"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Símbolo do amor, da paixão, a rosa vermelha

Símbolo do amor, da paixão, a rosa vermelha

oferece-se bela, fresca, orvalhada, viçosa

Será essa a sua essência, banalidade reproduzida

em mil imagens icónicas do que seja a rosa?

 

Porquê considerar essencial um momento efémero

como se fora a realização sensível da rosa ideal?

Pode cair cada pétala pelo vento ou pela mão

murchar, enegrecer, engelhar aparência visual

 

devir um resíduo ressequido que nem cor

nem frescura, nem orgânica, nem beleza

mantém a imagem do já olvidado esplendor

 

e, porém, algo se manteve em todos os meandros dos caminhos

incólume em toda a sua potencial crua rudeza

a sua penetrante oculta natureza, os seus espinhos

 

*

 

E, porém, não o sabe já sempre toda a gente

apesar do esforço eterno de nada olhar de frente?

Não tem consciência que o florir é apenas manha

para proliferar usando um animal que a aparência apanha?

 

Não tem consciência que o que mais persiste é o esqueleto

mesmo após a cabeça sinistra rolar do cepo

sendo, das carnes, a humidade, a fofura, a macieza

uma ilusão para cumprir a ordem de ação da natureza?

 

Descarnada se evidencia a essência

que se desdobra ao longo da existência

sendo o fluir de cada aparência

 

apenas oportunidade de a transcender

até o fundo de onde emerge o seu ser

a fonte eterna de todo o acontecer

 

*

 

Leda ilusão da dádiva eterna do amor

desaparecida assim que se realizou seu fito

entregue à idealização todo o ardor

que apenas deixa, despojo nu, o animal aflito

 

E, ridiculamente, há quem busque recuperar

esse ápice vivido no efémero instante

julgando possível como coisa o agarrar

quando só para si existiu, foi relevante

 

Entre as páginas, há quem a guarde ressequida

ou num altar erguido no dédalo da memória

mas a rosa conservada nem se assemelha à vivida

 

Ao invés, enquanto cor, frescura, brilho são só história

os espinhos até reforçam penetrante a agudeza

da dor que sempre acompanhou toda a beleza

 

 © Joaquim Lúcio, 25/4/2021

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