"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O silêncio devolve-nos ao vazio original


O silêncio devolve-nos ao vazio original

o vazio de que procuramos escapar

pelo ruído pela agitação

apenas para o adensar cada vez mais

até o tornarmos espesso em trevas de carvão

que nos impedem respirar liberto qualquer ar

enterrados em toneladas de aflição

 

Por vezes o silêncio silencia a voz

que parece nunca se calar dentro de nós

deixando apenas o hausto

com que eternamente se deseja ter

tudo volúpia iguarias fama ostentação e fausto

por essencial e irremediável deficit de ser

 

Aí se encontra o vazio original

sem forma ou rosto sem bem ou mal

que impele tudo e todos numa diferença sempre igual

numa desmesura sem princípio ou fim

fragmentada delimitada quase contida

nas infames perversões que habitam cada qual

cada uma mascarando-se numa finalidade definida

 

Assim se sujeita o sujeito a uma eterna sujeição

escravo desse vazio incompreensível

pelo qual é incontrolavelmente determinado

sem consciência disso mas tão-só do fim

como se fosse coartado não pelo desejo mas pelo desejado

quando este é só pretexto para se aliviar

da insuportabilidade de se ter origem na eterna falta

que jamais se saciará com qualquer alvo

mesmo em delícia que a gente toda exalta

 

E o abismo em que tudo se inicia

é o mesmo em que tudo afinal acaba

com a diferença do inicial dar permissão

a mil e uma formas de ilusão

não consentidas pelo terminal

– para quê? reflete a voz

– para quê? ecoa a vista

– para quê? sempre sós

– para quê? perde-se a pista

e fica enfim no fim tão só a forma geral do questionar

sem já se saber ao certo o que se estava a perguntar

 

Refrata-se a existência em mil tonalidades

a partir da sempre mesma e sempre igual eterna obscuridade

não há que ter terror do final

não mais que a perdida unidade

para os fragmentos que a temem endoidecidos

como se perdessem algo ao acabarem falecidos

– perdida apenas a ilusão

de ser singular e projeção

uma ânsia de afirmar não se sabe o quê

sem sentido ou razão que não o hausto

que ninguém reconhece que ninguém vê

– de onde veio? existe porquê?

 

De onde proveio tão massivo erro?

De que realidade foi decretado este desterro?

Perante mim abre-se o vazio

desejo por fim o seu abraço frio...



© Joaquim Lúcio, 2020

1 comentário:

  1. Há tantos silêncios diferentes, uns terríveis, outros maravilhosos. E depois também há este silêncio original-terminal de que fala o poema, que origina tudo e e de tudo se recolhe.

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