma referível da subjetividade. Eu, na medida em que de mim possa falar, acabo por ser o mundo.
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