"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 12 de dezembro de 2020

Eu e o outro

 

          Qualquer outro é uma representação minha. Aliás, não é, no fundamental, diverso de outras representações. Nos sonhos, nas alucinações induzidas por drogas, nas psicoses, etc., posso interagir com outros que acabo por concluir, noutras alturas ou através de interações com ainda outros, que não passavam de produtos da minha imaginação. Posso ter conversas com esses sonhos e até interagir de formas mais íntimas. Por outro lado, muitas das interações com outros que não são supostamente alucinações são tão estranhas ou tão efémeras que podem parecer mais irreais do que as que posso ter com fantasias. Certas personagens de jogos de computador já parecem mais reais do que certas pessoas com que supostamente contacto. Um psicótico pode ter longuíssimas relações com outros supostamente imaginários. E quem me pode garantir que eu não sou psicótico?

            Como é óbvio, o facto de existirem outros tão desagradáveis que não compreendo como uma mente poderia ser tão perturbada ao ponto de, mesmo inconscientemente, os criar nada altera. O mesmo acontece nos sonhos e nas alucinações. Parece evidente que ninguém acredita no solipsismo. Para que valeria a pena falar com outros, sofrer com outros, trabalhar com outros, defender-me de outros, acasalar com outros, ter outros como filhos, se não passassem de fantasmas oníricos? Para me entreter? Parece absurdo. Porém, o único ser de que eu posso ter absoluta garantia de em tal não acreditar sou eu. Ora, se me verifico isolado na minha crença, a não ser que suponha o que exatamente está em questão, a existência de outros sujeitos, não tendo nenhuma garantia de não ser louco, a minha crença verifica-se muito rapidamente um muito frágil suporte.

No entanto, toda esta situação solipsista resulta de se supor que, pelo contrário, o eu não é suscetível de qualquer dúvida. Ora, aí está uma fortíssima crença na gramática cuja sustentação é difícil perceber. De facto, eu refiro tudo a mim. O “eu penso” acompanha cada uma das minhas representações. Porém, o que é isso que pensa? É alguma coisa determinada, com características identificáveis ou propriedades que se possam deduzir das suas ações? As minhas próprias ações divergem tanto de instante para instante e são de tal forma objeto de questionação para mim próprio que dificilmente poderiam constituir um suporte para a predicação autêntica do sujeito. Por outro lado, seja de que forma eu considere o sujeito é sempre como objeto e não como sujeito, ou seja, não pelo que se supõe que é e dá origem à situação solipsista. Como objeto, está exatamente na mesma situação do outro. Além disso, mesmo que reúna todas as ocorrências que refira especialmente a mim, continuo longe de encontrar a unidade de uma coisa que esteja na origem de todas essas ocorrências. Existe uma tão grande variedade de fenómenos que suponho internos como a que existe nos que suponho externos. A coerência do que penso é, por sua vez, mais uma convicção vaga que uma realidade rigorosamente verificada e, se existisse, apenas confirmaria que ando a contar uma história mais ou menos fixa a mim próprio para me convencer de mim próprio. Quanto a uma suposta unidade transcendental subjetiva, para lá de se identificarem uma série de faculdades universais relativas à estruturação do pensamento humano que, no caso de existirem outros humanos, em nada me identificaria especificamente a mim, acaba por se resumir ao pressuposto “eu penso”, supondo que todas as ligações que estabeleço utilizando as categorias são sempre ligadas na mesma unidade que exatamente está em questão. Por sua vez, a síntese do diverso na consciência intencional mostra, mais uma vez, a unidade do objeto e não do sujeito, e a suposição que o sujeito em todas as diversas objetivações temporais se liga da mesma forma geral que os objetos ou é uma suposição genérica, ou corresponde simplesmente à ligação global a que se chama mundo. Em última análise, a unidade subjetiva da consciência, contraposta ao mundo enquanto objeto global, acaba por parecer antes de mais uma construção psíquica pela qual me conto a minha identidade a mim próprio, construindo a ficção da coisa que eu sou, muito embora essa história vá ela própria mudando durante a vida. Na verdade, eu nada sei do que sou a não ser pelo conjunto dos objetos ligados na consciência, ou seja, o mundo, se se quiser, do meu ponto de vista subjetivo (como se soubesse da existência de outro).

Desta forma, a tutela subjetiva do eu sobre as suas representações, incluindo os outros, é vazia porque nenhum conteúdo se consegue dar a esse eu que não o das suas representações e isso não identifica nenhuma coisa ou substância que fosse o suporte de tudo. Essa fantasia do primado do eu contraposto ao mundo (como ainda mais a do mundo independente do eu e que o eu absorveria) deu origem à consciência de um sujeito como objeto desenraizado que poderia fazer tudo pois não estaria dependente de nada. Como se poderia superar este egocentrismo e, nas versões menos ingénuas, solipsismo? O outro é encarado como mera representação e mesmo se considerado como outro sujeito, tal subjetividade é inacessível. Através do amor? O amor pode ser (e é em muitos  casos) a versão mais extrema desse egocentrismo ou solipsismo. Muitas formas de amor consistem exclusivamente na idolatria de uma imagem construída pelo sujeito psíquico. Mesmo as experiências de contrariedade no amor nada alteram, como já se viu que os pesadelos nada alteram. Pelos transes a que chamam meditação, porventura por desconhecerem o significado e origem da palavra latina? Se eu dissolver a consciência intencional numa perceção global indiferenciada, o que é se conseguiu com isso: uma perceção global indiferenciada tão solipsista ou mais do que uma diferenciada. Se se considera que isso permite superar a subjetividade egocentrista ou solipsista, então ficar muito alcoolizado seria pelo menos um passo intermédio para isso, visto reduzir em muito a perceção objetivamente diferenciada. Outras modalidades desta dita meditação não introduzem diferença nenhuma, a não ser pelo facto de dizerem fazer outra coisa (até o oposto) que não aquilo que foi criticado, fazendo exatamente o mesmo.

        Não o amor em geral, mas determinados estados do amor, não permitindo aceder ao outro como sujeito, o que é obviamente impossível sem recorrer a possibilidades fantásticas, podem superar, momentânea ou temporariamente, a sujeição à crença no sujeito, a redução à subjetividade. Como? Alcançando um estado em que já não haja noção do eu e do próprio, e em que o que se pensa como próprio do outro já não se distinga do que é próprio do sujeito. Não sendo uma abertura ao outro, é através do outro que é operada essa dissolução temporária do eu. Dessa forma, parece constituir-se um portal temporário para o antessubjetivo, o si. Poder-se-á dizer que o outro continua a ser mera representação que, temporariamente, se dissolve na consciência tal como o próprio sujeito enquanto objeto. É verdade. Mas, dessa forma, o outro acaba por tornar‑se símbolo de uma abertura para lá do sujeito e, logo, indício que há mais do que as projeções do sujeito. Símbolo é aqui entendido no sentido religioso de um verdadeiro portal para uma dimensão sagrada mas que, neste caso, nada tem de transcendente, ao menos enquanto oposto a imanente, estando já sempre aqui e sendo ocultada pelas projeções subjetivas. Tal estado não é possível no sonho que consiste exclusivamente em projeções subjetivas, por muito fantásticas ou disparatadas que possam ser. Esses momentos que parecem transcender a temporalidade subjetiva (do projeto que dá continuidade temporal ao próprio sujeito) são usualmente qualificados pelas pessoas como eternos, por muito efémeros que sejam. Porquê? Porque, de facto, superam a temporalidade psíquica pela qual, para lá do presente imediatamente experimentado, se concebe o passado e o futuro. Ao superarem essa temporalidade pela qual se dá continuidade e objetividade à consciência intencional, as pessoas sentem-se como se partilhassem o eterno agora que se atribui a Deus e só conseguem expressar essa absoluta diferença em relação à experiência ordinária dizendo tratar-se de momentos eternos.

Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. II, abertura, pp. 41-44

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