"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

terça-feira, 17 de agosto de 2021

O grande sonho ocidental

             Num café, o renascido aceitou que alguns jovens se sentassem junto dele. Na televisão, apresentavam pormenores da tomada do poder num país remoto por uma força extremista, enquanto forças ocupantes se retiravam desordenadamente. Prestaram atenção ao discurso do chefe destas últimas forças, estupefactos com o seu descaramento. Perguntaram, então, qual a opinião do renascido que parecia não estar a ligar nenhuma ao que se passava. A sua voz começou a responder de forma algo alheada...


O grande sonho ocidental de skates, discotecas e minissaias

como o anterior no império persa de piscinas e cocktails

sempre foi o nosso delírio urbano e endinheirado

e o das castas privilegiadas de ambos os domínios

pago a peso de ouro ou petróleo ou papoilas

a ditadores fantoches e corruptos e seus títeres

 

O ódio antigo aos infiéis nunca foi esquecido

foi até redobrado, apurado, refinado

e será ungido com seu sangue nas grandes capitais

que continuarão após a peste olvidadas em diversão

até a madrugada voltar a amanhecer na agonia

de cadáveres amontoados e corpos estropiados

 

O senhor do mundo do alto da sua desfaçatez

faz um gigantesco manguito às meninas

que se entreteve com seus antecessores e pares

a fazer sonhar durante uma longa geração

para as largar como instrumentos já sem uso

no longo pesadelo da escravidão e da tortura

 

O senhor dito democrático não conta que o seu regime

era aqui e em tantas outras partes

partes de pirâmides de atlas de zigurates

uma imposição contra o povo paga com subornos e miséria

que se queria lavada por receções elegantes

pipocas refrigerantes jingles aos colaboradores

 

O senhor do mundo não se importa que haja

foragidos enriquecidos com o saque colonial

enquanto as manadas comprometidas

esperam o novo velho uso dos estádios

os animais esperam a televisiva censura

e as escolas esperam a requalificação

 

As barbas já habituadas à obscenidade

potenciada pela repressão do cio

babam-se por algumas novas vítimas

urbanas ocidentalizadas badalhocas

que foram serenamente contratualizadas

com as poupanças do senhor do mundo

 

As barbas radiantes prometem o sol dos seus dentes

no pandemónio desesperado dos que sabem bem

que são os escravos ou enforcados do futuro

e não serão protegidos por ninguém

muito menos pelo senhor do mundo

que já os decidiu destinados a expiar a sua culpa

 

Mas o que são umas centenas de milhar

face aos milhões que os senhores do mundo

sempre traíram no decurso da sua dominação?

Estes nem pertencem a qualquer das etnias

que o senhor do mundo se comprometeu a proteger

em discursos de solenidade e elevação

 

Uma pedra tumular cai sobre toda a região

e só das bestas resta esperar misericórdia

Os sonhos de toda uma geração

ficaram para sempre cancelados

Como tanta mulher por todo o nosso passado

resta chorar esquecer aguentar

 

Mas o senhor do mundo muito civilizado

irá sancionar cancelar conferências ou carreiras

por uso desta ou aquela expressão imprópria

enquanto oculta a mão com que assinou

as ordens todas de sequestro e execução

com uma muito razoável e desejada retirada

 

A verdade é que as potências da cupidez

da crueldade da avidez e da estultícia

governam todas as terras e todas as gentes

apenas se camuflando melhor ou pior

ou variando procedimentos e estilo

veludo algodão chita ou serapilheira

 

Não sei se cá ou lá ou todo o lado o horror

cai sobre o futuro de menino ou menina

que talvez agarrado ao peluche sentirá a dor

sem razão nem esperança nem redenção

a que será no leito abandonado

até se levantar para lavar o sangue derramado

 

E o senhor do mundo nunca sentirá vergonha

por se ter garantido das vítimas o silêncio

um silêncio que grita da terra as assombrações

de milhões e milhões de vozes amordaçadas

que no decurso dos anos foram espezinhadas

por suas interesseiras conquistas e retiradas

 

Mas o senhor do mundo tem de ser maquilhado

para aparecer na entrevista no documentário

que o vai fazer surgir como um herói contrariado

que contra as trevas garantiu sucesso extraordinário

- música épica a acompanhar seus passos

brilhos rostos sorridentes beijos e abraços

 

ninguém mencionará o sentido dos seus atos

far-se-ão festinhas aos seus cães ou gatos

 

© Joaquim Lúcio, 17/8/21

Sem comentários:

Enviar um comentário

No tempo em que ainda escrevíamos poemas

No tempo em que ainda escrevíamos poemas (ontem só e, porém, um abismo intransponível entre o que houve e o que ficou), no tempo em qu...