Uma a uma, as badaladas tocam a meia-noite,
doze toques de penumbra sob a luz
da lua cheia,
pulsação a pulsação, doze baques,
noite-meia,
ressoam segredos antigos sobre a
vila ou a aldeia.
As bocas calam as rezas, pedem a
Deus segurança,
o vento passa nas portas em
sibilino assobio,
ouvem-se craques nos passos,
rangem as dobradiças,
veem-se estranhas sombras à roda
da ponte do rio.
Sopros vêm de lado algum,
suores frios cobrem os rostos,
as velhas fazem jejum,
as novas velam desgostos.
Parece se eternizar
o toque das badaladas,
ninguém sabe o que esperar
enquanto não forem dadas.
Sustem-se a respiração,
olham p’ra cada recanto,
ânsia e inquietação
ficam cobertas por manto.
Inda outro toque mais
e a tensão no corpo todo,
as sombras ficam espetrais,
a terra torna-se lodo.
A insuportabilidade
da espera pelo porvir
de noite que a claridade
tudo pode descobrir.
Quem conhece o que virá,
que coisas pode dizer?
Da lua, se esconderá
ou se passará a ver?
Traições de amigos chegados?
Riquezas bem discutíveis?
Estupros inconfessados?
Crimes de sangue terríveis?
Toca pela última vez,
as badaladas cessaram,
é dormir com rapidez,
os mortos não regressaram.
Canta o galo, canta enfim,
dispersa o mal congregado,
dissipa o sinal de Caim,
o pior já está passado.
Inda co’ o peito apertado,
assoma sossego enfim,
fica o povo aliviado,
o alarme chega ao fim.
Há que recostar cabeças
e respirar descansado,
preparando mente e alma
para o sono consagrado.
Inspirar pausa expirar,
deixar pálpebras pesadas,
deixar mente deslizar
para as imagens sonhadas.
Mas, por vezes, a dormir,
outras ainda acordado,
começa a calma a sumir
ou fica o sono agitado.
Começam horas vazias
que, desde sempre, na mente,
alimentaram manias
com projeções de demente.
Pudessem ter fantasias
com rostos corpos amados
ou recordar alegrias
de momentos bem passados.
Mas os espetros regressam
para assombrarem com medos
e em cada alma ingressam
denunciando os segredos.
Com os olhos ‘sbugalhados,
materializam-se as sombras
como espíritos danados
em contorções hediondas.
Móveis calados estalam
as madeiras ressequidas,
das coisas cheiros se exalam
de carnes apodrecidas.
Objetos não mexidos
caem com súbito estrondo,
passados são revividos
relendo o tampo redondo.
As vozes são transtornadas
por possessões demoníacas,
falam línguas já passadas
com entoações maníacas.
No vazio, rostos vazios
distorcem-se em gargalhadas,
surgem em vultos sombrios
expressões desfiguradas.
Aranhas percorrem rostos
por sono paralisados,
rastejam vermes no solo
até aos corpos deitados.
Centopeias nas paredes
ondulam pernas infindas,
seres com profanas sedes
saciam-se em suas vindas.
Em evocação vibrante,
velhas bruxas acalentam
a força da chama hiante
que demónios alimentam.
Vêm do fundo da terra
forças de destruição,
valquírias cantando a guerra,
erínias da punição.
E há deuses de toda a origem,
toda a configuração,
embora só dos que infligem
tortura e flagelação.
Vêm também os seus servos,
domínio do malicioso,
atraindo p’rá perdição,
instigando p’ró penoso.
Num crescendo de terror,
segue o macabro desfile,
gelando veias, pavor,
foice, gadanha, covil.
Os mortos de há tanto tempo
surgem agora contando
os abusos e as traições
que em si se foram somando.
Ah crimes injustiçados
que exigem enfim vingança.
Quantos antigos pecados
moem na morta lembrança.
Das tumbas sobe um clamor
que implora por redenção
ou busca encontrar autor
do crime sem punição.
E os vivos têm de pagar
pelo ódio dos que morreram,
mesmo sem os condenar
por atos que não fizeram.
Estão vivos e isso chega.
Ser vivo é um ser culpado,
ao desejo ele se entrega,
nele encontra o seu pecado.
A pulsação acelera
quase ao ritmo de parar,
o espírito desespera
com o que há para enfrentar.
Não há tempo para nada,
é fugir, fugir, fugir,
como está longe a alvorada!
no pânico, se ouve rir...
A noite desconhecida
foi sempre vinha do medo,
sempre inimiga da vida
desde o homem mais primevo.
Medo fez lendas e mitos,
animou religiões,
sustentou sangrentos ritos
e reclamou expiações.
Justificou toda a técnica,
intentando superar,
com energia frenética,
todo o capaz de assustar.
Iluminaram-se as noites,
entreteve-se a consciência,
distraiu-se o pensamento
do sentido da existência,
mas ficou sempre no fundo,
subliminar inquietude,
um receio mais profundo
que tudo o mais que o ilude:
a morte romantizada
nunca deixou de existir,
não na forma fascinada
– na que se tenta iludir;
e sob o medo da morte,
talvez como consequência,
um terror inda mais forte,
o da queda na demência.
Mas não é alienação
a fuga da própria morte,
fingindo com ilusão
que é possível outra sorte?
Fujam, corram a fugir
numa fuga apavorada,
por mais que busquem seguir,
não chegarão à alvorada.
Dessa noite, não há fuga
pois já está dentro de vós.
Essa só não nos subjuga
se nos enfrentarmos nós.
Assim, na noite mais escura,
mesmo com lua bem cheia,
sob o espetro da loucura,
sejamos vila e aldeia.
Há que confraternizar
com os fantasmas e monstros,
há que com bruxas bailar,
com demónios ter encontros.
Há que olhar bem para o fundo
do que nós temos nas mentes,
por mais que se julgue imundo
ou que nos ponha dementes.
E só então talvez a noite
permita ter alvorada
ou, pelo menos, dormir
uma noite descansada.
Como
se fora possível
conter
a turba assustada
de
mil medos e pulsões
que
têm na mente morada...
Como
se fora tão fácil
iluminar
escura alma
e
transmutar cada trauma
em
serenidade e calma...
Como
se fora acessível
fazer
com a noite o dia
e
converter o sofrível
em
deleite e alegria...
Como
se fora alvorada...
e a penumbra fosse nada...
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