"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

se bebo, bebo até cair, até esquecer

 

se bebo, bebo até cair, até esquecer

se fumo, fumo até tossir pulmões

se fodo, martelo até já não saber que raio estou ali eu a fazer

se como, degluto numa só inúmeras refeições

se escrevo, deixa de existir mundo para lá das linhas

se jogo, afogo-me numa realidade alternativa

se amo, em nada mais penso do que por onde tu caminhas

se temo, a obsessão toma-me sem noção de quanto é obsessiva

se estudo, uma obra torna-se redenção e tortura

pareço só ter por medida a desmesura

e nunca ter equilíbrio, nunca ter moderação

incapaz de exercer sobre mim a mínima contenção

destinada a pagar o preço às forças intestinas

que manobram nossos atos de formas clandestinas

 

não deuses a que se paga a húbris

nem outras figuras transcendentes

é aos próprios destinos imanentes

sempre hipotecados na voragem

sempre malogrados se quase no alvo

sempre desviados por viragem

que sempre dispersa e destrói

aquilo que no projeto da existência se constrói

 

e, assim, apesar de me ter lançado em projeto

chego ao fim reduzido a coisa, a objeto

incapaz de ter dado unidade

aos múltiplos vícios que na vida

me foram destruindo a identidade

assim como a força e a vontade

 

Que força é esta maior que eu

que impede sempre que eu me realize

e, ao mesmo tempo, leva sempre longe

cada coisa que deseje e idealize

para lá da moderação devida

excedendo a própria ação pretendida?

Donde vem esta desmesura?

Donde vem esta indestrutível tendência

a procurar sempre a rutura?

Donde vem a arrogância, a insolência?

Donde vem esta incontrolável

fragmentação da existência?


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IV, petrificação, pp. 85-86

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