"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Sonetos para a cura da inquietação

  

Escondo-me no escuro do calor

aninho-me sob a roupa contra o frio

afasto-me da incidência aqui da luz

aparto-me da busca insana pela festa

 

Fico assim seguro na rotina

conto-me a mentira do quotidiano

É certo que imagens se sucedem na retina

mas não causam prazer impacto ou dano

 

Retorno eterno à neurastenia

se se torna indiferente estar lançado

Desejo de eterna anestesia

 

dissolver sujeito em todo o lado

Aí me espraio sem comunicação

Aqui germinam silvas de maior inquietação

 

*

 

Se a natureza tem horror ao vácuo

é natural acabar por me mover

mas lembro-me de andar a passear

e não vejo porquê voltá-lo a fazer

 

O espetáculo do mundo é deprimente

e tende inexoravelmente para a deterioração

Tão-pouco atentar ao pormenor é diferente

só evidenciando mais a desconexão

 

Antes de morrer de vez a carne

morre pouco a pouco o sentido

que era afinal apenas presumido

 

Quanto mais o olhar estacava no passado

mais se desfazia o manto líquido sobre o sólido

que encobria a proliferação selvagem do insólito

 

*

 

No órgão tocava-se uma sonata de piano

A jovem cortava-se com uma tesoura de poda

Passava um homem a dizer que era estranho

Crianças estavam paradas dispostas numa roda

 

A assembleia dos neurónios decide a descarga

Ninguém percebe o que desencadeou o ataque

O rapaz queria o brinquedo que logo larga

Marca-se o golo com a indiferença da claque

 

Amanhã repetir-se-á a determinação causal

e será como sempre tudo igual tudo igual

tudo o que ocorrer continuará a ser alheio

 

As águas do mar invadirão as ruas

cogumelos eclodirão purgando o meio

suceder-se-ão luas após luas

 

*

 

A distância mais curta entre dois pontos é sempre curva

A uniformidade desfila exército a calcar o inusitado

A água saudável não deixa de ser turva

A diferença parece idêntica em todo o lado

 

O teatro do absurdo preenche o quotidiano

até o desconexo porque habitual parecer articulado

Padroniza-se a diferenciação por todo o ano

e face ao falhanço aldraba-se o resultado

 

A inquietação agrava-se nos interstícios

apesar da alienação do mundo inteiro

O alheamento concentra-se nos vícios

 

e deixa sempre aos outros o lance derradeiro

Há porém ravinas abismos precipícios

Talvez aí se encontre algo verdadeiro

 

*

 

A única matriz é desejar matriz

proibir o caos de tudo em volta

oferecer receitas para ser feliz

silenciar a possibilidade de revolta

 

A vigilância pela regularidade é opressiva

forja a norma sem qualquer enunciado

mas a génese é na verdade subjetiva

radica no ser-se indivíduo apartado

 

Afinal urge acalmar a inquietação

reconduzir a cisão à conformidade

fornecer uma fraude de inclusão

 

Tudo enfim passa a ser o mesmo

uma sopa de massa sem vontade

triturar a carne em torresmo

 

© Joaquim Lúcio, 15/8/2024

Sem comentários:

Enviar um comentário

Adverso o verso

  Adverso o verso no reverso do diverso por incapaz de reduzir o díspar ao igual Parece pernicioso pior pérfido perverso à sentença da...