"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 14 de agosto de 2021

No teu nome

 

No teu nome, ressoam espadas, ecoam estupros antigos

penetram invasões, geram-se rebeliões, revoluções

aproveita-se a decrepitude das cidades, terras e impérios

ardem bibliotecas academias jardins civilizados

 

No teu nome, existem palácios a arder, muralhas a derrocar

existe a concretização da ameaça, do medo, do pavor

existe o anúncio do milénio, calamidade do inferno e dos céus

existe o outro radical, o fora da ordem, o para lá do mundo

 

No teu nome, escorre sangue de torsos esventrados

e espirra do pescoço sem cabeça, sem futuro, sem passado

o teu nome veste peles de ursos esfolados pelo norte

com as presas das bestas irredutíveis e selvagens ao pescoço

 

Mas, no teu nome, ouve-se a esperança de futuro

o ventre de novas madrugadas, novas auroras

o brilho nos olhos da demanda pela devastação

de algo por que no horizonte valha a pena saquear

 

Inveja dos povos sofisticados, das riquezas imerecidas

ganância ávida de cada vez maiores bens, maiores posses

orgulho na força que pernas transportam e braços desferem

luxúria bravia e sadia ainda não pervertida por clausura e repressão

 

No teu nome, a tua natureza, a tua agrura, a tua suavidade

um punhal prestes a ser espetado, a violência da ternura

a lei e a inclemência da terra nas entranhas de abismo e de calor

fissura tectónica pronta a expelir rancor raiva rocha e fogo

 

A lua está grávida de ti e atrai-me pequena medusa solta na maré

aproximo-me um pouco mas está vedado todo o contacto

não entendes o mundo que atrais, as palavras que evocas

sentes as palavras como música, como cadência de uma outra dimensão

 

Inutilmente se exige de ti o domínio do discurso, a arte do contrato

inutilmente se intenta impor-te normas e regras e princípios

inutilmente se tenta confinar-te numa divisão ao seu dever

inutilmente se deseja disciplinar tua indolência desleixada

 

No teu nome, sussurram reminiscências de pérfidos costumes

urros, bramidos, ulular sem fim, rosna-se ameaçadora presença

mas também feroz frontalidade de virtudes de olhar e ato

não poluídas por polidas proclamações postiças e pedantes

 

No teu nome, estão gravados nomes de deuses sedentos e cruéis

ritos sacrificiais os aplacam apenas pelos mais breves instantes

há terror quando passas, quando percorres, quando erras

as tuas mãos elegem ferinas ofertas impiedosas para o além

 

No teu nome, se traça a dureza de um destino estranho à paz

no conflito se fecunda, se impulsiona, se transcende

nome de guerra eterna, nascimento, procriação, falecimento

ciclo vital das potências que evocas instintiva nos teus gestos

 

Estávamos votados à disputa, à querela, à refrega

pela fatalidade inscrita no teu nome, tua essência

na substância do devir e na luta dos contrários

eternamente díspares, opostos, polos unidos pelo globo

 

O teu nome está inscrito no interior da minha carne

é inútil tentar apagá-lo, tentar esquecê-lo, tentar domá-lo

a batalha do ódio e do amor não encontrará desfecho

percorrerei até ao fim as ruas com a dor desta pugna no meu peito


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, II, abertura, Madrid, Bubok, 2019, pp. 178-180

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