"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

domingo, 22 de novembro de 2020

Passaram dias, passaram semanas, passaram meses


Passaram dias, passaram semanas, passaram meses,

passarão talvez anos talvez décadas talvez sempre

e tu, como antes, como de todas as outras vezes,

entrarás com os olhos brilhando esperanças de magia

sofrerás na minha cama a exaltação e a agonia

conversarás comigo sobre tudo sobre nada

e irás ou não irás ou ficarás

sem que entre as palavras e os gestos fosse dada

razão à esperança que te trouxe

e que eternamente guardas adiada

 

Passaram dias, passaram meses

e não sei o que de mim ficou para dizer

não me reconheço e se acaso às vezes

falo de mim falo de outro cujas palavras fixei

como fixadas são as de um livro obsessivamente lido e relido

ou de um estranho que em mim cresce ou habita

como se diz que os finados nos ocupam e dominam e revivem

 

O que sou, sou-o contigo, quando te falo e te beijo,

quanto te lambo, te acaricio, te penetro, te desejo,

quando te amo, quando te durmo, quando latejo

antes de derramar-me e perder-me nas entranhas

que já não são tuas, doutro, mas meu mundo

em que pudera restar viver eternamente

em que queria morrer para te ser completamente

como é terra o que à terra retorna finalmente

 

Passaram dias, passaram meses, passámos nós

e é com surpresa que, quando, de vez em quando,

ouvimos finalmente a nossa voz

descobrimos que somos ainda um e outro a sós

E, no entanto, que resta afinal de nós?

A passagem erodiu a pouco e pouco cada qual

e na devastação final

nada se encontra que seja de um ou seja doutro

numa completa indistinção do individual

como se possível fosse que a completa oposição

                        se transmutasse no completamente igual

 

Por vezes, quando acordo de um dos nossos sonos

fundentes para lá do orgasmo que o criou

pergunto-me se este corpo será inda de um outro

e não consigo crer no que a física ensinou

 

Gostaria de ter dito, de dizer-te o que sinto

de dar razão à esperança que sempre brilha nos teus olhos

mas se falo, mas se digo, nesse mesmo momento, minto

por mais expressivas, todas as palavras reduzem a nada o que sinto

as palavras delimitam identificam precisam

e nada encontro em mim por ti de definível

até mesmo traçar fronteira entre mim e ti

nesse limbo de fusão tão impossível

entre salvação e perdição

onde negando-nos se encontra a afirmação

onde se desfaz a tensão lançada da existência

num dissolver indiferenciado de dormência

 

Por maior que seja a quantidade de um finito

será sempre abismalmente oposto ao infinito –

inútil tentar transpor para palavras

a infinita cambiância de gestos e olhares,

toques, afagos, fricções dos mais ínfimos lugares,

lábios aflorados, repenicados, penetrados, devastados

e, sobretudo, a entrega dos mais longos abraços

em que a identidade se desfaz para que interpenetrados

dois corpos ocupem ao mesmo tempo os mesmos espaços

e a memória seja limpa dos ressentimentos guardados

como uma purga total de traumas e rancores acumulados

 

Gostaria de ter dito o que não pode ser dito

exatamente no mesmo instante em que acredito

que não é preciso dizer nada

que não é preciso mensagem alguma

que não tenha sido já bem revelada

pelos nossos corpos dissolvidos na bruma

do entretecer de húmidos segredos

pelas nossas bocas frementes de ensejo

ou sussurrando mágicos enredos

pelos nossos olhos espelhando profundezas

com o límpido brilho depurado de impurezas

pelas nossas almas envolvendo os corpos

e os ressuscitando de se sentirem mortos

 

E ainda assim gostaria de ter dito

porque desejar é da nossa natureza

e como se não dizer tivesse o fito

de olvidar num mar de ligeireza

tudo quanto foi vivido de inaudito

na nossa transfusão de inteireza

 

Ainda assim gostaria de ter dito

e por isso sinto esta tristeza... 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. II, abertura, pp. 110-112.

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