"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Carlos do Carmo


    Para mim, se Amália era a encarnação feminina do fado, Carlos do Carmo era a masculina. Lembro-me de uma noite, no auge da minha encarnação poética, com 21 anos, agosto de 1986, em que assisti a um seu espetáculo. Eu estava, nessa altura, pele e osso, extremamente bronzeado e com o cabelo muito longo e muito alourado. Até falar, julgavam-me alemão, o que no Algarve era uma vantagem. O concerto foi em Tavira, uma das últimas paragens de um périplo feito à boleia pelo Sul do país, quase sem cheta e entregue à febre louca que me assolava na época, a um passo da petrificação relatada no último dos meus volumes. Estava frio, ao contrário do que se esperaria, e a minha muito pouca roupa não ajudava nada a aquecer. Já nem me lembro da sequência das canções, só me lembro do que senti, no meio da voragem enlouquecida desses dias, a tremer de frio esquelético num canto do campo, sob um céu límpido, profundo, estrelado: serenidade. Gostava de ter escrito sobre isso mas não escrevi, demasiado ocupado que estava a fragmentar-me. Mas foi uma ilha inesquecível de paz doada por Carlos do Carmo na deriva pela tormenta desse verão. A minha homenagem a um dos cantores da minha vida.

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