Para lá da zona do comércio livre dos
corpos,
para lá da compra e venda de emoções,
para lá da transação corrente de sorrisos e olhares,
para lá da troca de ambíguos gestos obscenos,
para lá da produção em série de lugares
comuns
brejeiros, românticos ou supostamente
sensuais,
para lá da loja de conveniência da
concordância e elogio
para obtenção de prazer fácil de
comunhão mascarado,
para lá do inevitável passeio turístico
de sedução
e da fantasia rebuscada nos
escaparates da perversão,
para lá do jantar de lirismo
encomendado,
para lá da comida rápida do esquema
já testado,
para lá da pornografia do decote
estrategicamente colocado,
para lá do ressentimento e vingança ao marido
encornado,
para lá do pagamento sexual à frustração e
rancor,
para lá da luxúria, do alívio e da dor,
amanhecendo calma sobre o mundo
A verdade do amor.
A luz que perpassa na vidraça,
poeira encantada levitando no
meio de nada,
aconchegando-se na penugem
dormente
de alvos fofos virgens seios
doados a um olhar transfigurado;
Os lábios perenes de um sorriso
dispostos na dádiva de um primeiro
eterno beijo;
A convulsão descontrolada das
lágrimas
do gume da palavra aguçada;
beicinho descaído na fragilidade
de uma tristeza que se quer
consolada;
um corpo que se entrega para
sempre
na voracidade imperiosa de tudo
ou nada;
as palavras arrancadas da alma
como tiras de carne
ensanguentada;
assim como o carinho e o torpor
após uma noite feita clara pelo
amor,
são sinais indesmentíveis da
verdade
que ecoa perdida entre as paredes
da cidade.
Poderá o amor perder-se no comércio
mais banal?
poderá ser confundido com o
engate trivial?
poderá ser transacionado no
consumo habitual?
poderá ser corrompido pelo
suborno sexual?
poderá ser aviltado como
contabilidade venal?
poderá ser experimentado pelo
cálculo grosseiro
do aspeto e funcionalidade do
produto
equacionando custo e benefício
merceeiro
ou a oportunidade em que o
prejuízo será menor que o lucro?
poderá ser imitado, reproduzido e
divulgado
como uma receita que se pode
aviar em todo o lado?
poderá ser transmutado em
exercício estereotipado
suscetível de ser até pelo mais
boçal praticado?
poderá ser germinado na mentira
sempre igual
em que as promessas se vendem num
instante acidental,
em que os juramentos se quebram
como coisa dispensável
no mercado imediato de sensações
passageiras
em que qualquer sentimento é
vendido e toda a emoção permutável?
poderá ser cultivado pela
hipocrisia mais funda,
transformado numa técnica de
sedução e ludíbrio,
pervertido por tibieza ou
covardia ou malícia
trocando a frontalidade e coragem
da afirmação
pelo comportamento dissimulado do
bandido
e o prazer contrabandista da
traição?
poderá o amor ser sujeito à
poluição,
permeável à lascívia e
devassidão,
identificável a um enredo
consumível de novela
confundindo a paixão com a
escapadela?
poderá o amor ser degradado
ao ponto de ser igual em todo o
lado,
com os vícios que toda a gente
tem
quando não é capaz de ser mais
nada que ninguém?
poderá acaso não ser uma eleição
do que é mais alto e mais além,
mas apenas o
produto do sorteio
em que se vê quem, ao calhas, sai
a quem?
poderá ser chamado de assobio
e redutível às meras
manifestações de cio?
poderá o amor ser algo idêntico
ao que em todo o lado é visto,
sem nada em que se transcenda e
que o torne único,
apenas uma relação habitual,
apenas isto?
Mesmo que lágrimas de sangue
escorram pelas faces do amor
e que rios de desespero
inundem os corpos antes saciados,
mesmo nas garras frias da morte
estrangulando a paixão em agonia,
mesmo nas linhas finas do corte
dos pulsos nus da melancolia,
mesmo no passar e repassar dos
anos
numa sempre igual monotonia,
mesmo na sujeição ao peso e ao
cansaço
do inevitável dia-a-dia,
nunca poderá a verdade do amor
se perder nos abismos da
devassidão
ou ser contagiada pelo contacto
com a hipocrisia e a podridão,
nunca poderá ser trivial
a entrega absoluta do amor
nem poderá ser considerada igual
a qualquer comércio de prazer e
dor.
O amor devassa os horizontes
e perpetua-se na sua duração,
ilumina vales, rios e montes
mesmo confinado numa arrecadação.
O amor transcende o tempo,
faz-se eterno e faz-se dia,
enfrenta qualquer contratempo
mesmo que o espere a agonia.
O amor afirma-se sem pejo
incondicional e sem limite
superior a qualquer medo ou
desejo
por mais que este se estenda ou
se amplifique.
Sentimento criado pelos deuses
no início dos tempos mais
sagrados
ofusca qualquer transação profana
mesmo nos locais mais
conspurcados.
Puro e inefável,
dos tempos em que o olhar era
diferente,
capaz de encantar as pedras e os
cardos,
tornando cada lugar e cada
instante transcendente,
patenteando o divino, aqui e
agora, imanente,
toda a vida consagrada pelo amor
tem em si mesma o seu próprio
redentor.
Passam os dias, passam os meses,
passam os anos,
o encantamento, a ansiedade, a
angústia, a frustração,
passa a vida, a frescura, o
vigor, a energia,
passa a juventude, a beleza, o
entusiasmo, o ardor,
passa o próprio cansaço de passar
até não haver mais nada
que não a luz eterna e refulgente
do amor.
E mesmo nos últimos instantes de
agonia,
num sofrimento insuportável para
a carne e sangue,
deixado só e moribundo pelos
destinos do mundo,
já sem forças para lutar,
absolutamente exangue,
o amante olha dentro de si a
imagem falecida
da face antiga e olvidada que lhe
era querida,
a face íntima, desgastada pelo
olhar, da sua amada
e, no seu leito de morte, sem
ninguém que o conforte,
resplandece de novo a luz de uma incontida alvorada.
Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, vol. II, abertura, pp. 168-173