"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

Cai a noite


Cai a noite

longe e perto do café cosmopolita.

Em mim, há muito caiu...

Pesada...

Nos outros?...

Não sei...

Fumei um cigarro...

Seco, amargo...

Escrevo agora sem saber porquê...

Velório, tudo...

Os que passam de carro,

os que vão a pé,

eu aqui neste café

já nem fumando o cigarro...

Um escarro...

Meu ou do mendigo de meter dó?

Tristeza de me estar só...

 

De nós, se poderia dizer

que estamos num velório

esperando um enterro que não virá...

Claro, pois que é o nosso

e assistir ao nosso enterro

é um luxo a que não temos acesso.

  

Uma risada desmente

aquilo que estou a afirmar,

mas rapidamente esmorece

como tomada de consciência,

certamente não verbal,

da solenidade pesada

do ambiente.

Nos velórios,

há sempre quem venha à entrada

contar piadas.

Se se exagera,

os olhares cancelam o humor.

Nem foi preciso olhar,

para a súbita alegria

se ter reconhecido inapropriada

e se ter esvaído,

rapidamente dissipada

pela atmosfera pesada.

 

Certamente a alegria

não é sempre fugidia,

mas agora,

no velório,

que sou e em que estou,

ela não é mais

que a anedota

a que rebeldemente

se acha piada

junto à entrada

da capela ou do café...

 

Dessa anedota

talvez venha um dia a rir...

Por agora,

talvez se possa

farsar um riso

triste, ecoante

no nosso silêncio

                        anedótico...

 

Enquanto os risos dormem,

o velório cansa

e cansado

até atinge a gente

que sai do teatro

de expressão pouco animada

– parece que a peça foi

uma estopada...

Descem a Avenida Fontes Pereira de Melo

por alguma razão

e participam nesta ode fúnebre

exatamente por aquilo que são.

Eu escrevo sem saber porquê

e gostaria de pôr um epitáfio

sobre todo o cenário que se vê,

mas até para isso estou cansado

e sigo simplesmente

levando o velório

para outro lado.



Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. I, ausência, pp. 59-61

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