"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Uma a uma, as badaladas tocam a meia-noite

 

Uma a uma, as badaladas tocam a meia-noite,

doze toques de penumbra sob a luz da lua cheia,

pulsação a pulsação, doze baques, noite-meia,

ressoam segredos antigos sobre a vila ou a aldeia.

 

As bocas calam as rezas, pedem a Deus segurança,

o vento passa nas portas em sibilino assobio,

ouvem-se craques nos passos, rangem as dobradiças,

veem-se estranhas sombras à roda da ponte do rio.

 

Sopros vêm de lado algum,

suores frios cobrem os rostos,

as velhas fazem jejum,

as novas velam desgostos.

 

Parece se eternizar

o toque das badaladas,

ninguém sabe o que esperar

enquanto não forem dadas.

 

Sustem-se a respiração,

olham p’ra cada recanto,

ânsia e inquietação

ficam cobertas por manto.

 

Inda outro toque mais

e a tensão no corpo todo,

as sombras ficam espetrais,

a terra torna-se lodo.

 

A insuportabilidade

da espera pelo porvir

de noite que a claridade

tudo pode descobrir.

 

Quem conhece o que virá,

que coisas pode dizer?

Da lua, se esconderá

ou se passará a ver?

 

Traições de amigos chegados?

Riquezas bem discutíveis?

Estupros inconfessados?

Crimes de sangue terríveis?

 

Toca pela última vez,

as badaladas cessaram,

é dormir com rapidez,

os mortos não regressaram.

 

Canta o galo, canta enfim,

dispersa o mal congregado,

dissipa o sinal de Caim,

o pior já está passado.

 

Inda co’ o peito apertado,

assoma sossego enfim,

fica o povo aliviado,

o alarme chega ao fim.

 

Há que recostar cabeças

e respirar descansado,

preparando mente e alma

para o sono consagrado.

  

Inspirar pausa expirar,

deixar pálpebras pesadas,

deixar mente deslizar

para as imagens sonhadas.

 

Mas, por vezes, a dormir,

outras ainda acordado,

começa a calma a sumir

ou fica o sono agitado.

 

Começam horas vazias

que, desde sempre, na mente,

alimentaram manias

com projeções de demente.

 

Pudessem ter fantasias

com rostos corpos amados

ou recordar alegrias

de momentos bem passados.

 

Mas os espetros regressam

para assombrarem com medos

e em cada alma ingressam

denunciando os segredos.

 

Com os olhos ‘sbugalhados,

materializam-se as sombras

como espíritos danados

em contorções hediondas.

 

Móveis calados estalam

as madeiras ressequidas,

das coisas cheiros se exalam

de carnes apodrecidas.

  

Objetos não mexidos

caem com súbito estrondo,

passados são revividos

relendo o tampo redondo.

 

As vozes são transtornadas

por possessões demoníacas,

falam línguas já passadas

com entoações maníacas.

 

No vazio, rostos vazios

distorcem-se em gargalhadas,

surgem em vultos sombrios

expressões desfiguradas.

 

Aranhas percorrem rostos

por sono paralisados,

rastejam vermes no solo

até aos corpos deitados.

 

Centopeias nas paredes

ondulam pernas infindas,

seres com profanas sedes

saciam-se em suas vindas.

 

Em evocação vibrante,

velhas bruxas acalentam

a força da chama hiante

que demónios alimentam.

 

Vêm do fundo da terra

forças de destruição,

valquírias cantando a guerra,

erínias da punição.

  

E há deuses de toda a origem,

toda a configuração,

embora só dos que infligem

tortura e flagelação.

 

Vêm também os seus servos,

domínio do malicioso,

atraindo p’rá perdição,

instigando p’ró penoso.

 

Num crescendo de terror,

segue o macabro desfile,

gelando veias, pavor,

foice, gadanha, covil.

 

Os mortos de há tanto tempo

surgem agora contando

os abusos e as traições

que em si se foram somando.

 

Ah crimes injustiçados

que exigem enfim vingança.

Quantos antigos pecados

moem na morta lembrança.

 

Das tumbas sobe um clamor

que implora por redenção

ou busca encontrar autor

do crime sem punição.

 

E os vivos têm de pagar

pelo ódio dos que morreram,

mesmo sem os condenar

por atos que não fizeram.

  

Estão vivos e isso chega.

Ser vivo é um ser culpado,

ao desejo ele se entrega,

nele encontra o seu pecado.

 

A pulsação acelera

quase ao ritmo de parar,

o espírito desespera

com o que há para enfrentar.

 

Não há tempo para nada,

é fugir, fugir, fugir,

como está longe a alvorada!

no pânico, se ouve rir...

 

A noite desconhecida

foi sempre vinha do medo,

sempre inimiga da vida

desde o homem mais primevo.

 

Medo fez lendas e mitos,

animou religiões,

sustentou sangrentos ritos

e reclamou expiações.

 

Justificou toda a técnica,

intentando superar,

com energia frenética,

todo o capaz de assustar.

 

Iluminaram-se as noites,

entreteve-se a consciência,

distraiu-se o pensamento

do sentido da existência,

  

mas ficou sempre no fundo,

subliminar inquietude,

um receio mais profundo

que tudo o mais que o ilude:

 

a morte romantizada

nunca deixou de existir,

não na forma fascinada

– na que se tenta iludir;

 

e sob o medo da morte,

talvez como consequência,

um terror inda mais forte,

o da queda na demência.

 

Mas não é alienação

a fuga da própria morte,

fingindo com ilusão

que é possível outra sorte?

 

Fujam, corram a fugir

numa fuga apavorada,

por mais que busquem seguir,

não chegarão à alvorada.

 

Dessa noite, não há fuga

pois já está dentro de vós.

Essa só não nos subjuga

se nos enfrentarmos nós.

 

Assim, na noite mais escura,

mesmo com lua bem cheia,

sob o espetro da loucura,

sejamos vila e aldeia.

  

Há que confraternizar

com os fantasmas e monstros,

há que com bruxas bailar,

com demónios ter encontros.

 

Há que olhar bem para o fundo

do que nós temos nas mentes,

por mais que se julgue imundo

ou que nos ponha dementes.

 

E só então talvez a noite

permita ter alvorada

ou, pelo menos, dormir

uma noite descansada.

 

                                    Como se fora possível

                                    conter a turba assustada

                                    de mil medos e pulsões

                                    que têm na mente morada...

 

                                    Como se fora tão fácil

                                    iluminar escura alma

                                    e transmutar cada trauma

                                    em serenidade e calma...

 

                                    Como se fora acessível

                                    fazer com a noite o dia

                                    e converter o sofrível

                                    em deleite e alegria...

 

                                    Como se fora alvorada...

 

                                    e a penumbra fosse nada...



Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. I, ausência, pp. 15-22

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