"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

domingo, 28 de novembro de 2021

Nota relativa à 2ª edição

     Esta segunda edição não resulta do sucesso da primeira. Dificilmente, o fracasso poderia ser maior. Embora esteja convencido que o fracasso seria inevitável, mesmo num país onde se lesse de facto alguma coisa, resolvi fornecer uma versão um pouco mais acabada, sem gralhas, espero..., e com alguma perspetiva de sair do beco em que continuaria colocada pela editora anterior. Provavelmente, será apenas uma nova ilusão e apenas terei de conhecer melhor a nova plataforma para concluir que tipo de beco é. Para começar, os preços são bastante maiores, próximos do dobro, o que é mau sinal. Já bastaria para um novo fracasso tratar-se de livros de poemas ou de textos que às vezes parecem poemas, quanto mais tornar seus preços proibitivos. Não se julgue, porém, que almeje sucesso de algum tipo. Até me agrada a discrição. Ficaria contente se alcançasse ter dois ou três leitores que comprassem os livros e uma dúzia de leitores por oferta minha ou pdf. Já fiquei bem contente com a única leitora que leu a obra de fio a pavio e que, por isso, merece o meu eterno agradecimento. De resto, pelo menos que seja do meu conhecimento, só consegui que lessem um ou outro texto isolado publicado no Facebook ou no Blogger. De qualquer forma, estou igualmente grato a muitos desses leitores de textos isolados, alguns dos quais, apesar de tudo, de grandes dimensões, dimensões que tantas vezes chegam para produzir livros completos. E encontrei leitores não só entre os meus conhecidos, mas entre antes desconhecidos quer em Portugal, quer no Brasil, quer em países africanos. Não se julgue, aliás, que sou ingrato, compreendo totalmente a não leitura geral. Dificilmente se lê mil e tal páginas de uma obra‑prima, quanto mais de uma coletânea precária e muitas vezes medíocre que, apesar da aparente maior ligeireza do verso, é frequentemente de uma densidade similar a um ensaio.

Resolvi fazer pequenas alterações, algumas das quais sob sugestão da minha leitora de fio a pavio, Ana Garrido, sobretudo neste volume, apesar de não ter seguido a vasta maioria das suas sugestões. Agradeço todas e peço desculpa pela minha teimosia em manter a maioria do texto tal qual. A minha resistência resulta, em boa parte, de eu não me sentir detentor dos direitos sobre o que produzi no passado, quando era muito diferente do que sou hoje. É importante recordar que a maior parte da obra é do século passado e que quem a fez já morreu. Claro que existe também resistência por pura e simples atual discordância. Mas o esforço dessa minha amiga, apesar das discordâncias, não foi inglório. Pensava não escrever nem mais uma linha em verso ou pseudoversos e a verdade é que, sob sua instigação, estou a fazer um esforço derradeiro para fazer algo vagamente similar a poemas. A mediocridade, a falta de proporcionalidade, a inadequação são minhas inerências, faço o que posso com as capacidades que descobri em mim e não mais que isso. Para lá do que o que mais importa no dizer é o que se diz e só o facto de sentir ter algo a dizer é que me move. Pois, se julgasse que nada mais teria a dizer, teria todo o prazer em ficar calado. Já há demasiados foles insuflados de vazio, para estar disposto a ser mais um.

 

15/11/2021

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Símbolo do amor, da paixão, a rosa vermelha

Símbolo do amor, da paixão, a rosa vermelha

oferece-se bela, fresca, orvalhada, viçosa

Será essa a sua essência, banalidade reproduzida

em mil imagens icónicas do que seja a rosa?

 

Porquê considerar essencial um momento efémero

como se fora a realização sensível da rosa ideal?

Pode cair cada pétala pelo vento ou pela mão

murchar, enegrecer, engelhar aparência visual

 

devir um resíduo ressequido que nem cor

nem frescura, nem orgânica, nem beleza

mantém a imagem do já olvidado esplendor

 

e, porém, algo se manteve em todos os meandros dos caminhos

incólume em toda a sua potencial crua rudeza

a sua penetrante oculta natureza, os seus espinhos

 

*

 

E, porém, não o sabe já sempre toda a gente

apesar do esforço eterno de nada olhar de frente?

Não tem consciência que o florir é apenas manha

para proliferar usando um animal que a aparência apanha?

 

Não tem consciência que o que mais persiste é o esqueleto

mesmo após a cabeça sinistra rolar do cepo

sendo, das carnes, a humidade, a fofura, a macieza

uma ilusão para cumprir a ordem de ação da natureza?

 

Descarnada se evidencia a essência

que se desdobra ao longo da existência

sendo o fluir de cada aparência

 

apenas oportunidade de a transcender

até o fundo de onde emerge o seu ser

a fonte eterna de todo o acontecer

 

*

 

Leda ilusão da dádiva eterna do amor

desaparecida assim que se realizou seu fito

entregue à idealização todo o ardor

que apenas deixa, despojo nu, o animal aflito

 

E, ridiculamente, há quem busque recuperar

esse ápice vivido no efémero instante

julgando possível como coisa o agarrar

quando só para si existiu, foi relevante

 

Entre as páginas, há quem a guarde ressequida

ou num altar erguido no dédalo da memória

mas a rosa conservada nem se assemelha à vivida

 

Ao invés, enquanto cor, frescura, brilho são só história

os espinhos até reforçam penetrante a agudeza

da dor que sempre acompanhou toda a beleza

 

 © Joaquim Lúcio, 25/4/2021

Como um poema recitado a meia luz

Como um poema recitado a meia luz,

adivinho os teus contornos no crepúsculo do meu quarto

e absorvo-te pela pele lenta, calmamente,

e desejo impregnar-me de ti cada vez mais eternamente...

 

Gravado ficará na memória este momento,

esta luz, esses contornos, esta calma, esse contacto,

este odor de fêmea fértil e recetiva ao afago,

essa penugem que percorre fofa carne, sedosa pele.

 

Poema sussurrado no teu corpo que adormece

ou já adormecido na penumbra que escurece

e que gradualmente nos dissolve e entorpece

até ao despertar da luz penetrante que amanhece,

 

teus versos, efémera magia fluída e respirada,

pairam na consciência um instante e são esquecidos

numa mente totalmente absorvida por e concentrada

em se entregar à fruição dos instantes mais vividos.

 

De pé, parado, numa pausa eterna de um momento,

à entrada do quarto devassado, segredado, reservado

para os mistérios, as violências, as ternuras, para o tempo,

presença plena inversa da mera duração, mero passado,

                            

inspiro o calor abafado que acumulas e exalas

numa dormência que me envolve o estar desperto,

enteléquia insuperável ou futuro que no ventre embalas,

anunciados, profetizados filhos de um horizonte aberto.

 

Habitas já essa coisa a que posso chamar alma,

pela qual te nomeio, te falo, te olho, te desejo,

ou te habito eu na tua alegria, no teu ódio, tua calma

quando adormeces na quente humidade terna de um beijo.

 

Poderemos acabar este enleio já pela manhã

e, ressentidos rancorosos, nem já nos nomearmos,

e nem olharmos o outro, se nos encontrarmos amanhã

ou se, inadvertidos, um pelo outro, tão-só passarmos,

 

poderemos deixar as promessas de futuro

entre tantos olvidados sonhos abandonados,

deitar fora este anseio incontrolável, puro

de frutificar em excesso enlaces enamorados,

 

poderemos trair entrega, fusão, significado,

e até preterir amor pela obscenidade

em que corpos e almas se vendem no mercado

onde se busca infrutiferamente saciedade,

 

poderemos ocultarmo-nos de nós mesmos,

negando a nossa própria autenticidade,

 

que restará, para sempre, dentro de mim guardada,

a sagrada relíquia deste instante de verdade.

 

Teus contornos se apagam na penumbra

e já só sigo lenta e espaçada respiração,

pela qual sei que, entre sonhos, a serenidade

te visita corolário orgástico da consumação.

 

É a hora de vogares na onírica corrente

ou na dormência sem sonhos do prazer,

hora de limpares a alma e gozares-te ausente

na fetal presença indistinta em que se gesta ser.

 

Para isso, há uma eternidade imensa de uma hora,

te aninhaste no meu ombro, enlaçando a minha carne,

exausta da penetração violenta ou repousada

em que te percorri, de lés a lés, por toda a tarde.

 

Também já adormeci a cabeça nos teus seios

até esquecer quem fui, quem sou ou o que ensejo,

fundindo a mente na fofura branca do teu peito

enquanto mantinha dentro de ti o meu desejo.

 

Momentos longos em que quereria morrer para sempre,

não regressar desse sono pousado no teu corpo,

babar-me como uma criança que se saciou e se sacia

no conforto de tal humano leito de carne tão macia.

 

Na escuridão, fecho os olhos para rever as sensações

e uma tépida enchente de amor e carinho me invade

até tornar indiferentes todas as procuradas emoções

pelos fragmentados desejos aqui fundidos unidade.

 

Nada mais que procurar pelo universo infindo,

futilidade da devassa humana pelo desconhecido,

sociedade, trabalho, convivência e luta,

será que alguma vez tiveram algum sentido?

 

Ou apenas nos procurávamos distrair

de quanto, passo a passo, nos estávamos a trair

desesperadamente buscando preencher nosso vazio

com estrépito, agitação ou pusilânime desvio?

 

Como um poema recitado a meia luz,

mesmo no escuro e de olhos bem fechados,

inspiro os tecidos suados da tua pele que reluz

irradiando os meus tecidos pelos teus impregnados.

  

No poema, letra a letra, gota a gota, corre o sangue

de todo esse sofrimento e grosseiro gozo sem sentido,

até ser por ti purificado, regenerado seiva

em que todo o já passado é redimido.

 

Relaxada, respiras o meu quarto, o meu leito, minha alma,

como se não precisasses na vida de mais nada

e eu encontro-me ápice e final neste fim de tarde calma

no qual saúdo a escuridão como se fora a alvorada.

 

A noite cai e eu deito-me de novo a teu lado,

o teu corpo adormecido e cego busca o meu

como se só para ele continuasse inda acordado.

 

O calor invade-me, aqueço-me, torpor, sou teu...


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, vol. II, abertura, pp. 113-116

terça-feira, 17 de agosto de 2021

O grande sonho ocidental

             Num café, o renascido aceitou que alguns jovens se sentassem junto dele. Na televisão, apresentavam pormenores da tomada do poder num país remoto por uma força extremista, enquanto forças ocupantes se retiravam desordenadamente. Prestaram atenção ao discurso do chefe destas últimas forças, estupefactos com o seu descaramento. Perguntaram, então, qual a opinião do renascido que parecia não estar a ligar nenhuma ao que se passava. A sua voz começou a responder de forma algo alheada...


O grande sonho ocidental de skates, discotecas e minissaias

como o anterior no império persa de piscinas e cocktails

sempre foi o nosso delírio urbano e endinheirado

e o das castas privilegiadas de ambos os domínios

pago a peso de ouro ou petróleo ou papoilas

a ditadores fantoches e corruptos e seus títeres

 

O ódio antigo aos infiéis nunca foi esquecido

foi até redobrado, apurado, refinado

e será ungido com seu sangue nas grandes capitais

que continuarão após a peste olvidadas em diversão

até a madrugada voltar a amanhecer na agonia

de cadáveres amontoados e corpos estropiados

 

O senhor do mundo do alto da sua desfaçatez

faz um gigantesco manguito às meninas

que se entreteve com seus antecessores e pares

a fazer sonhar durante uma longa geração

para as largar como instrumentos já sem uso

no longo pesadelo da escravidão e da tortura

 

O senhor dito democrático não conta que o seu regime

era aqui e em tantas outras partes

partes de pirâmides de atlas de zigurates

uma imposição contra o povo paga com subornos e miséria

que se queria lavada por receções elegantes

pipocas refrigerantes jingles aos colaboradores

 

O senhor do mundo não se importa que haja

foragidos enriquecidos com o saque colonial

enquanto as manadas comprometidas

esperam o novo velho uso dos estádios

os animais esperam a televisiva censura

e as escolas esperam a requalificação

 

As barbas já habituadas à obscenidade

potenciada pela repressão do cio

babam-se por algumas novas vítimas

urbanas ocidentalizadas badalhocas

que foram serenamente contratualizadas

com as poupanças do senhor do mundo

 

As barbas radiantes prometem o sol dos seus dentes

no pandemónio desesperado dos que sabem bem

que são os escravos ou enforcados do futuro

e não serão protegidos por ninguém

muito menos pelo senhor do mundo

que já os decidiu destinados a expiar a sua culpa

 

Mas o que são umas centenas de milhar

face aos milhões que os senhores do mundo

sempre traíram no decurso da sua dominação?

Estes nem pertencem a qualquer das etnias

que o senhor do mundo se comprometeu a proteger

em discursos de solenidade e elevação

 

Uma pedra tumular cai sobre toda a região

e só das bestas resta esperar misericórdia

Os sonhos de toda uma geração

ficaram para sempre cancelados

Como tanta mulher por todo o nosso passado

resta chorar esquecer aguentar

 

Mas o senhor do mundo muito civilizado

irá sancionar cancelar conferências ou carreiras

por uso desta ou aquela expressão imprópria

enquanto oculta a mão com que assinou

as ordens todas de sequestro e execução

com uma muito razoável e desejada retirada

 

A verdade é que as potências da cupidez

da crueldade da avidez e da estultícia

governam todas as terras e todas as gentes

apenas se camuflando melhor ou pior

ou variando procedimentos e estilo

veludo algodão chita ou serapilheira

 

Não sei se cá ou lá ou todo o lado o horror

cai sobre o futuro de menino ou menina

que talvez agarrado ao peluche sentirá a dor

sem razão nem esperança nem redenção

a que será no leito abandonado

até se levantar para lavar o sangue derramado

 

E o senhor do mundo nunca sentirá vergonha

por se ter garantido das vítimas o silêncio

um silêncio que grita da terra as assombrações

de milhões e milhões de vozes amordaçadas

que no decurso dos anos foram espezinhadas

por suas interesseiras conquistas e retiradas

 

Mas o senhor do mundo tem de ser maquilhado

para aparecer na entrevista no documentário

que o vai fazer surgir como um herói contrariado

que contra as trevas garantiu sucesso extraordinário

- música épica a acompanhar seus passos

brilhos rostos sorridentes beijos e abraços

 

ninguém mencionará o sentido dos seus atos

far-se-ão festinhas aos seus cães ou gatos

 

© Joaquim Lúcio, 17/8/21

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Pela vidraça vê-se

Pela vidraça vê-se

gotas de chuva a cair.

Um nervosinho miúdo,

uma ânsia de fugir.

 

A chuva enche um carreiro

num crepúsculo cinzento.

Molhado, ladra um rafeiro.

Torno-me, em carne, lamento.

 

Deste lado da vidraça,

o ruído enche o bar.

Perpassa uma luz baça.

Quero sair e ficar.

 

O ar está cheio e pesado,

e eu, vazio ou cansado.

Toco, movido arrepio,

o vidro do meu olhar.

Toco-lhe e sinto frio.

 

P'ra além do vidro, perdido,

olho solidão devastada.

Os ramos das árvores nus,

a relva suja e molhada.

 

A terra está desgrenhada,

as ervas tremem de frio...

Desejos de madrugada

na luz do sol que fugiu.

 

A vidraça? Onde está?

E eu? Aqui? Acolá?

Confunde-se o meu olhar,

não estou nem deixo de estar... 

Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. I, ausência, Madrid, Bubok, 2019, pp. 168-169

sábado, 14 de agosto de 2021

No teu nome

 

No teu nome, ressoam espadas, ecoam estupros antigos

penetram invasões, geram-se rebeliões, revoluções

aproveita-se a decrepitude das cidades, terras e impérios

ardem bibliotecas academias jardins civilizados

 

No teu nome, existem palácios a arder, muralhas a derrocar

existe a concretização da ameaça, do medo, do pavor

existe o anúncio do milénio, calamidade do inferno e dos céus

existe o outro radical, o fora da ordem, o para lá do mundo

 

No teu nome, escorre sangue de torsos esventrados

e espirra do pescoço sem cabeça, sem futuro, sem passado

o teu nome veste peles de ursos esfolados pelo norte

com as presas das bestas irredutíveis e selvagens ao pescoço

 

Mas, no teu nome, ouve-se a esperança de futuro

o ventre de novas madrugadas, novas auroras

o brilho nos olhos da demanda pela devastação

de algo por que no horizonte valha a pena saquear

 

Inveja dos povos sofisticados, das riquezas imerecidas

ganância ávida de cada vez maiores bens, maiores posses

orgulho na força que pernas transportam e braços desferem

luxúria bravia e sadia ainda não pervertida por clausura e repressão

 

No teu nome, a tua natureza, a tua agrura, a tua suavidade

um punhal prestes a ser espetado, a violência da ternura

a lei e a inclemência da terra nas entranhas de abismo e de calor

fissura tectónica pronta a expelir rancor raiva rocha e fogo

 

A lua está grávida de ti e atrai-me pequena medusa solta na maré

aproximo-me um pouco mas está vedado todo o contacto

não entendes o mundo que atrais, as palavras que evocas

sentes as palavras como música, como cadência de uma outra dimensão

 

Inutilmente se exige de ti o domínio do discurso, a arte do contrato

inutilmente se intenta impor-te normas e regras e princípios

inutilmente se tenta confinar-te numa divisão ao seu dever

inutilmente se deseja disciplinar tua indolência desleixada

 

No teu nome, sussurram reminiscências de pérfidos costumes

urros, bramidos, ulular sem fim, rosna-se ameaçadora presença

mas também feroz frontalidade de virtudes de olhar e ato

não poluídas por polidas proclamações postiças e pedantes

 

No teu nome, estão gravados nomes de deuses sedentos e cruéis

ritos sacrificiais os aplacam apenas pelos mais breves instantes

há terror quando passas, quando percorres, quando erras

as tuas mãos elegem ferinas ofertas impiedosas para o além

 

No teu nome, se traça a dureza de um destino estranho à paz

no conflito se fecunda, se impulsiona, se transcende

nome de guerra eterna, nascimento, procriação, falecimento

ciclo vital das potências que evocas instintiva nos teus gestos

 

Estávamos votados à disputa, à querela, à refrega

pela fatalidade inscrita no teu nome, tua essência

na substância do devir e na luta dos contrários

eternamente díspares, opostos, polos unidos pelo globo

 

O teu nome está inscrito no interior da minha carne

é inútil tentar apagá-lo, tentar esquecê-lo, tentar domá-lo

a batalha do ódio e do amor não encontrará desfecho

percorrerei até ao fim as ruas com a dor desta pugna no meu peito


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, II, abertura, Madrid, Bubok, 2019, pp. 178-180

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Sorvo a nata espessa do nevoeiro esbranquiçado

 

Sorvo a nata espessa do nevoeiro esbranquiçado

pela luz irreal de um amanhecer sombrio

e desejo libertação enfim de estar aqui deste lado

o lado que não se aquece, não se consola, frio

apartado de todo o calor, todo o astro, toda a chama

distância intransponível, infinitamente divisível

por onde a minha voz muda inutilmente clama

intentando alcançar algo que, embora visível

manter-se-á em si para sempre inatingível

 

E alcançar o quê e para quê?

Se o alcançasse, o que é que alcançaria?

Alcanço os óculos literais para ver tv

e apenas vejo outra imagem que não a que antes via

sem sequer os óculos apreender

por muito que me iluda por os usar e, por eles, melhor ver

A imagem ganhou precisão, contraste, pormenores

mas a coisa que vejo está tão lá quanto antes

e a imagem tão cá como sempre

e nunca existe a menor possibilidade

de alguma vez ser a relação diferente

alcançando o desejado integralmente

Se o alcançasse, o que é que alcançaria?

Nada, pois o desejado já não o seria

e tal todo o seu ser alteraria

 

Um inusitado raio aquece meu corpo gelado

mas eu continuo igualmente apartado

tanto que do meu próprio corpo estou distanciado

Consolem-se fenomenólogos suspendendo o juízo

e afirmando como apodíticos os dados da consciência

Eu sei que não atinjo o que diviso

e que nem fica por aí minha impotência

Radicalmente, sinto a minha incompletude

no próprio advir espontâneo do desejo

que nunca sei porquê surgiu

nem sequer o ato que o cumpriu

Mesmo que uma ponte mágica se criasse

entre mim e o tão desejado objetivo

continuaria infinitamente apartado

daquilo que sou e porque é que o vivo

 

A jovem que julguei bela e desejável

e procurei obsessivamente possuir

procurava fornicá-la para quê?

Depois de a fecundar, fecundei em mim o quê?

Preenchi-me mais, dei sentido à existência?

Ficou em mim algo que me alterou o ser?

Ou fiz o que fiz como coisa a cumprir uma exigência?

Senti-me mais realizado como homem?

Mas o que é isso que faça sentido para a minha consciência?

O que é isso para mim, ser considerado garanhão

obter de outros absurda consideração

garantir, pela jovem, a minha procriação

ou deleitar-me por, sei eu lá porquê, a julgar bela

quando teria igual prazer com uma dita feia?

Porquê escolhê-la a ela

se não faço ideia do que seja o belo e porque desejá-lo?

Porque com aquela o meu pénis fica falo

quando outra nem suscita fantasia?

Porque motivo a outra não me entesaria?

E mesmo com uma potência universal

que teria a ver comigo, com a minha decisão

tal incontrolável fálico manancial?

 

Tecla o advir do destino a espontaneidade animal

sem desígnio, sem finalidade, sem bem, sem mal

Toda a pretensão axiológica é risível

a responsabilidade existencial ininteligível

fazendo erguer o axioma da liberdade

sobre a imensidão da nossa ignorância

como se não se pudesse questionar causalidade

na origem de tal infundada arrogância

 

Nada se concebendo como podendo porvir do nada

como é possível ser eu uma exceção?

Confunde-se o ser com falta de cognição

ilude-se o sujeito como suposta transcendência

quando, de cá e de lá, só não existe ilusão

no reconhecimento de incompletude e impotência

 

A jovem depois de penetrada

ficou tal qual por mim intocada

e eu agi assim não sei porquê

cumprindo decretos de teor ignoto

e proveniência ainda mais desconhecida

Decido x porque me apetece

mas não faço ideia porque o apetite acontece

algo faz com que surja não sei ao certo para quê

algo em mim a trama da ação tece

sendo eu apenas o que o fenómeno vê

mero espetador de atos motivados

por efeitos por mim nunca causados

mas que em mim espontaneamente brotam

e, na sua desarticulada sucessão

infundada em qualquer minha razão

nunca acalmam, nunca cessam, nunca se esgotam

Infinita distância entre mim e mim

que só com a morte finalmente terá fim


 © Joaquim Lúcio, 21/7/21

 

Transbordante de alegria


Transbordante de alegria

a saltadora agarra-se aos saltos às colegas derrotadas

por ter aterrado um centímetro além

num caminho que acaba

exatamente no mesmo sítio que o das outras

O golfista flete recua o braço e fecha o punho

num gesto expressivo de força e sucesso

e está radiante por ter dado menos pancadas

que qualquer dos oponentes

O artista emociona-se a receber o prémio

decidido por pertencer a família

por cultivar as relações

por galeria ou editora

como se inusitada a ovação

A um espírito filosófico

tudo isso parecerá disparatado

sentir se calhar a vida inteira realizada

por alcançar primeiro uma meta

que foi para tal ali colocada

e no mesmo sítio amanhã ali não estará

como nunca esteve rigorosamente nada

pelo qual valesse o esforço de chegar primeiro lá

um lá convencionado entre os entes

que por aqui e ali há

Mas fará esse espírito algo diferente

ou apenas manifesta presunção somente?

 

Uma gata do lado de lá de um vidro

que me vê ali ela aqui eu

há dias há semanas meses

sempre a fazer as mesmas coisas

e sempre a ter as mesmas reações

tenta cheirar-me através do vidro

e estica-se toda numa instabilidade impossível

intentando talvez por uma qualquer brecha invisível

alcançar o odor que o vidro não concede

Vem a outra disparada e empurra a primeira à sapatada

para como sempre me tentar tocar através do vidro

e também ela se estica até cair desamparada

sempre a intentar passar o obstáculo intransponível

Ambas me miam talvez a solicitar interação

maior que a que lhes permite o alcance da visão

embora os dias as semanas e os meses

não devessem lhes dar a esperança

de no meu comportamento haver qualquer mudança

 

Se fossem fenomenólogas acaso intentariam

alcançar o objeto que assim veriam?

Certamente com maior empenho se possível

pois julgariam que o alcançariam

e de facto alcançavam visto nada ser

senão as imagens que no vidro apareceriam

Poderiam mesmo teorizar o odor fenoménico

ou a textura surpreendente da imagem

alcançando assim conhecimento apodítico

de tudo quanto estava a acontecer

que hermeneuticamente só teria origem

no aparecer que possibilitava a linguagem

Assim é nesta época a sabedoria

visto a alternativa ser análise semântica

proibindo uma qualquer psicologia

que vislumbre qualquer força na origem

da mais insólita enunciação apofântica

 

Eu porém ouço o malogrado sábio escocês de outra era

e penso que as gatas como nós são arrastadas

por um instinto uma pulsão cega e constringente

a acreditar que há algo para lá do vidro

para lá do que se diz do que se entende do que se sente

Qualquer pensamento que não expresse a nossa radical incompletude

é um pensamento que erra que engana que se ilude

Qualquer sabedoria que erija um edifício de certeza

altaneiro sólido arrogante presunçoso

sem consciência de assentar em areias movediças

está condenado a ser engolido inteiro pelo lodo

não sendo aproveitáveis sequer as dobradiças

Também esta época devia viver a humildade

de se interrogar pela graça em vez da ciência

pelo desejo em vez da inteligência

pela treva em vez da claridade[1]

Talvez pudesse aí alcançar algum sentido ou verdade

 

Revezaram-se as correntes a vencer as trevas

lançando filosofia e metafísica para o passado

e cada qual orgulhoso se ufanava do triunfo

como o saltador o golfista o artista ovacionado

Mas estas gatas metafísicas tentam alcançar o outro lado

com meios inadequados para o fim visado

eternamente buscando encontrar o odor

do inalcançável pelo olfato

eternamente buscando o toque e o calor

do inalcançável pelo tato

Nada tentariam não fosse pela visão e escuta

pressentirem uma dimensão situada além da gruta

Assim o homem sempre algo mais pressente

mesmo se o não disse se não o escutou se o não viu

E tal como outrora o homem se satisfazia

por duramente alcançar os frutos do seu trabalho

e agora só encontra orgulho e mais valia

em mais longe lançar o dardo ou malho

quando ficar mais perto nada alteraria

assim o filósofo passado se realizava

se do mistério insondável

o menor indício vislumbrava

e agora fica contente com a opacidade

proclamando as conclusões da cegueira

como se fora derradeira e total verdade

como se as imagens palavras proposições que no vidro aparecem

fossem uma completa autónoma realidade

 

O fenomenólogo o hermeneuta o analítico

são no pensamento o que é o desportista no trabalho

gloriosa realização de absolutamente nada

celebrando o triunfo no mero espetáculo

performance desdobrada para uma tela projetada

Antes as ridículas metafísicas gatas

absurdamente arrastadas por suas pulsões inatas

nunca desistindo do inatingível

nunca lhes chegando apenas o visível

 

© Joaquim Lúcio, 1-2/3/21



[1] Boaventura, Itinerário da mente para Deus, VII, 6.

Adverso o verso

  Adverso o verso no reverso do diverso por incapaz de reduzir o díspar ao igual Parece pernicioso pior pérfido perverso à sentença da...