"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Para lá da zona do comércio livre dos corpos

 

Para lá da zona do comércio livre dos corpos,

 para lá da compra e venda de emoções,

  para lá da transação corrente de sorrisos e olhares,

   para lá da troca de ambíguos gestos obscenos,

    para lá da produção em série de lugares comuns

     brejeiros, românticos ou supostamente sensuais,

      para lá da loja de conveniência da concordância e elogio

       para obtenção de prazer fácil de comunhão mascarado,

        para lá do inevitável passeio turístico de sedução

         e da fantasia rebuscada nos escaparates da perversão,

          para lá do jantar de lirismo encomendado,

           para lá da comida rápida do esquema já testado,

            para lá da pornografia do decote estrategicamente colocado,


              para lá do ressentimento e vingança ao marido encornado,

                para lá do pagamento sexual à frustração e rancor,

                 para lá da luxúria, do alívio e da dor,

                  amanhecendo calma sobre o mundo

A verdade do amor.

 

A luz que perpassa na vidraça,

poeira encantada levitando no meio de nada,

aconchegando-se na penugem dormente

de alvos fofos virgens seios

doados a um olhar transfigurado;

Os lábios perenes de um sorriso

dispostos na dádiva de um primeiro eterno beijo;

A convulsão descontrolada das lágrimas

do gume da palavra aguçada;

beicinho descaído na fragilidade

de uma tristeza que se quer consolada;

um corpo que se entrega para sempre

na voracidade imperiosa de tudo ou nada;

as palavras arrancadas da alma

como tiras de carne ensanguentada;

assim como o carinho e o torpor

após uma noite feita clara pelo amor,

são sinais indesmentíveis da verdade

que ecoa perdida entre as paredes da cidade.

 

Poderá o amor perder-se no comércio mais banal?

poderá ser confundido com o engate trivial?

poderá ser transacionado no consumo habitual?

poderá ser corrompido pelo suborno sexual?

poderá ser aviltado como contabilidade venal?

poderá ser experimentado pelo cálculo grosseiro

do aspeto e funcionalidade do produto

equacionando custo e benefício merceeiro

ou a oportunidade em que o prejuízo será menor que o lucro?

poderá ser imitado, reproduzido e divulgado

como uma receita que se pode aviar em todo o lado?

poderá ser transmutado em exercício estereotipado

suscetível de ser até pelo mais boçal praticado?

poderá ser germinado na mentira sempre igual

em que as promessas se vendem num instante acidental,

em que os juramentos se quebram como coisa dispensável

no mercado imediato de sensações passageiras

em que qualquer sentimento é vendido e toda a emoção permutável?

poderá ser cultivado pela hipocrisia mais funda,

transformado numa técnica de sedução e ludíbrio,

pervertido por tibieza ou covardia ou malícia

trocando a frontalidade e coragem da afirmação

pelo comportamento dissimulado do bandido

e o prazer contrabandista da traição?

poderá o amor ser sujeito à poluição,

permeável à lascívia e devassidão,

identificável a um enredo consumível de novela

confundindo a paixão com a escapadela?

poderá o amor ser degradado

ao ponto de ser igual em todo o lado,

com os vícios que toda a gente tem

quando não é capaz de ser mais nada que ninguém?

poderá acaso não ser uma eleição

do que é mais alto e mais além,

mas apenas o produto do sorteio

em que se vê quem, ao calhas, sai a quem? 

poderá ser chamado de assobio

e redutível às meras manifestações de cio?

poderá o amor ser algo idêntico ao que em todo o lado é visto,

sem nada em que se transcenda e que o torne único,

apenas uma relação habitual, apenas isto?

 

Mesmo que lágrimas de sangue

escorram pelas faces do amor

e que rios de desespero

inundem os corpos antes saciados,

mesmo nas garras frias da morte

estrangulando a paixão em agonia,

mesmo nas linhas finas do corte

dos pulsos nus da melancolia,

mesmo no passar e repassar dos anos

numa sempre igual monotonia,

mesmo na sujeição ao peso e ao cansaço

do inevitável dia-a-dia,

 

nunca poderá a verdade do amor

se perder nos abismos da devassidão

ou ser contagiada pelo contacto

com a hipocrisia e a podridão,

nunca poderá ser trivial

a entrega absoluta do amor

nem poderá ser considerada igual

a qualquer comércio de prazer e dor.

 

O amor devassa os horizontes

e perpetua-se na sua duração,

ilumina vales, rios e montes

mesmo confinado numa arrecadação.

O amor transcende o tempo,

faz-se eterno e faz-se dia,

enfrenta qualquer contratempo

mesmo que o espere a agonia.

O amor afirma-se sem pejo

incondicional e sem limite

superior a qualquer medo ou desejo

por mais que este se estenda ou se amplifique.

 

Sentimento criado pelos deuses

no início dos tempos mais sagrados

ofusca qualquer transação profana

mesmo nos locais mais conspurcados.

Puro e inefável,

dos tempos em que o olhar era diferente,

capaz de encantar as pedras e os cardos,

tornando cada lugar e cada instante transcendente,

patenteando o divino, aqui e agora, imanente,

toda a vida consagrada pelo amor

tem em si mesma o seu próprio redentor.

 

Passam os dias, passam os meses, passam os anos,

o encantamento, a ansiedade, a angústia, a frustração,

passa a vida, a frescura, o vigor, a energia,

passa a juventude, a beleza, o entusiasmo, o ardor,

passa o próprio cansaço de passar até não haver mais nada

que não a luz eterna e refulgente do amor.

 

E mesmo nos últimos instantes de agonia,

num sofrimento insuportável para a carne e sangue,

deixado só e moribundo pelos destinos do mundo,

já sem forças para lutar, absolutamente exangue,

o amante olha dentro de si a imagem falecida

da face antiga e olvidada que lhe era querida,

a face íntima, desgastada pelo olhar, da sua amada

e, no seu leito de morte, sem ninguém que o conforte,

resplandece de novo a luz de uma incontida alvorada.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, vol. II, abertura, pp. 168-173

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