Um universo ainda, nada menos que um
universo entre um sonho de uma noite de verão e um gato que provoca o
desencontro eterno E a verdade é que lá o colocaste, como uma ameaça, um
pressentimento de mau agouro, uma inquietude de precaridade inevitável em
qualquer satisfação onírica Depois, afastaste-o como, num sonho que se quer
feliz, se afastam as sombras que nele se insinuam Mas não o apagaste, deixaste-o,
por trás da película de um idílio, como símbolo do entretecer constante e
insidioso de miríades de forças ignotas E a verdade é que o malogro é
inevitável e a felicidade tão-só uma ilusão, e a verdade é que um sonho de
verão é apenas lenitivo de uma existência de aflição Ensina-me como é possível
um sentido já nem peço uma redenção apenas um sentido um qualquer sentido
surreal hiperreal realreal infrarreal realdaputaqueopariu realdealgumaforma ah
realidade que se sente enfim anal enfim racional enfim falovaginal enfim retro
inflexão da incapacidade de ser expressão Ensina-me algo mais que um sujeito
que se ilude por desviar o olhar da consciência da realidade crua Troquei há
muito a possibilidade das crenças singelas pela dilaceração da crítica infinda
Não posso voltar atrás, trocar-me na loja de conveniência da infância por um eu
pacato e aborrecido, com a serenidade perene de quem se cega de qualquer olhar
que indague, analise, interprete até penetrar as fontes do aparente Resto-me
com este eu, um eu infinitamente vergastado, uma fragmentação que nunca mais
acaba, nunca mais cessa, nunca mais se interdita, eternamente esquartejado pela
disparidade dos desejos, sempre a renascer menino, sempre a confrontar-se
adolescente com o intrínseco vazio, sempre desvairando madura absurdidade até se
dispersar mesquinho na gulodice de ter e haver e sempre sempre sempre morrendo
nos confins das palavras que não valem nada, ditas por uma boca emudecida para
todos os ouvidos ensurdecidos pelo ruído produzido pela máquina da distração
universal de tudo quanto seja próprio e autêntico – eu sou o que nunca poderei
ser por precisar de funcionar como mais uma peça de máquina, como um não ser,
como uma nulidade habitada por universos de sentido e verdade Posso contar
histórias como os outros, posso me estupefaciar, posso fingir que tudo decorre
otimamente, posso mentir, posso ludibriar Mas o vazio absoluto de uma
inexistência com consciência de estar a servir absurdos que não servem para nada,
nem para os estúpidos desígnios da pseudoelite ignara que só escava a sua própria
sepultura – não consigo, até para mim há limites, até para mim há umbrais
inalcançáveis... Pensa-se o niilismo como o fim Não, o niilismo é uma
esperança desesperada O fim é já nem sequer ser possível niilismo O fim são
todos os gatos que escondem todas as possibilidades de encontro em todos os
arbustos do devir insano, até tudo ser indiferente, obliterando todo o desejo e
não sendo já possível qualquer dano, enfim farrapo, enfim dejeto, enfim
inorgânico – a serenidade enfim da desolação do estéril mineral A vida nunca
foi um sonho, nem sequer tão-só um pesadelo, a vida foi um engano, uma reação
química inusitada sempre em busca do impossível e sempre pronta a regressar ao
eterno silêncio do vazio, o abismo que a consciência teme porque a atrai, dissociação
de uma fugaz ilusão, a vertigem perante o precipício, terror e libertação, retorno
sempre ao início
Sim, o destino que se aceita, sabendo que essa aceitação é alívio, levemente triste, leve ou profundamente irónico, destino com que se joga um jogo antigo que nos anima um pouco nas horas de repouso, como aos jogadores de xadrez do outro, mas sem a sua indiferença. Sim, a tua lucidez que guia, mesmo quando parece só desespero e ainda é luz e coragem. Um sentido? Somos grãos de areia, mas podemos brilhar ao sol por um tempo. De formas muito diversas. Não nascemos iguais e há igualdades pelas quais não vale a pena lutar. Por outras, sim. A praia há de ficar. Outro gato roubará outras mensagens. Por momentos o riso de um jovem há de acender o riso de outro jovem numa noite luar. Ilusão porquê? Porque termina? Tudo há de terminar. Outras gaivotas, de outra ninhada, encherão de mar com os seus gritos, as rua da cidade. Morreremos. O promontório sobre o Atlântico há de resistir mais tempo. Arrastados na mesma onda, vazaram-nos sobre a vida e no tempo desta nossa maré é aqui que estamos a viver ao sol e às intempéries, como sabemos e dentro dos limites que fomos descobrindo. Haverá outras marés.
ResponderEliminarEstou há vários dias a fazer documentos absurdos, uns atrás dos outros, apenas porque políticos desonestos procuram obter a aceitação do povo castigando professores que se atrevam a continuar a ensinar. Nada tenho contra lenitivos a tal absurdidade. Mas um alívio momentâneo não é felicidade. A ilusão não está no caráter momentâneo, está na própria natureza desse alívio. Porém, os momentos que eu próprio descrevo a que as pessoas chamam eternos poderão ser um simulacro de felicidade - mas devem ser visados? Acho que nunca procurei a felicidade e tropecei nela de vez em quando, apenas para a descobrir mais tarde como uma de várias formas de falsidade. E aí a ilusão também se encontrava na própria natureza e não no facto de ser efémera.
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