Não são apenas as experiências em que me alheio da subordinação a essa construção objetiva a que chamo sujeito que me obrigam a pensar que há algo mais para lá da projeção representativa a que chamo mundo. O verdadeiro sujeito indizível, o ponto relativamente ao qual tudo é referido mas que não pode ele próprio ser referido, sob pena de uma imediata falsificação como objeto, projeta o mundo não de uma forma universal e impessoal mas a partir de uma situação. Na base dessa situação, está uma perspetiva que não se vê a si mesma mas apenas o que perspetiva. Essa espontaneidade perspetívica produz o mundo para um lado, mas tem ela própria de advir de algo. Isso é óbvio se pensarmos que essa espontaneidade não se reduz de todo à elaboração racional consciente. Como os deterministas têm dito à saciedade, quem gosta de pensar a ação como resultante da deliberação consciente, deveria explicar os inúmeros casos em que se acaba por fazer o diverso ou até o contrário do deliberado. Veem o melhor e fazem o pior, dizia Spinoza. De facto, deliberam o melhor, decidem o melhor, executam o pior. A consciência é uma película onde aparecem, à partida sem explicação, os fenómenos, quer os ditos externos, quer os ditos internos. Em ambos os casos, a consciência tenta posteriormente explicá-los e, para isso, desenvolve teorias complexas que passam a tutelar o aparecimento posterior de novos fenómenos, dando a ilusão de as suas alegadas leis os estarem a provocar. Na verdade, essas explicações destinam-se a criar a ilusão de que a consciência tudo controla e tudo tem sob o seu poder, quando na verdade ela própria está ao serviço de forças que desconhece. Esse desconhecimento, essa ignorância, esse esquecimento torna-se bem evidente em tudo o que ainda assim escapa ao seu controlo apesar da sistemática falsificação dos próprios dados da consciência. Todas essas histórias que conto a mim próprio não resistem, aliás, muito a um olhar verdadeiramente crítico.
Aliás, a atuação do ser humano no planeta é no seu
conjunto uma manifestação de uma irracionalidade de tal ordem que não é
possível deixar de perguntar onde está essa racionalidade de que o homem tanto
se ufana. Essa atuação é a soma de miríades de pequenos atos, cada qual
motivado por apetites cegos que a mais pequena deliberação teria detido até
mesmo para a satisfação sustentada dos apetites. Outra forma impessoal de
verificar essa incapacidade da consciência é evidente no facto de a maioria das
pessoas não ser capaz de explicar antes o que acabará por fazer depois não
apenas num ato, mas num projeto mais amplo ou até na própria vida. Pode-se
explicar as alegadas intenções conscientes, mas estas raramente correspondem ao
que se acabará por fazer, mesmo que nenhum obstáculo social ou físico se
coloque no seu caminho. Depois, arranjam-se com maior ou menor facilidade
explicações ou justificações que se alegará, quase sempre, que estiveram
presentes desde o início. Isso, aliás, evidencia que a má-fé da consciência é
estruturante da própria consciência. Como não vejo razões para supor que não se
esteja convencido do que se diz, isso significa que a má-fé da consciência está
ao serviço de uma outra instância da qual a consciência não é senão o
instrumento. Toda a mentira é motivada e esta ilusão que a consciência lança
sobre si mesma está certamente ao serviço de motivos que, como não são
conscientes, deverão radicar noutra instância.
No pensamento ocidental, a necessidade desta
suposição tem sido referida várias vezes. Conforme o ponto de vista adotado, a
designação e a conceção de tal instância altera-se: ápeiron, força primitiva, númeno, vontade metafísica, dionisíaco, id, ser (e não mero ente), etc. São
tantas outras tentativas desajeitadas de dizer o indizível, o que sempre que se
diz se falsifica, mesmo que fosse dito como música. Isso não significa que se
tratem de tentativas inúteis ou esforços desperdiçados. Tal como é dessa instância
que provém a espontaneidade subjetiva e, como tal, a própria projeção do mundo,
ela é um manancial inesgotável para se produzir mais mundo. O universo das
representações é uma película que é projetada pelo eu. A explicação dessas
representações não pode ser encontrada nelas próprias. Para explicá-las, seria
necessário, de algum modo, perfurar a película das representações para atingir
o fundo de onde emerge o sujeito, ao serviço do qual estão os seus desejos, os
seus medos e as suas ações. É isso que todas essas tentativas intentam e, ao
fazê-lo, muito embora falhando miseravelmente no seu desígnio último, acabam
por enriquecer o mundo com novos objetos que contribuem para uma maior, embora
sempre precária, inteligibilidade do mundo. Mas, para lá deste enriquecimento
do mundo, depressa o sujeito regressa ao esquecimento da sua própria pertença.
O sujeito pode ser visto como ponto perspetívico, como limite do mundo das
representações porque é visto a partir deste e como referencial presente em
toda a projeção representativa. O esquecimento do seu fundo originário
indizível e irrepresentável agrava-se ao se objetivar o sujeito como substância
pensante ou outro qualquer seu avatar da metafísica e da ciência que se supõe
empírica. Porém, na redução de toda a realidade à operatividade que se tornou
característica desta última, ocorreu um aprofundamento do esquecimento até ao
ponto de se esquecer o próprio originário derivado do mundo na subjetividade,
um esquecimento do esquecimento como foi dito por um célebre autor embora no
contexto de uma abordagem ligeiramente diversa. Tal forma radical de alienação
corresponde à voragem da época atual e, procurando-se apresentar como
realização suprema da racionalidade, é na verdade a forma mais extrema de
loucura.
Isso a que o sujeito pertence e de que está
esquecido eu chamo terra. Não pretendo, com essa designação, identificar um
objeto. Trata-se de um símbolo do anterrepresentativo e até do antessubjetivo
que determina o sujeito de forma insondável. Não designa o planeta, mais um
objeto manipulável, nem sequer o utiliza como símbolo. Também não designa o
objeto solo, mas é aí que procura a abertura simbólica, no solo de que
dependemos, no fundo da vida que servimos, nas verdadeiras forças que nos
animam – e talvez aluda vagamente à presença que nos possibilita. Quando se
considera terra, solo, vida e força como objetos, já não se está a aludir a
essa terra a que essencialmente pertencemos, pois transformamos tudo isso em
propriedades que nos pertencem e que podemos considerar nossos recursos e
utensílios. Trata-se de um símbolo da incompletude radical da determinação
subjetiva, para o facto do discurso não conseguir dizer tudo e para a
constatação de que só muito forçadamente, ocultando todas as incongruências, se
pode considerar explicado o que emana do sujeito. O sujeito desenraizado e
pretensamente absoluto da metafísica, incluindo esse supersujeito, modelo de
todos os sujeitos, representado em Deus, é um velamento sistemático de uma
pertença mais profunda indizível mas suscetível de ser escutada. A escuta da
terra faria retornar o sujeito à sua poética habitação que o libertaria da
voragem extrema da loucura a que se entregou nos últimos séculos. A superação
da arrogância subjetiva ligar-nos-ia ao projeto eventualmente cego da vida a
que nunca deixámos de pertencer e permitiria enriquecer o mundo pela
consciência da pertença, pela alimentação de sentido e pela experiência da
sacralidade imanente de toda a existência.
Sem comentários:
Enviar um comentário