"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 21 de novembro de 2020

Há vida nas paredes


Há vida nas paredes,

desconexões existenciais,

tremores repercutidos por incógnitos neurónios,

doenças e tumores, infeções banais,

medos de solidão, procuras entrecomunitárias,

asceses, graus estéticos, materiais,

no seu frio, entrecomunhões solidárias.

Há vida nas paredes e há muito mais:

resistências incógnitas à degradação,

maquilhagens, desvelamentos e erros,

místicas, segredos sensuais ou sedução,

poros esgotando-se suores,

marcas profundas de ódio ou de paixão,

angústia ou saudade de outros tempos melhores

e, sobretudo, delas chagas abertas na nossa imaginação.

Há vida nas paredes e há também morte,

pó de eras, ruínas, desolação,

cortes brutais, fendas, terror ou degradação,

colapsos súbitos ou eternizações moribundas,

condenações capitais, embalsamentos, mumificações,

esqueletificâncias, túmulos ou fossas comuns,

e ilusões, como sempre, de eternizações

como se ignorada a eternidade de nenhuns.

Há vida nas paredes e, também, diferença,

modificações abruptas, meninices ou adolescências,     

velhices prolongadas, criatividades, duvidosos gostos, 

de doçuras e nobrezas a temores ou violências,

fealdades inatas ou impostas por desgostos,

vacuidades, aprendizagens, saloiices e degenerescências,

posições sociais diversas, decoros e ordinarices,

bichices, bichices...

Há vida nas paredes e muito mais entre elas:

não só sinais de trânsito e polícias,

não só sarjetas, becos e ruelas,

falo de lascívia, impondo-se brutal ou babando-se malícias,

inexplicitada em tácito assentimento universal,

falo de escuridão, de covardia,

de asco, dissimulação, bastardia,

a regressão de cada sonho à traição de cada dia.

Há vida nas paredes, mais nelas do que em nós:

nós perdemo-nos por elas existindo emparedados

– nossa coragem são elas – nelas escrevemos nossa voz –

vivemos para as construir, por elas encomendados,

são mesmo a nossa existência quando ficamos a sós –

tememos estar fora delas, fora – todos aterrorizados!

dependemos delas, matamos por elas, morremos por elas

e ainda assim ansiamos continuamente tornar

nossas pedras tumulares quotidianas mais eficientes ou belas...

Há vida nas paredes – a alguém demos a nossa –

esgotámo-nos na sua intensiva criação

– ansiando, talvez, por ter um bom motivo para a nossa eterna troça,

erguemos materialmente a nossa vida à custa da nossa anulação

– morremos de cidade e orgulhamo-nos de a ter nossa,

buscamos nela o sentido, dedicamos-lhe paixão,

nunca deixamos paredes sem profunda comoção

– sentimos obstruídos sentidos misteriosos –

haverá outros ouvidos, outras línguas, outros olhos?     

haverá outras paixões, outros fins, outras experiências?

haverá outras maneiras de crescer, haverá outras vivências?

pouco interessa a nossos sentidos cimentados   

neste sentir possível em rigidez e obscuridade  

– nossas sensações – conceitos abstratizados –  

impõe-se na sua objetiva universalidade

– sentir e pensar dentro da metodologia

primeira e essencial da compartimentalidade

como objetivo fulcral da sabedoria

transcendentalizam a existência

pondo em particular evidência

a supremacia total da técnica e da ciência

sobre a vivência tosca e instintiva comum

fundamentada na ânsia de contentamento

ignorante da existência de contentamento nenhum

ou, tão-só, o dado por continuação e crescimento

da voragem desregrada do consumo

assumido como construtivo ingresso

nos ideais da urbanidade, da indústria e do progresso.

Paredes como explanação e resumo

das mentiras que se escondem sob mitos,

resignações disfarçadas por dar gritos,

ânsias de alegrias a garantir tormento,

receitas espirituais para manipular alheamento,

desejos de libertação a instituir prisões,

instintos selvagens de poderio farsando-se revoluções,

a satisfação do frustrado

em pisar o mais fraco que está ao lado,

principal razão para a institucionalidade do poder,

procurar seguranças em seguras aniquilações,

avançar conformado e dizer-se a aprender,

compreender-se derrotado e ensinar – é isto a vida –

violar, possuir, perverter, alucinar-se ferida,

idolatrar obsessões patológicas como felicidade

e sublimar o egoísmo possessivo como amor

– constante defraudar como absoluta verdade,

glorificação de cada missão sem sentido,

em fuga quer à vida, quer ao suicídio – tudo resumido.

Há vida nas paredes e paredes,

a justificação do que foi mentido,

a subserviência tida como natural

do construtor à construção ideal,

manutenção da ordem entre os acidentes

que percorrem a existência das paredes,

vermes carenciados, dependentes

que buscam redenção para o seu medo,

um sentido para a vida,

uma divindade finalmente definida.

Vida nas paredes nos limites da esquizofrenia

instituída universal

– súbita paralisia,

movimento paredal,

revolução copernicana

da experiência quotidiana

com o condicionamento já vital

da sensação permanente de que tudo correu mal

e corre e será sempre pior

– a experiência o diz,

é fundamento existencial,

nunca ninguém será feliz.

 

Para quê então ser e vivência?

Em que sentido os entes se demoram?

Só este:

As paredes são a existência

e nós os alimentos que devoram. 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. I, ausência, pp. 164-167.

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