Passaram dias, passaram semanas, passaram meses,
passarão
talvez anos talvez décadas talvez sempre
e
tu, como antes, como de todas as outras vezes,
entrarás
com os olhos brilhando esperanças de magia
sofrerás
na minha cama a exaltação e a agonia
conversarás
comigo sobre tudo sobre nada
e
irás ou não irás ou ficarás
sem
que entre as palavras e os gestos fosse dada
razão
à esperança que te trouxe
e
que eternamente guardas adiada
Passaram
dias, passaram meses
e
não sei o que de mim ficou para dizer
não
me reconheço e se acaso às vezes
falo
de mim falo de outro cujas palavras fixei
como
fixadas são as de um livro obsessivamente lido e relido
ou
de um estranho que em mim cresce ou habita
como
se diz que os finados nos ocupam e dominam e revivem
O
que sou, sou-o contigo, quando te falo e te beijo,
quanto
te lambo, te acaricio, te penetro, te desejo,
quando
te amo, quando te durmo, quando latejo
antes
de derramar-me e perder-me nas entranhas
que
já não são tuas, doutro, mas meu mundo
em
que pudera restar viver eternamente
em
que queria morrer para te ser completamente
como
é terra o que à terra retorna finalmente
Passaram
dias, passaram meses, passámos nós
e
é com surpresa que, quando, de vez em quando,
ouvimos
finalmente a nossa voz
descobrimos
que somos ainda um e outro a sós
E,
no entanto, que resta afinal de nós?
A
passagem erodiu a pouco e pouco cada qual
e
na devastação final
nada
se encontra que seja de um ou seja doutro
numa
completa indistinção do individual
como
se possível fosse que a completa oposição
se transmutasse no
completamente igual
Por
vezes, quando acordo de um dos nossos sonos
fundentes
para lá do orgasmo que o criou
pergunto-me
se este corpo será inda de um outro
e
não consigo crer no que a física ensinou
Gostaria
de ter dito, de dizer-te o que sinto
de
dar razão à esperança que sempre brilha nos teus olhos
mas
se falo, mas se digo, nesse mesmo momento, minto
por mais expressivas, todas
as palavras reduzem a nada o que sinto
as
palavras delimitam identificam precisam
e
nada encontro em mim por ti de definível
até
mesmo traçar fronteira entre mim e ti
nesse
limbo de fusão tão impossível
entre
salvação e perdição
onde
negando-nos se encontra a afirmação
onde
se desfaz a tensão lançada da existência
num
dissolver indiferenciado de dormência
Por
maior que seja a quantidade de um finito
será
sempre abismalmente oposto ao infinito –
inútil
tentar transpor para palavras
a
infinita cambiância de gestos e olhares,
toques,
afagos, fricções dos mais ínfimos lugares,
lábios
aflorados, repenicados, penetrados, devastados
e,
sobretudo, a entrega dos mais longos abraços
em
que a identidade se desfaz para que interpenetrados
dois
corpos ocupem ao mesmo tempo os mesmos espaços
e
a memória seja limpa dos ressentimentos guardados
como
uma purga total de traumas e rancores acumulados
Gostaria
de ter dito o que não pode ser dito
exatamente
no mesmo instante em que acredito
que
não é preciso dizer nada
que
não é preciso mensagem alguma
que
não tenha sido já bem revelada
pelos
nossos corpos dissolvidos na bruma
do
entretecer de húmidos segredos
pelas
nossas bocas frementes de ensejo
ou
sussurrando mágicos enredos
pelos
nossos olhos espelhando profundezas
com
o límpido brilho depurado de impurezas
pelas
nossas almas envolvendo os corpos
e
os ressuscitando de se sentirem mortos
E
ainda assim gostaria de ter dito
porque
desejar é da nossa natureza
e
como se não dizer tivesse o fito
de
olvidar num mar de ligeireza
tudo
quanto foi vivido de inaudito
na
nossa transfusão de inteireza
Ainda
assim gostaria de ter dito
Sem comentários:
Enviar um comentário