"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

terra

     Não são apenas as experiências em que me alheio da subordinação a essa construção objetiva a que chamo sujeito que me obrigam a pensar que há algo mais para lá da projeção representativa a que chamo mundo. O verdadeiro sujeito indizível, o ponto relativamente ao qual tudo é referido mas que não pode ele próprio ser referido, sob pena de uma imediata falsificação como objeto, projeta o mundo não de uma forma universal e impessoal mas a partir de uma situação. Na base dessa situação, está uma perspetiva que não se vê a si mesma mas apenas o que perspetiva. Essa espontaneidade perspetívica produz o mundo para um lado, mas tem ela própria de advir de algo. Isso é óbvio se pensarmos que essa espontaneidade não se reduz de todo à elaboração racional consciente. Como os deterministas têm dito à saciedade, quem gosta de pensar a ação como resultante da deliberação consciente, deveria explicar os inúmeros casos em que se acaba por fazer o diverso ou até o contrário do deliberado. Veem o melhor e fazem o pior, dizia Spinoza. De facto, deliberam o melhor, decidem o melhor, executam o pior. A consciência é uma película onde aparecem, à partida sem explicação, os fenómenos, quer os ditos externos, quer os ditos internos. Em ambos os casos, a consciência tenta posteriormente explicá-los e, para isso, desenvolve teorias complexas que passam a tutelar o aparecimento posterior de novos fenómenos, dando a ilusão de as suas alegadas leis os estarem a provocar. Na verdade, essas explicações destinam-se a criar a ilusão de que a consciência tudo controla e tudo tem sob o seu poder, quando na verdade ela própria está ao serviço de forças que desconhece. Esse desconhecimento, essa ignorância, esse esquecimento torna-se bem evidente em tudo o que ainda assim escapa ao seu controlo apesar da sistemática falsificação dos próprios dados da consciência. Todas essas histórias que conto a mim próprio não resistem, aliás, muito a um olhar verdadeiramente crítico.

Aliás, a atuação do ser humano no planeta é no seu conjunto uma manifestação de uma irracionalidade de tal ordem que não é possível deixar de perguntar onde está essa racionalidade de que o homem tanto se ufana. Essa atuação é a soma de miríades de pequenos atos, cada qual motivado por apetites cegos que a mais pequena deliberação teria detido até mesmo para a satisfação sustentada dos apetites. Outra forma impessoal de verificar essa incapacidade da consciência é evidente no facto de a maioria das pessoas não ser capaz de explicar antes o que acabará por fazer depois não apenas num ato, mas num projeto mais amplo ou até na própria vida. Pode-se explicar as alegadas intenções conscientes, mas estas raramente correspondem ao que se acabará por fazer, mesmo que nenhum obstáculo social ou físico se coloque no seu caminho. Depois, arranjam-se com maior ou menor facilidade explicações ou justificações que se alegará, quase sempre, que estiveram presentes desde o início. Isso, aliás, evidencia que a má-fé da consciência é estruturante da própria consciência. Como não vejo razões para supor que não se esteja convencido do que se diz, isso significa que a má-fé da consciência está ao serviço de uma outra instância da qual a consciência não é senão o instrumento. Toda a mentira é motivada e esta ilusão que a consciência lança sobre si mesma está certamente ao serviço de motivos que, como não são conscientes, deverão radicar noutra instância.

No pensamento ocidental, a necessidade desta suposição tem sido referida várias vezes. Conforme o ponto de vista adotado, a designação e a conceção de tal instância altera-se: ápeiron, força primitiva, númeno, vontade metafísica, dionisíaco, id, ser (e não mero ente), etc. São tantas outras tentativas desajeitadas de dizer o indizível, o que sempre que se diz se falsifica, mesmo que fosse dito como música. Isso não significa que se tratem de tentativas inúteis ou esforços desperdiçados. Tal como é dessa instância que provém a espontaneidade subjetiva e, como tal, a própria projeção do mundo, ela é um manancial inesgotável para se produzir mais mundo. O universo das representações é uma película que é projetada pelo eu. A explicação dessas representações não pode ser encontrada nelas próprias. Para explicá-las, seria necessário, de algum modo, perfurar a película das representações para atingir o fundo de onde emerge o sujeito, ao serviço do qual estão os seus desejos, os seus medos e as suas ações. É isso que todas essas tentativas intentam e, ao fazê-lo, muito embora falhando miseravelmente no seu desígnio último, acabam por enriquecer o mundo com novos objetos que contribuem para uma maior, embora sempre precária, inteligibilidade do mundo. Mas, para lá deste enriquecimento do mundo, depressa o sujeito regressa ao esquecimento da sua própria pertença. O sujeito pode ser visto como ponto perspetívico, como limite do mundo das representações porque é visto a partir deste e como referencial presente em toda a projeção representativa. O esquecimento do seu fundo originário indizível e irrepresentável agrava-se ao se objetivar o sujeito como substância pensante ou outro qualquer seu avatar da metafísica e da ciência que se supõe empírica. Porém, na redução de toda a realidade à operatividade que se tornou característica desta última, ocorreu um aprofundamento do esquecimento até ao ponto de se esquecer o próprio originário derivado do mundo na subjetividade, um esquecimento do esquecimento como foi dito por um célebre autor embora no contexto de uma abordagem ligeiramente diversa. Tal forma radical de alienação corresponde à voragem da época atual e, procurando-se apresentar como realização suprema da racionalidade, é na verdade a forma mais extrema de loucura.

Isso a que o sujeito pertence e de que está esquecido eu chamo terra. Não pretendo, com essa designação, identificar um objeto. Trata-se de um símbolo do anterrepresentativo e até do antessubjetivo que determina o sujeito de forma insondável. Não designa o planeta, mais um objeto manipulável, nem sequer o utiliza como símbolo. Também não designa o objeto solo, mas é aí que procura a abertura simbólica, no solo de que dependemos, no fundo da vida que servimos, nas verdadeiras forças que nos animam – e talvez aluda vagamente à presença que nos possibilita. Quando se considera terra, solo, vida e força como objetos, já não se está a aludir a essa terra a que essencialmente pertencemos, pois transformamos tudo isso em propriedades que nos pertencem e que podemos considerar nossos recursos e utensílios. Trata-se de um símbolo da incompletude radical da determinação subjetiva, para o facto do discurso não conseguir dizer tudo e para a constatação de que só muito forçadamente, ocultando todas as incongruências, se pode considerar explicado o que emana do sujeito. O sujeito desenraizado e pretensamente absoluto da metafísica, incluindo esse supersujeito, modelo de todos os sujeitos, representado em Deus, é um velamento sistemático de uma pertença mais profunda indizível mas suscetível de ser escutada. A escuta da terra faria retornar o sujeito à sua poética habitação que o libertaria da voragem extrema da loucura a que se entregou nos últimos séculos. A superação da arrogância subjetiva ligar-nos-ia ao projeto eventualmente cego da vida a que nunca deixámos de pertencer e permitiria enriquecer o mundo pela consciência da pertença, pela alimentação de sentido e pela experiência da sacralidade imanente de toda a existência.

     Mas só através de analogias e de correspondências simbólicas é que é possível referir essa instância assim tão fundamental? A terra que permite a germinação das plantas e assim constitui a base de toda a vida terrestre, pois se encontra na base da cadeia alimentar, pode constituir uma referência analógica e poética mas parece estranhamente incapaz de expressar essa instância. Porém, um símbolo nunca foi uma referência direta a nada. O símbolo tem sempre uma apresentação sensível que não pretende ser aquilo a que pretende aceder. O símbolo é um portal para uma dimensão inefável que transcende completamente a figura que utiliza para suscitar o acesso. Contrariamente aos emblemas e sinais com que se tem confundido os símbolos por perda do sentido do sagrado, a linguagem simbólica é indissociável do seu originário religioso onde os símbolos ganhavam seu sentido através dos rituais no acesso ao sagrado. Aliás, o símbolo nem sequer refere aquilo de que é símbolo, quanto muito alude a isso sem o referir diretamente. Neste caso, a terra alude a essa instância de que o sujeito depende, a que o sujeito pertence, mas que o sujeito não consegue reduzir a qualquer das suas representações. Tal símbolo não pretende, aliás, remeter para uma dimensão transcendente, mas sim para uma instância transcendente à cegueira e arrogância subjetiva. Mais imanente do que a terra, só a presença que subjaz a tudo, mesmo à própria terra e às suas forças e desígnios porventura desconhecidos dela própria, tal como a vida busca a sobrevivência sem porventura saber para quê. Mas uma tal imanência só pode ser aludida de forma mística, uma pertença tão fundamental não deixa rasto? A presença é sempre sentida, muito embora me obceque a considerá-la apenas pelos presentes e, assim, obstrua o sentimento com o ruído da multiplicidade e variedade dos entes. A terra é sempre ouvida em todos os ímpetos, todas as pulsões, todas as necessidades, mas sistematicamente ignorada ou até esquecida devido ao ensurdecimento da miríade de objetos que projeto. A terra é também evidenciada pelos seus efeitos em toda a espontaneidade do sujeito como mundo que, depois, procuro explicar retrospetivamente de forma a que a possa subordinar às representações, quer as ditas subjetivas, quer as ditas objetivas. Mas a própria falsificação promovida pelo sujeito não deixa de servir a terra e a vida. Há uma manha implícita na consciência que é mais um dos indícios que a consciência se move numa dissimulação que ela própria, usualmente, não explica e que é determinada por instâncias mais fundas. De facto, é fácil ver como, ao longo da história humana, a consciência se resguardou de si mesma, implicitamente (e, logo, de forma pouco consciente) supondo que demasiada consciência faria perigar a própria consciência. Porém, a história recente produziu uma falsificação da falsificação que parece fazer perigar os próprios desígnios cegos da terra e, com estes, a própria vida. Ou talvez não. Assim parece do ponto de vista restrito do sujeito humano que desperta dessa loucura, do ponto de vista restrito da pertença à espécie humana ou ainda do ponto de vista ainda restrito da pertença à vida deste planeta. Talvez esta loucura seja apenas mais uma etapa nos desígnios insondáveis da terra. Talvez nem existam propriamente desígnios, mesmo cegos, da terra. Talvez seja indiferente se a vida do planeta se extingue ou não. Seja como for, a presença permanecerá, como sempre, para sempre, impassível.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. III, terra, pp. 9-13.

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