"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Golem

 

Escamas endurecidas pelo decurso dos anos

enrijecem uma pele outrora elástica

até membros, ombros, torso se moverem

com automaticidade mecânica ou plástica.

 

Qualquer coisa de inorgânico cresce em mim,

qualquer coisa de rocha ou de metal,

como alquímica transmutação rumo ao fim

numa reversão cruel da pedra dita filosofal.

 

Golem primevo, grosseiro e brutal,

amplificado o peso por cem, por mil,

cada passo desfere um golpe sísmico

tentando regresso à terra, seu antro, seu covil.

 

E a rigidez transmite-se ao pensamento,

torna hirtas, baças, cúbicas as ideias,

reações embotadas, atrito, arrastamento,

mente a morar no meio de múltiplas cefaleias.

 

As emoções estão rombas, desgastadas,

sem intensidade exceto se redundantes:

ansiedades estéreis, insónias extenuadas,

rancores antigos e obsessões frustrantes.

 

Se parecem iguais ao passado as sensações,

onde está a frescura das manhãs claras,

o brilho endoidecido dos límpidos verões,

noites envolventes, brisa ondulante das searas?

 

As palavras inertes que por cá inda estão

não deslizam, dificilmente se veem deslocadas,

como plúmbeas peças de pesada construção

só com violência no lugar devido colocadas.

 

As palavras pesam e não de sentido ou gravidez,

incapazes de gerar novas inflexões, novas expressões,

repetidas à insignificância dada a escassez,

inaptos sortilégios, impotentes evocações.

 

Onde as palavras que antes floresciam nos meus lábios?

Onde as imagens que espontaneamente fletiam mente?

Onde as reflexões que pareciam emanar de arcanos sábios?

Onde a leveza que me fazia parecer levitar aereamente?

 

Em lado algum, nem enterradas na lembrança,

que a própria memória se petrifica rigidez

e na mente já nem habita qualquer esperança,

mesmo fantástica, de viver dinâmico outra vez.

 

Agarro e puxo o pé para o calçar com esforço,

alço o corpo mastodôntico que me resiste inerte,

arrasto os pés cansados enquanto torço o torso

e não encontro roupa que não me oprima e aperte.

 

A natureza misericordiosa preliminarmente me prepara

para o regresso à lama inorgânica de que bem cedo provim,

seca agora, humidade inútil numa mente tornada tão ignara,

fazendo desejar fim à pouca consciência que ainda guardo de mim.    

 

Dia a dia, com os movimentos cada vez mais trôpegos,

articulações doridas, solidão, de alimentos sabor ruim,

já sem alvos, já sem gozos, já sem forças, já sem fôlegos,

à petrificação gradual que à terra me devolve eu digo sim.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IV, petrificação, pp. 235-236

Para lá da zona do comércio livre dos corpos

 

Para lá da zona do comércio livre dos corpos,

 para lá da compra e venda de emoções,

  para lá da transação corrente de sorrisos e olhares,

   para lá da troca de ambíguos gestos obscenos,

    para lá da produção em série de lugares comuns

     brejeiros, românticos ou supostamente sensuais,

      para lá da loja de conveniência da concordância e elogio

       para obtenção de prazer fácil de comunhão mascarado,

        para lá do inevitável passeio turístico de sedução

         e da fantasia rebuscada nos escaparates da perversão,

          para lá do jantar de lirismo encomendado,

           para lá da comida rápida do esquema já testado,

            para lá da pornografia do decote estrategicamente colocado,


              para lá do ressentimento e vingança ao marido encornado,

                para lá do pagamento sexual à frustração e rancor,

                 para lá da luxúria, do alívio e da dor,

                  amanhecendo calma sobre o mundo

A verdade do amor.

 

A luz que perpassa na vidraça,

poeira encantada levitando no meio de nada,

aconchegando-se na penugem dormente

de alvos fofos virgens seios

doados a um olhar transfigurado;

Os lábios perenes de um sorriso

dispostos na dádiva de um primeiro eterno beijo;

A convulsão descontrolada das lágrimas

do gume da palavra aguçada;

beicinho descaído na fragilidade

de uma tristeza que se quer consolada;

um corpo que se entrega para sempre

na voracidade imperiosa de tudo ou nada;

as palavras arrancadas da alma

como tiras de carne ensanguentada;

assim como o carinho e o torpor

após uma noite feita clara pelo amor,

são sinais indesmentíveis da verdade

que ecoa perdida entre as paredes da cidade.

 

Poderá o amor perder-se no comércio mais banal?

poderá ser confundido com o engate trivial?

poderá ser transacionado no consumo habitual?

poderá ser corrompido pelo suborno sexual?

poderá ser aviltado como contabilidade venal?

poderá ser experimentado pelo cálculo grosseiro

do aspeto e funcionalidade do produto

equacionando custo e benefício merceeiro

ou a oportunidade em que o prejuízo será menor que o lucro?

poderá ser imitado, reproduzido e divulgado

como uma receita que se pode aviar em todo o lado?

poderá ser transmutado em exercício estereotipado

suscetível de ser até pelo mais boçal praticado?

poderá ser germinado na mentira sempre igual

em que as promessas se vendem num instante acidental,

em que os juramentos se quebram como coisa dispensável

no mercado imediato de sensações passageiras

em que qualquer sentimento é vendido e toda a emoção permutável?

poderá ser cultivado pela hipocrisia mais funda,

transformado numa técnica de sedução e ludíbrio,

pervertido por tibieza ou covardia ou malícia

trocando a frontalidade e coragem da afirmação

pelo comportamento dissimulado do bandido

e o prazer contrabandista da traição?

poderá o amor ser sujeito à poluição,

permeável à lascívia e devassidão,

identificável a um enredo consumível de novela

confundindo a paixão com a escapadela?

poderá o amor ser degradado

ao ponto de ser igual em todo o lado,

com os vícios que toda a gente tem

quando não é capaz de ser mais nada que ninguém?

poderá acaso não ser uma eleição

do que é mais alto e mais além,

mas apenas o produto do sorteio

em que se vê quem, ao calhas, sai a quem? 

poderá ser chamado de assobio

e redutível às meras manifestações de cio?

poderá o amor ser algo idêntico ao que em todo o lado é visto,

sem nada em que se transcenda e que o torne único,

apenas uma relação habitual, apenas isto?

 

Mesmo que lágrimas de sangue

escorram pelas faces do amor

e que rios de desespero

inundem os corpos antes saciados,

mesmo nas garras frias da morte

estrangulando a paixão em agonia,

mesmo nas linhas finas do corte

dos pulsos nus da melancolia,

mesmo no passar e repassar dos anos

numa sempre igual monotonia,

mesmo na sujeição ao peso e ao cansaço

do inevitável dia-a-dia,

 

nunca poderá a verdade do amor

se perder nos abismos da devassidão

ou ser contagiada pelo contacto

com a hipocrisia e a podridão,

nunca poderá ser trivial

a entrega absoluta do amor

nem poderá ser considerada igual

a qualquer comércio de prazer e dor.

 

O amor devassa os horizontes

e perpetua-se na sua duração,

ilumina vales, rios e montes

mesmo confinado numa arrecadação.

O amor transcende o tempo,

faz-se eterno e faz-se dia,

enfrenta qualquer contratempo

mesmo que o espere a agonia.

O amor afirma-se sem pejo

incondicional e sem limite

superior a qualquer medo ou desejo

por mais que este se estenda ou se amplifique.

 

Sentimento criado pelos deuses

no início dos tempos mais sagrados

ofusca qualquer transação profana

mesmo nos locais mais conspurcados.

Puro e inefável,

dos tempos em que o olhar era diferente,

capaz de encantar as pedras e os cardos,

tornando cada lugar e cada instante transcendente,

patenteando o divino, aqui e agora, imanente,

toda a vida consagrada pelo amor

tem em si mesma o seu próprio redentor.

 

Passam os dias, passam os meses, passam os anos,

o encantamento, a ansiedade, a angústia, a frustração,

passa a vida, a frescura, o vigor, a energia,

passa a juventude, a beleza, o entusiasmo, o ardor,

passa o próprio cansaço de passar até não haver mais nada

que não a luz eterna e refulgente do amor.

 

E mesmo nos últimos instantes de agonia,

num sofrimento insuportável para a carne e sangue,

deixado só e moribundo pelos destinos do mundo,

já sem forças para lutar, absolutamente exangue,

o amante olha dentro de si a imagem falecida

da face antiga e olvidada que lhe era querida,

a face íntima, desgastada pelo olhar, da sua amada

e, no seu leito de morte, sem ninguém que o conforte,

resplandece de novo a luz de uma incontida alvorada.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, vol. II, abertura, pp. 168-173

Em momentos de quase vir a ser

 

Em momentos de quase vir a ser,

eu me recomplico sobre mim,

torço a alma como um trapo

mas, prestes a conseguir,

interrompo-me ou me interrompem a mim...

 

A frustração de falhar sempre

e de me ficar a revoltar,

ridiculamente entre,

apanhado com as cuecas na mão,

entre tapar e mostrar,

em vergonha de não saber o que fazer,

a mais ridícula emoção,

flagrante indefinição de se ser...

 

Falta-me a paciência,

falta-me a decisão,

falta-me a persistência

e a organização,

onde a disciplina?

terei algo a dizer?

o que eu não estou a fazer        

revela-se mais importante...

– tudo me fica a meio,

perdido na irritação

de nada me ser bastante

– preguiça ou dispersão.

 

Quem me dera ser outro enfim...

Sou inquilino de mim:

entre o desejo de enganar o senhorio

e a necessidade de receber a renda,

fujo-me de me entender e perseguindo me policio...

– Haverá alguém que me entenda?

Entender-me-ei eu a mim?

Será toda a gente assim?...

O outro igual ao que eu sou!?

 

Em desejos de ser outro,

eu sinto-me quase a ser,

mas falha-me sempre o encontro,

fico-me sempre em não ser,

sempre um projeto de viver... 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. I, ausência, pp. 131-132

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

se bebo, bebo até cair, até esquecer

 

se bebo, bebo até cair, até esquecer

se fumo, fumo até tossir pulmões

se fodo, martelo até já não saber que raio estou ali eu a fazer

se como, degluto numa só inúmeras refeições

se escrevo, deixa de existir mundo para lá das linhas

se jogo, afogo-me numa realidade alternativa

se amo, em nada mais penso do que por onde tu caminhas

se temo, a obsessão toma-me sem noção de quanto é obsessiva

se estudo, uma obra torna-se redenção e tortura

pareço só ter por medida a desmesura

e nunca ter equilíbrio, nunca ter moderação

incapaz de exercer sobre mim a mínima contenção

destinada a pagar o preço às forças intestinas

que manobram nossos atos de formas clandestinas

 

não deuses a que se paga a húbris

nem outras figuras transcendentes

é aos próprios destinos imanentes

sempre hipotecados na voragem

sempre malogrados se quase no alvo

sempre desviados por viragem

que sempre dispersa e destrói

aquilo que no projeto da existência se constrói

 

e, assim, apesar de me ter lançado em projeto

chego ao fim reduzido a coisa, a objeto

incapaz de ter dado unidade

aos múltiplos vícios que na vida

me foram destruindo a identidade

assim como a força e a vontade

 

Que força é esta maior que eu

que impede sempre que eu me realize

e, ao mesmo tempo, leva sempre longe

cada coisa que deseje e idealize

para lá da moderação devida

excedendo a própria ação pretendida?

Donde vem esta desmesura?

Donde vem esta indestrutível tendência

a procurar sempre a rutura?

Donde vem a arrogância, a insolência?

Donde vem esta incontrolável

fragmentação da existência?


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IV, petrificação, pp. 85-86

Por morrer uma andorinha

 

Por morrer uma andorinha

não termina a primavera,[1]

tal como por dor sofrida

não se acaba com a vida,

 

mas cada qual, ao sofrer,

passa a ser o que não era:

a ferida fica a doer,

lembrança resta severa.

 

O mesmo com a alegria,

o mesmo com um amor,

o mesmo com toda vida.

 

Se a andorinha morria,

que não se console a dor

com continuação da vida.

 

Ela deixou de ser o que era,

seja ou não seja

                         primavera. 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. II, abertura, p. 149


[1] Referência a fado de Francisco Viana e Frederico de Brito, cantado por Carlos do Carmo.

Ano Novo

 

Vá Todos a bater latas à janela

Gritem todos Berrem Excitação

Subam acima de mesas e cadeiras

Badão! Badão! Badão!

É meia-noite

Alegria Alegria

Façam bradar vossas vozes

Ergam-se em euforia

Pensem já num desejo

Esqueçam-se de pudor ou pejo

Música Ponham música a altos gritos

Dancem Agora É agora Um beijo

É Ano Novo Festejemos

Bailemos Bailemos Bailemos

É rebentar de gritar e rir

Só para o ano há mais

É aproveitar até explodir

 

e depois muito contentinhos

pela permitida transgressão

voltem para dentro dos vossos ninhos

e engulam-se na vossa solidão.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Madrid, Bubok, 2019, Vol. I, ausência, p. 145 

domingo, 20 de dezembro de 2020

Um gato

 

Um universo ainda, nada menos que um universo entre um sonho de uma noite de verão e um gato que provoca o desencontro eterno E a verdade é que lá o colocaste, como uma ameaça, um pressentimento de mau agouro, uma inquietude de precaridade inevitável em qualquer satisfação onírica Depois, afastaste-o como, num sonho que se quer feliz, se afastam as sombras que nele se insinuam Mas não o apagaste, deixaste-o, por trás da película de um idílio, como símbolo do entretecer constante e insidioso de miríades de forças ignotas E a verdade é que o malogro é inevitável e a felicidade tão-só uma ilusão, e a verdade é que um sonho de verão é apenas lenitivo de uma existência de aflição Ensina-me como é possível um sentido já nem peço uma redenção apenas um sentido um qualquer sentido surreal hiperreal realreal infrarreal realdaputaqueopariu realdealgumaforma ah realidade que se sente enfim anal enfim racional enfim falovaginal enfim retro inflexão da incapacidade de ser expressão Ensina-me algo mais que um sujeito que se ilude por desviar o olhar da consciência da realidade crua Troquei há muito a possibilidade das crenças singelas pela dilaceração da crítica infinda Não posso voltar atrás, trocar-me na loja de conveniência da infância por um eu pacato e aborrecido, com a serenidade perene de quem se cega de qualquer olhar que indague, analise, interprete até penetrar as fontes do aparente Resto-me com este eu, um eu infinitamente vergastado, uma fragmentação que nunca mais acaba, nunca mais cessa, nunca mais se interdita, eternamente esquartejado pela disparidade dos desejos, sempre a renascer menino, sempre a confrontar-se adolescente com o intrínseco vazio, sempre desvairando madura absurdidade até se dispersar mesquinho na gulodice de ter e haver e sempre sempre sempre morrendo nos confins das palavras que não valem nada, ditas por uma boca emudecida para todos os ouvidos ensurdecidos pelo ruído produzido pela máquina da distração universal de tudo quanto seja próprio e autêntico – eu sou o que nunca poderei ser por precisar de funcionar como mais uma peça de máquina, como um não ser, como uma nulidade habitada por universos de sentido e verdade Posso contar histórias como os outros, posso me estupefaciar, posso fingir que tudo decorre otimamente, posso mentir, posso ludibriar Mas o vazio absoluto de uma inexistência com consciência de estar a servir absurdos que não servem para nada, nem para os estúpidos desígnios da pseudoelite ignara que só escava a sua própria sepultura – não consigo, até para mim há limites, até para mim há umbrais inalcançáveis... Pensa-se o niilismo como o fim Não, o niilismo é uma esperança desesperada O fim é já nem sequer ser possível niilismo O fim são todos os gatos que escondem todas as possibilidades de encontro em todos os arbustos do devir insano, até tudo ser indiferente, obliterando todo o desejo e não sendo já possível qualquer dano, enfim farrapo, enfim dejeto, enfim inorgânico – a serenidade enfim da desolação do estéril mineral A vida nunca foi um sonho, nem sequer tão-só um pesadelo, a vida foi um engano, uma reação química inusitada sempre em busca do impossível e sempre pronta a regressar ao eterno silêncio do vazio, o abismo que a consciência teme porque a atrai, dissociação de uma fugaz ilusão, a vertigem perante o precipício, terror e libertação, retorno sempre ao início

sábado, 12 de dezembro de 2020

Quarta pessoa


   Falo agora da quarta pessoa, falas agora da quarta pessoa, fala agora a quarta pessoa: o absolutamente estranho, sem relação. Tão pouco nada, tão pouco união. Nem ausência, nem superação. O estranho. Fim de explicação.

Eu – o quê eu sem tu? Poderia haver eu sem relação, um eu cru? O eu vai-se constituindo na idealização do tu, assim se gera fora de si a construção de si. E, porém, do eu não é o tu a sua projeção? Como pode a projeção do eu se situar fora do eu? Mas não será o projetar anterior ao próprio eu, sendo o eu uma projeção tardia? Quem seria? O que seria o que antes do eu o tu projetaria?

Mas a criança toma consciência de si como um ele, a menina, o menino, aquele de quem o tu fala e que aparentemente é ele. A criança tem de aprender a projetar as projeções do tu para se projetar a si. Tu – ele – eu e de novo a pergunta acerca da origem que projeta o tu. O projetar sem identidade, o projetar nu.

Regresso ao eu e à impossibilidade de o projetar. O ele que sou eu não é o eu que projeta o tu. Mas onde está este último eu que nunca se objetiva, que nunca se vê? E, porém, que é tudo o resto senão o que dele se vê? Impossível inerente à realidade da pessoa, cada pessoa se anula na falta de sentido do sujeito, sempre diverso do que se diga dele, sempre fundando tudo o resto, cada imagem, cada conceito, a linguagem – um prolixo sem sentido estruturando-se nas ficções das pessoas. E do impossível inerente à realidade da pessoa, antes e depois, na origem e no fim, a estranheza inestruturável da 4ª talvez não pessoa, talvez única pessoa: as três conduziram, na consciência da falha constante e instante, à impotência da descaracterização, ao estranho.

    A mesmidade como inevitável alteridade não constituiu um primado da alteridade, pois esta mesma emergia de um presentar inapresentável, estranho. Superação da alteridade pela integração da estranheza? O estranho é inintegrável, a tudo estranho, só como estranho anterior a sentido e que resta após desmascarar o absurdo é referível, indiretamente, nunca objetivável, a objeto estranho. Superação? Não. Quando as palavras se exauriram e já não se articulam em sentido, quando soam na inquietação insondável de um pressentimento fugidio e que continua a incomodar sem se poder precisar, quando é melhor calá-las pois tudo nelas faz lembrar não sei o quê que não o que está ser dito, há algo estranho, o quê, não sei. Se o soubesse, não seria estranho. O discurso emudece, a loucura solta-o das palavras, a 4ª pessoa sempre presente no limiar de tudo o que acontece apodera-se dele e tudo o mais se esquece. 

Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IV, petrificação, pp. 198-199

Eu e o outro

 

          Qualquer outro é uma representação minha. Aliás, não é, no fundamental, diverso de outras representações. Nos sonhos, nas alucinações induzidas por drogas, nas psicoses, etc., posso interagir com outros que acabo por concluir, noutras alturas ou através de interações com ainda outros, que não passavam de produtos da minha imaginação. Posso ter conversas com esses sonhos e até interagir de formas mais íntimas. Por outro lado, muitas das interações com outros que não são supostamente alucinações são tão estranhas ou tão efémeras que podem parecer mais irreais do que as que posso ter com fantasias. Certas personagens de jogos de computador já parecem mais reais do que certas pessoas com que supostamente contacto. Um psicótico pode ter longuíssimas relações com outros supostamente imaginários. E quem me pode garantir que eu não sou psicótico?

            Como é óbvio, o facto de existirem outros tão desagradáveis que não compreendo como uma mente poderia ser tão perturbada ao ponto de, mesmo inconscientemente, os criar nada altera. O mesmo acontece nos sonhos e nas alucinações. Parece evidente que ninguém acredita no solipsismo. Para que valeria a pena falar com outros, sofrer com outros, trabalhar com outros, defender-me de outros, acasalar com outros, ter outros como filhos, se não passassem de fantasmas oníricos? Para me entreter? Parece absurdo. Porém, o único ser de que eu posso ter absoluta garantia de em tal não acreditar sou eu. Ora, se me verifico isolado na minha crença, a não ser que suponha o que exatamente está em questão, a existência de outros sujeitos, não tendo nenhuma garantia de não ser louco, a minha crença verifica-se muito rapidamente um muito frágil suporte.

No entanto, toda esta situação solipsista resulta de se supor que, pelo contrário, o eu não é suscetível de qualquer dúvida. Ora, aí está uma fortíssima crença na gramática cuja sustentação é difícil perceber. De facto, eu refiro tudo a mim. O “eu penso” acompanha cada uma das minhas representações. Porém, o que é isso que pensa? É alguma coisa determinada, com características identificáveis ou propriedades que se possam deduzir das suas ações? As minhas próprias ações divergem tanto de instante para instante e são de tal forma objeto de questionação para mim próprio que dificilmente poderiam constituir um suporte para a predicação autêntica do sujeito. Por outro lado, seja de que forma eu considere o sujeito é sempre como objeto e não como sujeito, ou seja, não pelo que se supõe que é e dá origem à situação solipsista. Como objeto, está exatamente na mesma situação do outro. Além disso, mesmo que reúna todas as ocorrências que refira especialmente a mim, continuo longe de encontrar a unidade de uma coisa que esteja na origem de todas essas ocorrências. Existe uma tão grande variedade de fenómenos que suponho internos como a que existe nos que suponho externos. A coerência do que penso é, por sua vez, mais uma convicção vaga que uma realidade rigorosamente verificada e, se existisse, apenas confirmaria que ando a contar uma história mais ou menos fixa a mim próprio para me convencer de mim próprio. Quanto a uma suposta unidade transcendental subjetiva, para lá de se identificarem uma série de faculdades universais relativas à estruturação do pensamento humano que, no caso de existirem outros humanos, em nada me identificaria especificamente a mim, acaba por se resumir ao pressuposto “eu penso”, supondo que todas as ligações que estabeleço utilizando as categorias são sempre ligadas na mesma unidade que exatamente está em questão. Por sua vez, a síntese do diverso na consciência intencional mostra, mais uma vez, a unidade do objeto e não do sujeito, e a suposição que o sujeito em todas as diversas objetivações temporais se liga da mesma forma geral que os objetos ou é uma suposição genérica, ou corresponde simplesmente à ligação global a que se chama mundo. Em última análise, a unidade subjetiva da consciência, contraposta ao mundo enquanto objeto global, acaba por parecer antes de mais uma construção psíquica pela qual me conto a minha identidade a mim próprio, construindo a ficção da coisa que eu sou, muito embora essa história vá ela própria mudando durante a vida. Na verdade, eu nada sei do que sou a não ser pelo conjunto dos objetos ligados na consciência, ou seja, o mundo, se se quiser, do meu ponto de vista subjetivo (como se soubesse da existência de outro).

Desta forma, a tutela subjetiva do eu sobre as suas representações, incluindo os outros, é vazia porque nenhum conteúdo se consegue dar a esse eu que não o das suas representações e isso não identifica nenhuma coisa ou substância que fosse o suporte de tudo. Essa fantasia do primado do eu contraposto ao mundo (como ainda mais a do mundo independente do eu e que o eu absorveria) deu origem à consciência de um sujeito como objeto desenraizado que poderia fazer tudo pois não estaria dependente de nada. Como se poderia superar este egocentrismo e, nas versões menos ingénuas, solipsismo? O outro é encarado como mera representação e mesmo se considerado como outro sujeito, tal subjetividade é inacessível. Através do amor? O amor pode ser (e é em muitos  casos) a versão mais extrema desse egocentrismo ou solipsismo. Muitas formas de amor consistem exclusivamente na idolatria de uma imagem construída pelo sujeito psíquico. Mesmo as experiências de contrariedade no amor nada alteram, como já se viu que os pesadelos nada alteram. Pelos transes a que chamam meditação, porventura por desconhecerem o significado e origem da palavra latina? Se eu dissolver a consciência intencional numa perceção global indiferenciada, o que é se conseguiu com isso: uma perceção global indiferenciada tão solipsista ou mais do que uma diferenciada. Se se considera que isso permite superar a subjetividade egocentrista ou solipsista, então ficar muito alcoolizado seria pelo menos um passo intermédio para isso, visto reduzir em muito a perceção objetivamente diferenciada. Outras modalidades desta dita meditação não introduzem diferença nenhuma, a não ser pelo facto de dizerem fazer outra coisa (até o oposto) que não aquilo que foi criticado, fazendo exatamente o mesmo.

        Não o amor em geral, mas determinados estados do amor, não permitindo aceder ao outro como sujeito, o que é obviamente impossível sem recorrer a possibilidades fantásticas, podem superar, momentânea ou temporariamente, a sujeição à crença no sujeito, a redução à subjetividade. Como? Alcançando um estado em que já não haja noção do eu e do próprio, e em que o que se pensa como próprio do outro já não se distinga do que é próprio do sujeito. Não sendo uma abertura ao outro, é através do outro que é operada essa dissolução temporária do eu. Dessa forma, parece constituir-se um portal temporário para o antessubjetivo, o si. Poder-se-á dizer que o outro continua a ser mera representação que, temporariamente, se dissolve na consciência tal como o próprio sujeito enquanto objeto. É verdade. Mas, dessa forma, o outro acaba por tornar‑se símbolo de uma abertura para lá do sujeito e, logo, indício que há mais do que as projeções do sujeito. Símbolo é aqui entendido no sentido religioso de um verdadeiro portal para uma dimensão sagrada mas que, neste caso, nada tem de transcendente, ao menos enquanto oposto a imanente, estando já sempre aqui e sendo ocultada pelas projeções subjetivas. Tal estado não é possível no sonho que consiste exclusivamente em projeções subjetivas, por muito fantásticas ou disparatadas que possam ser. Esses momentos que parecem transcender a temporalidade subjetiva (do projeto que dá continuidade temporal ao próprio sujeito) são usualmente qualificados pelas pessoas como eternos, por muito efémeros que sejam. Porquê? Porque, de facto, superam a temporalidade psíquica pela qual, para lá do presente imediatamente experimentado, se concebe o passado e o futuro. Ao superarem essa temporalidade pela qual se dá continuidade e objetividade à consciência intencional, as pessoas sentem-se como se partilhassem o eterno agora que se atribui a Deus e só conseguem expressar essa absoluta diferença em relação à experiência ordinária dizendo tratar-se de momentos eternos.

Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. II, abertura, pp. 41-44

Eu e o mundo


            Eu vejo várias estrelas. Eu ouço o impacto do vento nas folhas. Eu cheiro o odor da terra e da relva molhada pela chuva. Eu saboreio uma pastilha. Eu sinto a rugosa casca de uma árvore. Eu sinto uma indisposição digestiva. Eu sinto-me irritado com a demora da pessoa com que me vou encontrar. Eu amo-a. Eu reflito acerca destas sensações, emoções, sentimentos e pensamentos. Eu pergunto-me acerca do que é este eu. Tudo o que eu considere é meu objeto, inclusive o próprio eu. O objeto é o que é considerado por um sujeito. Pode existir uma coisa que não seja objeto. Porém, na medida em que estou a considerar essa possibilidade, imediatamente essa coisa se torna um objeto possível. Os objetos opõem-se ao sujeito. São considerados por este, por sua espontaneidade cognitiva. Suponho que alguns desses objetos correspondem a outros sujeitos. Porém, só tenho deles conhecimento como objetos e como objetos nada têm de sujeitos. Considera-se que vários desses objetos estão fora do sujeito e outros estão dentro. Estranha distinção. Pensa-se que as estrelas que vejo estarão a muitos anos-luz do meu planeta. Porém, mesmo para a física, a luz que vejo das estrelas não está a essa distância. De facto, segundo a física, entrou-me literalmente pelos olhos dentro. O objeto “estrelas” é visto aqui, a conceção de que a sua luz foi causada a grande distância e no passado é aprendida e compreendida aqui, a distinção entre a luz que vejo e o que a astronomia concluiu que era em si uma estrela é entendida aqui, a conceção que tenho acerca de ótica e do funcionamento dos meus olhos é percebida aqui. Supõe-se que, apesar de a perceção ocorrer aqui, se refere a coisas que, embora diversas da perceção, existem em si mesmas independente de mim. Porém, mesmo essa conceção da coisa em si é especulada aqui. Supõe-se que, através de experimentos, eu possa testar as minhas hipóteses acerca do que será cada coisa em si, vendo se ocorre ou não fenomenicamente o previsto caso a coisa que se não vê corresponda à hipótese. Mas também essa verificação ocorre aqui, as máquinas experimentais são feitas com as conceções do sujeito e dependem da interpretação do sujeito. Corresponderão as teorias à realidade para lá do sujeito? O homem da idade da pedra que atribuía a dádiva do fogo a um determinado deus, julgava confirmar a sua teoria quando, após ou durante uma reza a esse deus, conseguia dar origem a uma chama. O mesmo, aliás, continua a acontecer nos centros religiosos milagreiros de promessas. Admito que se encontra aí um reforço considerável para a crença, mas a história tem mostrado que as crenças consideradas mais indubitáveis só o eram por ninguém (ou por ninguém considerado relevante) as pôr em dúvida. Quando o fizeram, acabaram por não resistir. Talvez exista uma realidade para lá do sujeito, eu acredito que existe, mas só posso falar daquela que, de uma outra forma, é considerada por mim. E as conceções que melhor aceito são aquelas que melhor ordenam a compreensão que tenho do mundo.

            É habitual contrapor o eu ao mundo. O mundo é o conjunto de tudo o que está à frente do sujeito, mas que se supõe transcendê-lo. Isto porque se supõe que o mundo existe independentemente do sujeito e de que tem muito mais coisas que aquelas que o sujeito percebe. Ora, a palavra mundo, mesmo entre os latinos, contrapõe-se a caos. Traduz, aliás, a palavra cosmos. O cosmos, para os gregos, resultava da ação ordenadora dos deuses a partir do caos primevo. A ciência, ao pressupor constantemente que existe uma ordem eterna no universo, leis universais da natureza que é, apenas, preciso descobrir, acaba por ter uma conceção análoga do mundo. Inicialmente, a ciência atribuía essa ordem ao desígnio divino. Hoje, as crenças variam, mas não a crença da existência dessa ordem, sem a qual nem valeria a pena fazer ciência. Haverá uma ordem na própria realidade independentemente de qualquer sujeito? É possível. Porém, só é possível falar dela enquanto é considerada pelo sujeito, nem que seja sob a forma da especulação acerca de uma eventual realidade para lá do sujeito. Na verdade, independentemente da existência ou não de uma ordem não subjetiva, toda e qualquer ordem que haja sido atribuída ao mundo não foi mais do que uma construção do próprio sujeito. De facto, o mundo de que se pode falar é sempre e apenas o resultado da ordenação subjetiva das próprias representações do eu. Especular acerca de uma ordem que não pode ser ordenada pelo sujeito e existirá para lá dele é falar de uma suposição subjetiva também ou então tentar falar sem se conseguir de algo mais inconcebível que qualquer quimera, pois não há qualquer forma de lhe aceder, nem há nenhuma razão para supor tal existência. O mundo (ou ordem) de que posso falar é subjetivo e toda a realidade que possa existir para lá da construção subjetiva é indizível a não ser como uma suposição subjetiva. Não há mundo sem eu. Mas haverá eu sem o mundo?

            Assim parece porque para lá de tudo o que está disposto frente ao eu e a ele contraposto, há toda uma série de representações que refiro a mim próprio. Porém, a minha indisposição digestiva é atribuída ao meu corpo que eu considero, é certo, como algo que está próximo de mim na ordenação do mundo e que, de alguma forma, possuo ou, pelo menos, pelos atos intencionais, uso, mas que não sou eu. Atribuo a irritação ou até mesmo o amor parcialmente ao meu corpo, mas já envolvo as emoções e os sentimentos na consideração de outra instância que se pode chamar alma, espírito, mente, etc., de forma mais ou menos indiferente. Em qualquer caso, na medida em que considero a irritação, o amor ou a mente, passam a ser meros objetos do sujeito e não o próprio sujeito. O mesmo acontece com a minha reflexão acerca disso e tudo aquilo que denomino consciência, inclusive as perguntas acerca dela. Seja como entidade metafísica, como eu transcendental ou como parte do psiquismo, o eu que o eu considera já não sou eu mas um objeto subjetivo. Quando me tento referir à minha atividade como espontaneidade para sublinhar o seu caráter ativo mas objetivamente inexplicado, já a estou a reduzir a um determinado tipo vago de objeto e, como tal, não consigo falar da verdadeira suposta espontaneidade do sujeito. Dessa forma, verifico afinal que tudo o que a mim atribuo acaba por ter a mesma natureza do mundo, tratam-se de objetos frente ao sujeito. Mas, então, o que é o eu? Se se eliminar tudo quanto é objeto para chegar ao sujeito, fica-se com o quê? Com nada? Como o infinitesimal ponto, o limite da extensão que se pode considerar ele próprio como não extenso, pois senão seria um pequeno círculo, o eu não é de facto nada a não ser o ponto a partir do qual se estrutura todo o mundo. Tudo é referido ao eu, tudo é sentido, percecionado, pensado pelo eu, mas nada que é sentido, percecionado e pensado parece ser o eu. O que seja em si o eu é algo que está na mesma situação da realidade em si para lá da perceção. Só se pode especular acerca disso e, quando se especula, já se não está a atingir o que se pretendia pois transforma-se esse eu ou essa coisa em si num objeto subjetivo. Porém, enquanto ponto perspetívico em relação ao qual tudo é referido, num certo sentido, todo o mundo é eu na medida em que é o conjunto das suas representações. Tal qual não há nenhum mundo de que se possa falar que não o subjetivo, também não há nenhum sujeito de que se possa falar que não aquele a que se refere todo o mundo. Assim, o mundo acaba por ser a forma referível da subjetividade. Eu, na medida em que de mim possa falar, acabo por ser o mundo.


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. I, ausência, pp. 103-106.

Adverso o verso

  Adverso o verso no reverso do diverso por incapaz de reduzir o díspar ao igual Parece pernicioso pior pérfido perverso à sentença da...