"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 12 de dezembro de 2020

Quarta pessoa


   Falo agora da quarta pessoa, falas agora da quarta pessoa, fala agora a quarta pessoa: o absolutamente estranho, sem relação. Tão pouco nada, tão pouco união. Nem ausência, nem superação. O estranho. Fim de explicação.

Eu – o quê eu sem tu? Poderia haver eu sem relação, um eu cru? O eu vai-se constituindo na idealização do tu, assim se gera fora de si a construção de si. E, porém, do eu não é o tu a sua projeção? Como pode a projeção do eu se situar fora do eu? Mas não será o projetar anterior ao próprio eu, sendo o eu uma projeção tardia? Quem seria? O que seria o que antes do eu o tu projetaria?

Mas a criança toma consciência de si como um ele, a menina, o menino, aquele de quem o tu fala e que aparentemente é ele. A criança tem de aprender a projetar as projeções do tu para se projetar a si. Tu – ele – eu e de novo a pergunta acerca da origem que projeta o tu. O projetar sem identidade, o projetar nu.

Regresso ao eu e à impossibilidade de o projetar. O ele que sou eu não é o eu que projeta o tu. Mas onde está este último eu que nunca se objetiva, que nunca se vê? E, porém, que é tudo o resto senão o que dele se vê? Impossível inerente à realidade da pessoa, cada pessoa se anula na falta de sentido do sujeito, sempre diverso do que se diga dele, sempre fundando tudo o resto, cada imagem, cada conceito, a linguagem – um prolixo sem sentido estruturando-se nas ficções das pessoas. E do impossível inerente à realidade da pessoa, antes e depois, na origem e no fim, a estranheza inestruturável da 4ª talvez não pessoa, talvez única pessoa: as três conduziram, na consciência da falha constante e instante, à impotência da descaracterização, ao estranho.

    A mesmidade como inevitável alteridade não constituiu um primado da alteridade, pois esta mesma emergia de um presentar inapresentável, estranho. Superação da alteridade pela integração da estranheza? O estranho é inintegrável, a tudo estranho, só como estranho anterior a sentido e que resta após desmascarar o absurdo é referível, indiretamente, nunca objetivável, a objeto estranho. Superação? Não. Quando as palavras se exauriram e já não se articulam em sentido, quando soam na inquietação insondável de um pressentimento fugidio e que continua a incomodar sem se poder precisar, quando é melhor calá-las pois tudo nelas faz lembrar não sei o quê que não o que está ser dito, há algo estranho, o quê, não sei. Se o soubesse, não seria estranho. O discurso emudece, a loucura solta-o das palavras, a 4ª pessoa sempre presente no limiar de tudo o que acontece apodera-se dele e tudo o mais se esquece. 

Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IV, petrificação, pp. 198-199

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