"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Golem

 

Escamas endurecidas pelo decurso dos anos

enrijecem uma pele outrora elástica

até membros, ombros, torso se moverem

com automaticidade mecânica ou plástica.

 

Qualquer coisa de inorgânico cresce em mim,

qualquer coisa de rocha ou de metal,

como alquímica transmutação rumo ao fim

numa reversão cruel da pedra dita filosofal.

 

Golem primevo, grosseiro e brutal,

amplificado o peso por cem, por mil,

cada passo desfere um golpe sísmico

tentando regresso à terra, seu antro, seu covil.

 

E a rigidez transmite-se ao pensamento,

torna hirtas, baças, cúbicas as ideias,

reações embotadas, atrito, arrastamento,

mente a morar no meio de múltiplas cefaleias.

 

As emoções estão rombas, desgastadas,

sem intensidade exceto se redundantes:

ansiedades estéreis, insónias extenuadas,

rancores antigos e obsessões frustrantes.

 

Se parecem iguais ao passado as sensações,

onde está a frescura das manhãs claras,

o brilho endoidecido dos límpidos verões,

noites envolventes, brisa ondulante das searas?

 

As palavras inertes que por cá inda estão

não deslizam, dificilmente se veem deslocadas,

como plúmbeas peças de pesada construção

só com violência no lugar devido colocadas.

 

As palavras pesam e não de sentido ou gravidez,

incapazes de gerar novas inflexões, novas expressões,

repetidas à insignificância dada a escassez,

inaptos sortilégios, impotentes evocações.

 

Onde as palavras que antes floresciam nos meus lábios?

Onde as imagens que espontaneamente fletiam mente?

Onde as reflexões que pareciam emanar de arcanos sábios?

Onde a leveza que me fazia parecer levitar aereamente?

 

Em lado algum, nem enterradas na lembrança,

que a própria memória se petrifica rigidez

e na mente já nem habita qualquer esperança,

mesmo fantástica, de viver dinâmico outra vez.

 

Agarro e puxo o pé para o calçar com esforço,

alço o corpo mastodôntico que me resiste inerte,

arrasto os pés cansados enquanto torço o torso

e não encontro roupa que não me oprima e aperte.

 

A natureza misericordiosa preliminarmente me prepara

para o regresso à lama inorgânica de que bem cedo provim,

seca agora, humidade inútil numa mente tornada tão ignara,

fazendo desejar fim à pouca consciência que ainda guardo de mim.    

 

Dia a dia, com os movimentos cada vez mais trôpegos,

articulações doridas, solidão, de alimentos sabor ruim,

já sem alvos, já sem gozos, já sem forças, já sem fôlegos,

à petrificação gradual que à terra me devolve eu digo sim.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IV, petrificação, pp. 235-236

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