Qualquer outro é uma representação minha. Aliás, não é, no fundamental, diverso de outras representações. Nos sonhos, nas alucinações induzidas por drogas, nas psicoses, etc., posso interagir com outros que acabo por concluir, noutras alturas ou através de interações com ainda outros, que não passavam de produtos da minha imaginação. Posso ter conversas com esses sonhos e até interagir de formas mais íntimas. Por outro lado, muitas das interações com outros que não são supostamente alucinações são tão estranhas ou tão efémeras que podem parecer mais irreais do que as que posso ter com fantasias. Certas personagens de jogos de computador já parecem mais reais do que certas pessoas com que supostamente contacto. Um psicótico pode ter longuíssimas relações com outros supostamente imaginários. E quem me pode garantir que eu não sou psicótico?
Como é óbvio, o facto de existirem
outros tão desagradáveis que não compreendo como uma mente poderia ser tão
perturbada ao ponto de, mesmo inconscientemente, os criar nada altera. O mesmo
acontece nos sonhos e nas alucinações. Parece evidente que ninguém acredita no
solipsismo. Para que valeria a pena falar com outros, sofrer com outros,
trabalhar com outros, defender-me de outros, acasalar com outros, ter outros
como filhos, se não passassem de fantasmas oníricos? Para me entreter? Parece
absurdo. Porém, o único ser de que eu posso ter absoluta garantia de em tal não
acreditar sou eu. Ora, se me verifico isolado na minha crença, a não ser que
suponha o que exatamente está em questão, a existência de outros sujeitos, não
tendo nenhuma garantia de não ser louco, a minha crença verifica-se muito
rapidamente um muito frágil suporte.
No entanto, toda esta situação solipsista resulta
de se supor que, pelo contrário, o eu não é suscetível de qualquer dúvida. Ora,
aí está uma fortíssima crença na gramática cuja sustentação é difícil perceber.
De facto, eu refiro tudo a mim. O “eu penso” acompanha cada uma das minhas
representações. Porém, o que é isso que pensa? É alguma coisa determinada, com
características identificáveis ou propriedades que se possam deduzir das suas
ações? As minhas próprias ações divergem tanto de instante para instante e são
de tal forma objeto de questionação para mim próprio que dificilmente poderiam
constituir um suporte para a predicação autêntica do sujeito. Por outro lado,
seja de que forma eu considere o sujeito é sempre como objeto e não como
sujeito, ou seja, não pelo que se supõe que é e dá origem à situação
solipsista. Como objeto, está exatamente na mesma situação do outro. Além
disso, mesmo que reúna todas as ocorrências que refira especialmente a mim,
continuo longe de encontrar a unidade de uma coisa que esteja na origem de
todas essas ocorrências. Existe uma tão grande variedade de fenómenos que
suponho internos como a que existe nos que suponho externos. A coerência do que
penso é, por sua vez, mais uma convicção vaga que uma realidade rigorosamente
verificada e, se existisse, apenas confirmaria que ando a contar uma história
mais ou menos fixa a mim próprio para me convencer de mim próprio. Quanto a uma
suposta unidade transcendental subjetiva, para lá de se identificarem uma série
de faculdades universais relativas à estruturação do pensamento humano que, no
caso de existirem outros humanos, em nada me identificaria especificamente a
mim, acaba por se resumir ao pressuposto “eu penso”, supondo que todas as
ligações que estabeleço utilizando as categorias são sempre ligadas na mesma
unidade que exatamente está em questão. Por sua vez, a síntese do diverso na
consciência intencional mostra, mais uma vez, a unidade do objeto e não do
sujeito, e a suposição que o sujeito em todas as diversas objetivações
temporais se liga da mesma forma geral que os objetos ou é uma suposição
genérica, ou corresponde simplesmente à ligação global a que se chama mundo. Em
última análise, a unidade subjetiva da consciência, contraposta ao mundo
enquanto objeto global, acaba por parecer antes de mais uma construção psíquica
pela qual me conto a minha identidade a mim próprio, construindo a ficção da
coisa que eu sou, muito embora essa história vá ela própria mudando durante a
vida. Na verdade, eu nada sei do que sou a não ser pelo conjunto dos objetos
ligados na consciência, ou seja, o mundo, se se quiser, do meu ponto de vista
subjetivo (como se soubesse da existência de outro).
Desta forma, a tutela subjetiva do eu sobre as suas
representações, incluindo os outros, é vazia porque nenhum conteúdo se consegue
dar a esse eu que não o das suas representações e isso não identifica nenhuma
coisa ou substância que fosse o suporte de tudo. Essa fantasia do primado do eu
contraposto ao mundo (como ainda mais a do mundo independente do eu e que o eu
absorveria) deu origem à consciência de um sujeito como objeto desenraizado que
poderia fazer tudo pois não estaria dependente de nada. Como se poderia superar
este egocentrismo e, nas versões menos ingénuas, solipsismo? O outro é encarado
como mera representação e mesmo se considerado como outro sujeito, tal
subjetividade é inacessível. Através do amor? O amor pode ser (e é em
muitos casos) a versão mais extrema
desse egocentrismo ou solipsismo. Muitas formas de amor consistem
exclusivamente na idolatria de uma imagem construída pelo sujeito psíquico.
Mesmo as experiências de contrariedade no amor nada alteram, como já se viu que
os pesadelos nada alteram. Pelos transes a que chamam meditação, porventura por
desconhecerem o significado e origem da palavra latina? Se eu dissolver a
consciência intencional numa perceção global indiferenciada, o que é se conseguiu
com isso: uma perceção global indiferenciada tão solipsista ou mais do que uma
diferenciada. Se se considera que isso permite superar a subjetividade
egocentrista ou solipsista, então ficar muito alcoolizado seria pelo menos um
passo intermédio para isso, visto reduzir em muito a perceção objetivamente
diferenciada. Outras modalidades desta dita meditação não introduzem diferença
nenhuma, a não ser pelo facto de dizerem fazer outra coisa (até o oposto) que
não aquilo que foi criticado, fazendo exatamente o mesmo.
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