"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Em momentos de quase vir a ser

 

Em momentos de quase vir a ser,

eu me recomplico sobre mim,

torço a alma como um trapo

mas, prestes a conseguir,

interrompo-me ou me interrompem a mim...

 

A frustração de falhar sempre

e de me ficar a revoltar,

ridiculamente entre,

apanhado com as cuecas na mão,

entre tapar e mostrar,

em vergonha de não saber o que fazer,

a mais ridícula emoção,

flagrante indefinição de se ser...

 

Falta-me a paciência,

falta-me a decisão,

falta-me a persistência

e a organização,

onde a disciplina?

terei algo a dizer?

o que eu não estou a fazer        

revela-se mais importante...

– tudo me fica a meio,

perdido na irritação

de nada me ser bastante

– preguiça ou dispersão.

 

Quem me dera ser outro enfim...

Sou inquilino de mim:

entre o desejo de enganar o senhorio

e a necessidade de receber a renda,

fujo-me de me entender e perseguindo me policio...

– Haverá alguém que me entenda?

Entender-me-ei eu a mim?

Será toda a gente assim?...

O outro igual ao que eu sou!?

 

Em desejos de ser outro,

eu sinto-me quase a ser,

mas falha-me sempre o encontro,

fico-me sempre em não ser,

sempre um projeto de viver... 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. I, ausência, pp. 131-132

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