"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Pela vidraça vê-se

Pela vidraça vê-se

gotas de chuva a cair.

Um nervosinho miúdo,

uma ânsia de fugir.

 

A chuva enche um carreiro

num crepúsculo cinzento.

Molhado, ladra um rafeiro.

Torno-me, em carne, lamento.

 

Deste lado da vidraça,

o ruído enche o bar.

Perpassa uma luz baça.

Quero sair e ficar.

 

O ar está cheio e pesado,

e eu, vazio ou cansado.

Toco, movido arrepio,

o vidro do meu olhar.

Toco-lhe e sinto frio.

 

P'ra além do vidro, perdido,

olho solidão devastada.

Os ramos das árvores nus,

a relva suja e molhada.

 

A terra está desgrenhada,

as ervas tremem de frio...

Desejos de madrugada

na luz do sol que fugiu.

 

A vidraça? Onde está?

E eu? Aqui? Acolá?

Confunde-se o meu olhar,

não estou nem deixo de estar... 

Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. I, ausência, Madrid, Bubok, 2019, pp. 168-169

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